São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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Em "Os Lusíadas na Aventura do Rio Moderno", ensaístas analisam a formação e a permanência da influência portuguesa na vida carioca

Paris, Lisboa e Miami dos trópicos

Os Lusíadas na Aventura do Rio Moderno
592 págs., R$ 60,00 Carlos Lessa (org.). Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000).

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

Carlos Lessa publicou anteriormente o magnífico "Rio de Todos os Brasis", cujo título diz tudo: é a cidade síntese cultural e o espelho fiel das contradições sociais brasileiras. O recado era este: o Rio de Janeiro só vai dar certo quando o Brasil inteiro der certo. Um está indissoluvelmente imbricado no destino do outro. É a xipofagia de corpo e alma. Cosme e Damião. Nas últimas décadas, a demonização do Rio de Janeiro acompanhou o descenso da auto-estima nacional, incluindo uma espécie de condenação da nossa herança espermática: gente que não presta, gente se autodevorando na violência do câncer urbano. Genocídio em curso. Agora Carlos Lessa, economista de formação que sabe no entanto escrever bem (olha aí o nome dele a rimar com o do escritor Eça de Queiroz, para quem "o brasileiro é o português dilatado pelo calor"), organiza um livro de vários autores para evidenciar não apenas que é forte, mas que continua ainda hoje a presença lusa nas entranhas da velha São Sebastião e no espírito do carioca. A começar pela escola de samba no Carnaval. No futebol, com o time Vasco da Gama. A festa de são João. Na gastronomia, ou melhor, na culinária, Portugal se revela no dia-a-dia do carioca. Ovos coloridos. Sardinhas comidas com a mão, ou esta mistura de que o guloso Carlos Lessa é fã: "A sardinha frita com vestimenta de farinha de mandioca".

Feijoada e rabanada
O caldo verde, originário do Minho. A rabada da Beira. O polvo e as ovas de peixe do Algarve. A feijoada. A rabanada. Os mil bacalhaus. Tudo isso é Portugal em nós. É também herança portuguesa o que define o convívio e a conversa do carioca: o botequim. O divino botequim, infelizmente hoje aparvalhado com TVs e rádios aos urros.
Devemos nos regozijar com a existência de um intelectual como Carlos Lessa, aliás carioquíssimo tal qual Di Cavalcanti, apaixonado pelo que há de arquitetonicamente português no Rio.
Nas últimas décadas virou moda -moda pós-moderna que recusa o nacional- dar as costas a Portugal e sentir vergonha das nossas origens ibéricas. Carlos Lessa rema em outra direção e aponta que debalde o prefeito-engenheiro Pereira Passos, no início do século 20, se empenhou em transformar o Rio na Paris dos trópicos. Teatro Municipal. Avenida Central, hoje Rio Branco. Culturalmente foi a época de renegar-se Portugal: saiu o violão e entrou o piano.
Mas, não obstante o Rio "rococôbellepoquiano", o afrancesado Rio can-can, a cidade permaneceu com feição lusa, ou melhor, luso-brasileira. A mesma coisa ocorre hoje em dia. Concreto armado. Arranha-céu. O Rio de Janeiro ianquizado com o McDonald's anunciando que tudo está "on sale" ou "off price".
Já foi cogitado por marqueteiro imbecil demolir o morro Dois Irmãos para imitar Miami, com a emergente e kitsch Barra da Tijuca, cujo alter ego na arquitetura é o cafona shopping center.
Contudo, apesar dos ventos globalizantes e pós-modernos da "fernandécada", o Rio de Janeiro não virou a Miami da América Latina. Nele continua onipresente a matriz lusíada, para gáudio de Carlos Lessa.
É muito bom que se tenha na Universidade Federal do Rio de Janeiro um reitor que, do ponto de vista cultural, descende de um Oswald de Andrade e de um Gilberto Freyre. O mundo que o português criou. Deste nasce como rebento o mestiço carioca que, no dizer de Carlos Lessa, "é um mestre na arte da subsistência".
De Oswald de Andrade, além do conceito antropofágico sobre o sanduíche chamado "xistudo", Carlos Lessa elogia a expulsão dos holandeses como um momento decisivo da proto-identidade cultural do homem brasileiro. As três etnias, lusa, africana e ameraba, se juntaram na guerra contra os estrangeiros.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Biomassa" (ed. Senac).

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