São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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A história e análise das composições da bossa nova e a relação entre música e literatura são temas de dois lançamentos

Atalhos e descaminhos da pesquisa

A Linguagem Harmônica da Bossa Nova
248 págs., R$ 38,00 de José Estevam Gava. Ed. da Unesp (praça da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/ 3242-7171).

Literatura e Música
224 págs., R$ 24,00 de Solange Ribeiro de Oliveira. Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3885-8388).

Walter Garcia
especial para a Folha

Salvo erro de avaliação, dois lançamentos representam caminhos que, não sendo os únicos, indicam processos significativos do estudo da música na universidade. "A Linguagem Harmônica da Bossa Nova", de José Estevam Gava, originou-se de seu mestrado na Universidade Estadual Paulista , desenvolvido após o autor notar que "faltavam partituras ou análises estritamente musicais" do movimento. A intenção, contudo, foi ampliar o número de leitores potenciais para além do círculo "formado por músicos e estudantes de música". Assim, até o terceiro capítulo busca-se organizar "uma espécie de "história condensada'", deixando-se a análise harmônica para o último. A condensação, porém, apresenta deslizes indesculpáveis. O principal é a falta de referências bibliográficas no capítulo um. Sem que se indique a fonte, são emprestados do livro "Chega de Saudade", de Ruy Castro, não poucos dados e observações. Comentando "Opinião de Nara", Gava segue Castro até ressaltar com aspas uma ironia do jornalista -o disco seria uma "fuga de Ipanema". O deslize também ocorre em relação a idéias tomadas dos artigos "Balanço da Bossa Nova", de Júlio Medaglia, e "João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova", de Lorenzo Mammì.

Paráfrase
Todos esses textos ao menos integram as "Referências Bibliográficas", ao final. Fato mais grave acontece no capítulo 3, quando se lê: "A contribuição de João Gilberto está na superação da oposição entre ambas estruturas [profunda e superficial" na medida em que, sobre um repertório tonal, constrói seu canto mediante nuanças mínimas e em múltiplos níveis. João relativiza os elementos mais aparentes (superficiais) da música e os traduz ou recria por meio de nuanças entoativas, rítmicas, timbrísticas e harmônicas e por relações contrapontísticas entre voz e instrumentos, conferindo profundidade à canção" (pág. 95). O trecho é uma paráfrase de "O Som e o Sentido", de José Miguel Wisnik, ausente da bibliografia final: "João Gilberto é a superação da oposição entre o profundo e o superficial" (pág. 52); "O canto de João Gilberto trabalha sobre um repertório tonal popular "comum", mas através de uma rede precisa de nuanças mínimas em múltiplos níveis (entoativos, rítmicos, timbrísticos, harmônicos, contraponto voz/instrumento), que supõem uma leitura vertical dos bastidores da canção" (pág. 209, nota 42). Outros problemas dizem respeito ao próprio desenvolvimento do texto. Gava compila autores (citados, como se deve) e emite opiniões sem articular as partes. Hipóteses sobre o elitismo e a curta duração do movimento (1958-62), por exemplo, são lançadas atentando para as dificuldades da forma estética da bossa nova, mas páginas adiante uma outra hipótese se centra nas vigências da jovem guarda, da música de protesto e da canção sentimental, sem que as duas passagens sejam claramente relacionadas. Seja como for, a originalidade da pesquisa está prometida para a análise da harmonia. Novamente há um sério deslize. As partituras da bossa nova não tomam por base gravações da época, como Gava afirma, mas três "songbooks" produzidos por Almir Chediak e citados na bibliografia. As partituras de "Samba de uma Nota Só", "Desafinado", "Dindi", "Maria Ninguém", "O Barquinho" e "Manhã de Carnaval" discordam das gravações já na tonalidade. "Insensatez" e "Samba Triste" seguem à risca as versões de Chediak, as quais se assemelham, todavia, às gravações. "Chega de Saudade" e "Corcovado" anotam alguns acordes diversos tanto de João Gilberto quanto de Chediak. As dez partituras da velha guarda, por seu turno, respeitam as gravações indicadas. Diante disso, a análise acaba diminuída, o que é uma pena, pois o objetivo da pesquisa é inédito e interessante: comparar a harmonia da bossa nova à de canções da década de 30. Levada com rigor, daria um trabalho essencial, o que implicaria, entretanto, também a análise funcional das harmonias em estilo bossa nova (e não só das harmonias em estilo velha-guarda, como se fez), ao lado da análise da forma musical das composições. Só assim se avaliaria com precisão um dos projetos de Tom Jobim: uma melodia recorrente, por isso um tanto estática, colorida por diferentes acordes cumprindo cada uma das três funções harmônicas principais, num movimento completo. Ou se entenderia a construção musical de "O Barquinho" (estrutura melódico-harmônica executada em três tons que, na terceira vez, muda de direção e retoma a tonalidade inicial) ou da canção tradicional (duas partes, muitas vezes a primeira no modo maior e a segunda no menor). O que não se compreende é haver tantos equívocos em uma publicação do projeto "Edição de Textos de Docentes e Pós-Graduados da Unesp". Em meio a isso, as próprias contribuições (como a idéia de que os ornamentos da década de 30 passaram a determinar a harmonia da bossa nova) soam abafadas. Sintoma da urgência com que a produção acadêmica se viu obrigada a prestar contas da quantidade de títulos do seu catálogo, nos últimos anos?

Melopoética cultural
Por sua vez, "Literatura e Música", da pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais Solange Ribeiro de Oliveira, propõe uma análise interdisciplinar adequada a três tipos de obras artísticas: formas mistas, como a canção ou a ópera; músicas que se valem de técnicas literárias; textos literários que utilizam sugestões musicais.
Como se nota, o respeito à natureza dos objetos confere firmeza ao ponto de partida. A metodologia, denominada "melopoética cultural", enfatiza correspondências entre a construção das obras e o contexto social, não se limitando a um estudo formalista. Assim o trabalho se volta para o caráter híbrido de criações de "culturas marcadas pela experiência da colonização", enfatizando a feminização do dominado e o desterro espiritual dos latino-americanos como designadores, entre outros traços, da interpenetração de forma artística e dinâmica cultural -desta última excluindo infelizmente a mercantilização da arte.
Tais análises encerram uma densa exposição teórica, pois a autora lembra de início que a abordagem interdisciplinar exige "competência, rigor crítico, conhecimento". Sua pesquisa vence esses obstáculos com justeza, sem ostentar erudição, apontando um caminho que merece ser seguido por quem queira combater a rima de trabalho intelectual com marketing pessoal.


Walter Garcia é músico e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC- SP). É autor de "Bim Bom - A Contradição sem Conflitos de João Gilberto" (ed. Paz e Terra).


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