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Sai no mês que vem pela editora Iluminuras a
primeira antologia brasileira de um dos principais
poetas da língua portuguesa na atualidade
Herberto Helder
o nome e o lugar da poesia
Abel Barros Baptista
especial para a Folha
Escrever, no jeito de apresentação
ao leitor brasileiro, sobre Herberto
Helder representa um risco considerável. Ou melhor, um risco
acrescido: ainda que não se trate de um
poeta inteiramente desconhecido no
Brasil (aliás, das universidades brasileiras já surgiram vários estudos originais
da sua poesia), a circunstância de uma
primeira antologia força-nos à presunção inversa daquela que muitas vezes, e
paradoxalmente, serve de salvaguarda
em caso de assunto intratável, a da familiaridade. Que dizer aqui, então, de Herberto Helder?
Os fatos biográficos são escassos: nasceu na Madeira em 1930, fixou-se em Lisboa ainda adolescente; autodidata, começou a colaborar em jornais e revistas
em 1953, publicou o primeiro livro de
poesia em 1958. O mais que se queira dizer, a satisfazer aquele mínimo de pertinência exigido, será apenas isto: está vivo
e ativo. Depois, ou por inépcia ou por
exigência do entusiasmo -no caso, é indiferente-, poder-se-ia recorrer a uns
quantos superlativos: "Um dos maiores
poetas portugueses contemporâneos",
ou "o maior poeta da segunda metade do
século", ou ainda "o maior poeta português vivo". Tudo com alguns "talvez" ou
"provavelmente" corretamente acolchetados, atenuando o absoluto, sempre incômodo, do superlativo.
Nada disso chega a ser de todo errado.
Ajuda pouco, porém.
A verdade é que apenas por arrogância
ou inconsciência alguém poderá reclamar familiaridade com a poesia de Herberto Helder, e isso será já um primeiro
traço de apresentação. Herberto Helder é
reconhecidamente um poeta de acesso
difícil, e não apenas por escrever uma
poesia que exige muito da leitura: é-o
desde logo por força do silêncio com que
ele próprio rodeou a sua obra e que preserva com intransigência. Não consente
em aparecimentos públicos, não dá entrevistas aos jornais, não participa em
sessões literárias ou lançamentos dos
seus livros nem sequer aceita prêmios literários: em consequência, a relação de
Herberto Helder com a instituição literária portuguesa é hoje caracterizada por
uma indiferença quase mútua.
Não-existência do poeta
O mundo dos leitores de poesia não tem curiosidade a respeito da sua vida ou da sua pessoa, desde que possa continuar a ler-lhe
os livros. Não se confunde com aqueles
casos de escritores excêntricos que se recolhem, escondem ou desaparecem, a
ponto de se fazer legítimo perguntar se
alguma vez existiram. Mas as coisas passam-se de fato como se, para a instituição e para a opinião, a da crítica e a dos
leitores, a pessoa do poeta se caracterizasse justamente por não existir -literalmente e em todos os sentidos.
Não há como negar que esse efeito foi
procurado, porque, mais do que decorrer de uma regra de conduta pessoal, é
inteiramente solidário da poesia de Herberto Helder: trata-se do efeito da assinatura, que devora o signatário ao designar
com o seu nome os traços distintivos da
poesia que assina.
Em primeiro lugar, depois de Pessoa,
não deverá haver outro poeta português
que tenha levado tão longe a desarticulação das presunções tradicionais a respeito da poesia. De fato, desde "O Amor em
Visita" (1958), o primeiro poema que publicou, que Herberto Helder abriu na
poesia portuguesa contemporânea um
lugar idiomático irradiador de uma
energia em que a linguagem nem exprime nem representa nem se fecha sobre si
mesma. Em vez, a poesia de Herberto é
-ou pode ser, para ser mais fiel a uma
poética que rejeita qualquer resposta,
que, no entanto, ela própria solicita
-um "baptismo atónito", "uma palavra/ surpreendida para cada coisa".
Poema como construção
Em segundo lugar, e mais radicalmente, Herberto
Helder escreve uma poesia rigorosamente antiinterpretativa: nenhuma outra chega a resistir com tanta energia ao
esforço de decifração de um "querer dizer" e às manobras de recondução da
dicção poética a um prolongamento ornamentado da fala. Ao mesmo tempo,
nenhuma outra de igual modo repudia a
contenção num quadro formalista ou
nos limites de um construtivismo vulgar,
sem embargo de uma das linhas fortes da
poética herbertiana passar pela noção do
poema como construção que institui as
próprias regras e do poema dotado de
ação própria, o que se pode avaliar pela
persistência e pela conjugação das figuras da máquina, da casa, do corpo ou do
animal. Numa passagem de "Photomaton & Vox" (1979), um livro de fragmentos em prosa, funcionando como uma
poética pessoal irônica, escreverá: "(A
respeito da poesia pode ainda dizer-se:
-A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada. E também à volta)".
Para Herberto, a poesia é transformação, e transformação eminentemente escrita em que a ação do poeta transforma
a própria ação de transformar. Assim se
mostra o essencial do efeito de assinatura: a poesia ultrapassa o poeta, mas o
poeta deixa nela a sua marca idiomática.
Herberto Helder deu disso uma pequena
alegoria humorística, a história "afro-carnívora", que se pode ler no texto introdutório da mais do que controversa
"antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa", "Edoi Lelia Doura", que publicou em 1985:
"A história afro-carnívora foi colhida
algures, de leitura, e respeita a uma tribo
que sepultava os seus mortos no côncavo
de grandes árvores. As árvores, a que tinham dado o nome do povo: baobab,
devoravam os cadáveres, deles iam urdindo a sua própria carne natural. Pelo
nome tirado de si e posto na alquimia, a
tribo investia-se nas transmutações gerais: a morte levava o nome, e o nome,
activo e tangível, crescia na terra. Emocionam-me a fome botânica e o triunfo
das copas, o empenho tribalmente mágico, regrado pelo insondável entendimento das metamorfoses da carne no esquema orgânico da matéria. E apanho
aqui o símbolo: uma imagem de si mesma, uma imagem absoluta, universal,
devora esta gente, e esta gente põe a assinatura na imagem devolvida ao mundo.
É quase tudo o que há para dizer no plano prático da poesia".
Certo, porém, que o mesmo essencialmente se dizia num verso de "Poemacto"
(1961): "Tudo morre o seu nome noutro
nome".
Abel Barros Baptista é crítico português, professor de teoria literária e literatura brasileira da Universidade Nova de Lisboa e autor, entre outros, de
"Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições,
Lisboa), sobre a obra de Machado de Assis.
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