São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2000

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Um ideal da crítica

Arthur Nestrovski

Jornalismo cultural", a rigor, é uma contradição de termos. A palavra "jornalismo" vem do latim "diurnalis", que significa "do dia", menos no sentido de diurno do que de diário, cotidiano. "Cultural" é um termo figurado, por analogia ao cultivo da terra. Jornalismo é do dia-a-dia; cultural, de longa duração. O jornalismo reage rapidamente aos acidentes; a cultura define a identidade de um grupo, ou de uma sociedade, e só se transforma aos poucos. O jornalismo cultural existe nessa tensão, entre o contingente e o permanente, com a balança quase nunca no meio. Para continuar na veia etimológica: "crítica" vem de uma palavra grega, "krinein", que quer dizer "quebrar". A mesma palavra está na raiz de "crise", por exemplo. E a crítica, em alguma medida, faz isso mesmo: quebra uma obra em pedaços, pondo em crise a idéia que se fazia dela.
O crítico que escreve em jornal se vê jogado, quer queira, quer não, nesse campo de forças. Cabe a ele identificar o que compõe uma obra; questionar, quando necessário, nossos hábitos de compreensão; e situar suas interpretações no contexto mais amplo da cultura, sem perder o senso de urgência. Isso vale tanto para o crítico mais geral e conceitual quanto para o intérprete mais detalhado das obras. Vale para qualquer um que escreva sobre cultura num jornal -incluindo, naturalmente, o crítico de música.

A dificuldade de Beethoven
A crítica musical nasce no início do século 19. Não seria exagero afirmar que surge para dar conta da música de Beethoven. Foi a dificuldade de compreender suas últimas obras -dificuldade que permanece até hoje e não vai deixar de existir nunca, porque faz parte do que elas têm a dizer- que levou um autor como E.T.A. Hoffmann a redigir os primeiros ensaios de interpretação musical. A compreensão, portanto -não o "gosto"-, é o ponto de partida e chegada da crítica. A crítica expressa, sem dúvida, alguma coisa de gosto pessoal, tanto quanto guarda (ou deveria guardar) algo de objetivo e informativo, também.
Mas ela é mais do que opinião e reportagem; e mais do que a soma dos dois. O crítico não está só defendendo uma escolha; o que interessa é a natureza dessa escolha. A missão da crítica implica construir consenso sobre uma obra, um intérprete, um compositor. Mas não qualquer consenso. O caráter das respostas põe em xeque mais do que a opinião que se tem sobre determinada obra, o que já não seria pouco.
Contra a instrumentalização da cultura, que parece não ter mais limite, a crítica tem uma função de "desintoxicação", como diz Geoffrey Hartman. Gosto não só se discute, como é importante que seja discutido.
Discutir uma obra de arte, pensando bem, não é mais nem menos pessoal do que debater questões da política; e ninguém sugere que "política não se discute" (pelo menos não numa sociedade democrática). Essa lição é antiga: está na "Crítica do Juízo" de Kant, escrita em fins do século 18, nas raízes da era moderna. Para que isso não seja mal entendido: não é preciso que a crítica musical envolva temas políticos explícitos para que, de qualquer modo, ela se abra para um contexto mais amplo, envolvendo noções como liberdade, expressão e individualidade.
Ela se abre, precisamente, para a cultura. Ninguém pensa em tudo isso enquanto escuta Bach ou Mozart; e é improvável que mesmo o crítico mais autoconsciente lembre com clareza desses argumentos ao mesmo tempo em que escreve sobre a "Missa em Si Menor" ou "A Flauta Mágica". Mas também não esquece inteiramente deles. Exercer a crítica exige pelo menos uma tentativa de saber onde se está.
No nosso caso, estamos todos no Brasil, o que dá à questão outras conotações. Informação já é formação, num país tão pobre de escolas. Escolas de música, então, ou música nas escolas, pior. E, num momento como esse, em que a universidade parece ter perdido boa parte do engajamento que já teve, o jornalismo cultural pode, quem sabe, assumir um papel mais relevante. Desde que não perca o sentido de contexto, a crítica pode vestir, também, o manto da pedagogia. Simplesmente situar um leitor na floresta de nomes e correntes já seria uma ajuda considerável.
O que não é tão fácil -nem para o leitor nem para o crítico- é conjugar o aprendizado mais enciclopédico com a experiência direta da música. Duzentos anos de modernismo devem ter servido para nos ensinar que não existe relação direta com obra nenhuma, como não existe relação imediata e transparente com nada neste mundo. Mas a ilusão de imediatez existe e, em alguma medida, tem de ser preservada. A crítica pode auxiliar na divulgação e organização do conhecimento musical. Mas não existe "conhecimento" musical divorciado da escuta. Fazer escutar a música: fazer da música algo de vivo, ou mais vivo: reinventar a música, em resposta ao que ela nos dá: tudo isso é um ideal da crítica. Como todo ideal, só se realiza imperfeitamente; mas nem por isso deve ser deixado de lado, quando se fala de crítica, música e cultura.


Arthur Nestrovski é professor de literatura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor de "Ironias da Modernidade" (Ática), entre outros. O texto acima é um trecho do prefácio de seu novo livro, "Notas Musicais - Do Barroco ao Jazz", que está sendo lançado nesta semana pela PubliFolha.


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