São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2000

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Sai no mês que vem pela editora Iluminuras a primeira antologia brasileira de um dos principais poetas da língua portuguesa na atualidade

Herberto Helder
o nome e o lugar da poesia

Abel Barros Baptista
especial para a Folha

Escrever, no jeito de apresentação ao leitor brasileiro, sobre Herberto Helder representa um risco considerável. Ou melhor, um risco acrescido: ainda que não se trate de um poeta inteiramente desconhecido no Brasil (aliás, das universidades brasileiras já surgiram vários estudos originais da sua poesia), a circunstância de uma primeira antologia força-nos à presunção inversa daquela que muitas vezes, e paradoxalmente, serve de salvaguarda em caso de assunto intratável, a da familiaridade. Que dizer aqui, então, de Herberto Helder?
Os fatos biográficos são escassos: nasceu na Madeira em 1930, fixou-se em Lisboa ainda adolescente; autodidata, começou a colaborar em jornais e revistas em 1953, publicou o primeiro livro de poesia em 1958. O mais que se queira dizer, a satisfazer aquele mínimo de pertinência exigido, será apenas isto: está vivo e ativo. Depois, ou por inépcia ou por exigência do entusiasmo -no caso, é indiferente-, poder-se-ia recorrer a uns quantos superlativos: "Um dos maiores poetas portugueses contemporâneos", ou "o maior poeta da segunda metade do século", ou ainda "o maior poeta português vivo". Tudo com alguns "talvez" ou "provavelmente" corretamente acolchetados, atenuando o absoluto, sempre incômodo, do superlativo.
Nada disso chega a ser de todo errado. Ajuda pouco, porém.
A verdade é que apenas por arrogância ou inconsciência alguém poderá reclamar familiaridade com a poesia de Herberto Helder, e isso será já um primeiro traço de apresentação. Herberto Helder é reconhecidamente um poeta de acesso difícil, e não apenas por escrever uma poesia que exige muito da leitura: é-o desde logo por força do silêncio com que ele próprio rodeou a sua obra e que preserva com intransigência. Não consente em aparecimentos públicos, não dá entrevistas aos jornais, não participa em sessões literárias ou lançamentos dos seus livros nem sequer aceita prêmios literários: em consequência, a relação de Herberto Helder com a instituição literária portuguesa é hoje caracterizada por uma indiferença quase mútua.

Não-existência do poeta
O mundo dos leitores de poesia não tem curiosidade a respeito da sua vida ou da sua pessoa, desde que possa continuar a ler-lhe os livros. Não se confunde com aqueles casos de escritores excêntricos que se recolhem, escondem ou desaparecem, a ponto de se fazer legítimo perguntar se alguma vez existiram. Mas as coisas passam-se de fato como se, para a instituição e para a opinião, a da crítica e a dos leitores, a pessoa do poeta se caracterizasse justamente por não existir -literalmente e em todos os sentidos.
Não há como negar que esse efeito foi procurado, porque, mais do que decorrer de uma regra de conduta pessoal, é inteiramente solidário da poesia de Herberto Helder: trata-se do efeito da assinatura, que devora o signatário ao designar com o seu nome os traços distintivos da poesia que assina.
Em primeiro lugar, depois de Pessoa, não deverá haver outro poeta português que tenha levado tão longe a desarticulação das presunções tradicionais a respeito da poesia. De fato, desde "O Amor em Visita" (1958), o primeiro poema que publicou, que Herberto Helder abriu na poesia portuguesa contemporânea um lugar idiomático irradiador de uma energia em que a linguagem nem exprime nem representa nem se fecha sobre si mesma. Em vez, a poesia de Herberto é -ou pode ser, para ser mais fiel a uma poética que rejeita qualquer resposta, que, no entanto, ela própria solicita -um "baptismo atónito", "uma palavra/ surpreendida para cada coisa".

Poema como construção
Em segundo lugar, e mais radicalmente, Herberto Helder escreve uma poesia rigorosamente antiinterpretativa: nenhuma outra chega a resistir com tanta energia ao esforço de decifração de um "querer dizer" e às manobras de recondução da dicção poética a um prolongamento ornamentado da fala. Ao mesmo tempo, nenhuma outra de igual modo repudia a contenção num quadro formalista ou nos limites de um construtivismo vulgar, sem embargo de uma das linhas fortes da poética herbertiana passar pela noção do poema como construção que institui as próprias regras e do poema dotado de ação própria, o que se pode avaliar pela persistência e pela conjugação das figuras da máquina, da casa, do corpo ou do animal. Numa passagem de "Photomaton & Vox" (1979), um livro de fragmentos em prosa, funcionando como uma poética pessoal irônica, escreverá: "(A respeito da poesia pode ainda dizer-se: -A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada. E também à volta)".
Para Herberto, a poesia é transformação, e transformação eminentemente escrita em que a ação do poeta transforma a própria ação de transformar. Assim se mostra o essencial do efeito de assinatura: a poesia ultrapassa o poeta, mas o poeta deixa nela a sua marca idiomática. Herberto Helder deu disso uma pequena alegoria humorística, a história "afro-carnívora", que se pode ler no texto introdutório da mais do que controversa "antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa", "Edoi Lelia Doura", que publicou em 1985:
"A história afro-carnívora foi colhida algures, de leitura, e respeita a uma tribo que sepultava os seus mortos no côncavo de grandes árvores. As árvores, a que tinham dado o nome do povo: baobab, devoravam os cadáveres, deles iam urdindo a sua própria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto na alquimia, a tribo investia-se nas transmutações gerais: a morte levava o nome, e o nome, activo e tangível, crescia na terra. Emocionam-me a fome botânica e o triunfo das copas, o empenho tribalmente mágico, regrado pelo insondável entendimento das metamorfoses da carne no esquema orgânico da matéria. E apanho aqui o símbolo: uma imagem de si mesma, uma imagem absoluta, universal, devora esta gente, e esta gente põe a assinatura na imagem devolvida ao mundo. É quase tudo o que há para dizer no plano prático da poesia".
Certo, porém, que o mesmo essencialmente se dizia num verso de "Poemacto" (1961): "Tudo morre o seu nome noutro nome".


Abel Barros Baptista é crítico português, professor de teoria literária e literatura brasileira da Universidade Nova de Lisboa e autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa), sobre a obra de Machado de Assis.



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