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Em "Brasil Brasileiro" e "Murais de Vinicius" Paulo Mendes Campos fala de bares, poetas e amores
Iluminações à queima-roupa
José Maria Cançado
especial para a Folha
Um grande número dos perfis e
das crônicas republicadas nessas duas coletâneas de Paulo
Mendes Campos faz quase
sempre referência ao que disseram os
personagens retratados diante da morte.
Há por exemplo a explicação de Ari Barroso a José Maria Scassa, que o encontrou cantando antes de morrer: "O silêncio da morte é fogo, Scassa".
Há também o pedido de Sérgio Porto,
quando começou a sentir-se mal, à empregada: "Vira o rosto para lá, pois não
quero ver mulher chorando perto de
mim". Ou o do escritor argentino Ricardo Guiraldes, querendo um pouco de
uísque: "Ahora hay que hablar com
Dios", explicou. E Djanira, depois de
perguntar qual "era mesmo o nome daquele padre que foi fuzilado", saber que
era Frei Caneca do Amor Divino e passar
a chamar-se Teresa do Amor Divino
-"Eu não posso ser enterrada calçada".
Essas referências não aparecem nesses
textos porque o cronista as veja e as tenha posto ali como pedras de toque para
o conhecimento dos amigos e tipos relembrados por ele, porque sua visão é
elegíaca ou porque tudo se resume mesmo num largo e disfarçado obituarismo
(embora alguns dos perfis presentes em
"Murais de Vinicius" possam ter tido,
quando publicados inicialmente na revista "Manchete", essa motivação).
Essas vinhetas fortes, iluminações, a
"última" de alguém incorrigível, versões
à queima-roupa do ensinamento de
Montaigne -"Se queres ser livre, aprende a morrer"- , estão ali por outra razão
e sua força move uma outra coisa.
Nessas crônicas cheias
de aprovadíssima alegria
de estar vivo, de amizades, de muitos homens e
mulheres, de amores, de
ampla paixão pelo Brasil,
de música brasileira quase
inumerável, de uma circulação incessante pelo
Rio, por suas ruas de nomes difíceis, mas inolvidáveis, seus bares categóricos, sua fímbria de oceano, aquelas referências são expressão de uma outra experiência. A da curiosa e em vários sentidos brilhante autonomia em que parecem ter vivido esses personagens -Jayme Ovalle, Di Cavalcanti, Rubem Braga,
Antônio Maria, Sérgio Porto, Lamartine
Babo, Prudente de Morais Netto, Antônio Houaiss e outros.
Pode parecer estranho falar em algo
tão solar, espinosiano e superiormente
moral como autonomia, a propósito desse grupo ondulante, diverso e desatrelado de sujeitos. Afinal nenhum deles talvez tenha pensado nisso. O regime das
suas vidas -é o que se vê nessas deliciosas crônicas da vida intelectual, jornalística e artística- sempre
foi perfeitamente boêmio.
Nunca saíram desse desabrigo mais ou menos
transcendental.
O mesmo Paulo Mendes Campos, cujas "baladas" de sabor meio Dylan
Thomas são únicas na
poesia brasileira, fala desse desabrigo eletivo da
boemia nos versos de
"Balada do Homem de
Fora" (do livro "Testamento do Brasil", de 1966). Escreveu,
num misto de Byron e Drummond, lorde e gauche: "Os outros são teoremas/
lindos de geometria;/ eu me apronto para a noite/ Nos pentes da ventania".
Trabalheira medonha
Além disso
sempre estiveram, apesar dessa aguda
boemia, metidos numa trabalheira medonha. A chamada indústria cultural da
época, jornais, rádios, revistas, como que
exigia deles mais e menos do que hoje e,
se ela tinha muito de "aventura da personalidade", era também quase sacrificial.
Nunca estiveram nem um pouco forrados. Além do mais, seu território foi o
das paixões intensamente vividas, outra
forma talvez de andar no desabrigo. Assim, pode parecer inadequado falar em
autonomia a respeito deles.
Mas é disso mesmo que se trata. Para lá
da mitologia pirata que gosta de encarapitar-se nos seus ombros e legenda, há
neles -e esses dois livros revelam isso
hoje bem limpidamente- uma disponibilidade corajosa e não premeditada,
uma arte da amizade, um notável discurso sobre as paixões (do qual o cronista
recolhe os "topos" na seleção comentada
dos versos mais bonitos da música popular brasileira). E há principalmente
uma espécie de domínio quase magnetizante, mas sem arrogância, da personalidade. É ótimo que essa republicação das
crônicas de Paulo Mendes Campos inclua (em "Murais de Vinicius") o que ele
escreveu sobre o poeta.
Vinicius de Morais foi o sir Galahad
nada etéreo e nada devoto, mas puro assim mesmo, disso tudo. Otto Lara Resende (um no qual, como se sabe, esse
domínio da personalidade era uma pequena "paidéia" pessoal, quase um elegante projeto de civilização mineiramente recalcado) disse, de dentro do impasse
dostoievskiano do "se Deus não existe,
tudo é permitido", sobre o poeta de "Se
Todos Fossem Iguais a Você": "Se o Vinicius existe, tudo é permitido". Nada
mais diferente de um ululante "liberou"
do que isso. É antes um grande sim, um
assentimento.
Para que se possa falar em experiência
da autonomia a respeito dos personagens e episódios dessas crônicas, foi necessária uma outra condição, que não
parece ter faltado a eles: além dessa exigente disponibilidade existencial, desse
"estar pronto é tudo", dessa inteligência,
dessa gaia aventura da personalidade, terá havido também um horizonte não adverso de individuação e ao mesmo tempo de pertencimento ao mundo, à sociedade, à cultura e aos outros, um clima de
opinião talvez.
Noite veneziana
Paulo Mendes
Campos mesmo, lúcido, lírico, elegante e
candango, nada programaticamente sugere o que possa ter sido um dos momentos disso -é apenas um- em
"Carta para Depois" (incluída em "Brasil
Brasileiro"):
"E com as nossas blusas e calças grossas, entramos, assim mesmo, no Palácio
do Congresso (...). Não se empurrava,
nem se barrava ninguém, e os candangos
subiam e desciam as rampas das duas
belas casas dos representantes do povo
(...). A noite foi veneziana; e foi na China
que os venezianos aprenderam a fazer
fogos de artifício; e eu imaginava a velha
Pequim do tempo de Marco Polo e a nova Brasília, bela e cheia de sentido; e, ao
longo dos séculos, pude ver o sofrimento
e a esperança dos homens; e coloquei
Brasília ao lado da esperança". Não temos o direito de recusar essa experiência
que hoje se depreende das crônicas de
Paulo Mendes Campos, nem essa visão e
mesmo essa esperança.
Brasil Brasileiro
194 págs., R$ 23,00
de Paulo Mendes Campos. Ed.
Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ,
tel. 0/xx/ 21/ 585-2047).
Murais de Vinicius e Outros Perfis
130 págs., R$ 18,00
de Paulo Mendes Campos. Ed.
Civilização Brasileira.
José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (Scritta), biografia de Carlos
Drummond de Andrade.
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