São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2001

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Slavoj Zizek

Critérios de humanidade


O horizonte último da "política de identidades" pós-moderna não é o darwinismo -isto é, a defesa do direito de algumas espécies humanas em meio à variedade de sua multidão proliferante (gays com Aids, mães negras solteiras etc.)?



O rato foi, por assim dizer, humanizado, assumiu a relação trágica que os homens mantêm com aquele objeto absoluto inatingível que cativa eternamente nosso desejo


Em seu livro maravilhoso sobre o "Medo no Ocidente" (Cia. das Letras), Jean Delumeau relata como uma comunidade medieval reagiu à ameaça da peste por meio de seis passos que se sucediam com necessidade inexorável: de início, tocaram a vida como se não houvesse doença nenhuma; depois, atribuíram cada caso novo a uma outra doença, menos maligna; em seguida, admitiram que havia uma doença, mas restrita e controlada; logo depois, a paranóia irrompeu e as pessoas começaram a evitar qualquer contato; vieram então a explosão de fervor religioso, a tentativa de entender a doença como punição divina e a procura por algum tipo de expiação; em seguida, a fase do "que diabos!", todos se entregando a festins de bebida, comida e sexo; finalmente, por mais que a doença ainda grassasse, as pessoas tentaram tocar suas vidas como de hábito... Não é razoável pensar que nossas reações à doença da vaca louca seguirão um curso similar? Negação integral; declarações de que a doença está sob controle completo; paranóia generalizada (a doença pode estar em toda parte, no leite, na carne de porco e de frango, em vacas já testadas); a atitude religiosa e new age, para a qual a doença da vaca louca tem "um sentido mais profundo" (punição pelo tratamento inclemente que damos aos animais); a atitude de mandar tudo para o diabo; e finalmente algum tipo de retorno ao normal: quem sabe o que está realmente acontecendo, por que não viver como antes? Caso se implemente o plano da União Européia de sacrificar 2 milhões de vacas, 400 mil delas na Alemanha, a diferença entre seres humanos e animais ver-se-á reafirmada de modo perverso: no caso do Holocausto, se afirmava publicamente que os judeus eram apenas transferidos para um território inominado a leste, quando na verdade eram mortos e incinerados na própria Alemanha; as 400 mil vacas serão nominalmente sacrificadas e incineradas na própria Alemanha, quando, na verdade, ao menos parte delas será vendida (ou doada) a países inominados do Terceiro Mundo. Com efeito, piadas de mau gosto à parte, a lição da doença da vaca louca não diz respeito justamente à natureza problemática da distinção entre animais e humanos? Será moralmente correto sacrificar milhões de vacas a fim de salvar uma dúzia ou mais de vítimas humanas potenciais? Há pelo menos um filósofo moral cuja resposta seria um "não" retumbante -Peter Singer, o australiano cujos livros são vendidos aos milhares e que precisa de um guarda-costas para protegê-lo de ataques em Harvard, onde leciona atualmente. Singer não é controverso por adotar algum axioma extravagante, mas simplesmente porque tira as últimas consequências de axiomas comumente aceitos, ignorando distinções tácitas que nos permitem evitar tais conclusões desagradáveis. Singer -geralmente descrito como "darwinista social com pendores socialistas e coletivistas"- começa de modo até inocente, tentando mostrar que nossas vidas seriam mais felizes se tivéssemos compromissos éticos: uma vida dedicada a ajudar os outros e reduzir seu sofrimento é de fato a vida mais moral e satisfatória.

Primo próximo
Ele radicaliza e atualiza Jeremy Bentham, o pai do utilitarismo: o critério ético supremo não é a dignidade (ou a racionalidade, ou a alma) humana, mas a capacidade de sofrer, de sentir dor, a qual o homem compartilha com os animais. Com radicalidade inexorável, Singer nivela a barreira entre seres humanos e animais: mais vale matar uma velhota decrépita do que animais saudáveis. Observe um orangotango, olho no olho -o que você vê? Um primo não muito distante, uma criatura digna de todos os direitos e privilégios legais de que os homens desfrutam. Deveríamos, portanto, estender certos aspectos da igualdade -o direito à vida, a proteção às liberdades individuais, a proibição da tortura- ao menos aos grandes primatas não-humanos (chimpanzés, orangotangos, gorilas). Singer argumenta que o privilégio que concedemos à espécie humana não difere do racismo: nossa percepção de uma diferença entre seres humanos e os outros animais não é menos avessa à lógica e à ética do que nossas velhas percepções de uma diferença ética entre, digamos, homens e mulheres ou negros e brancos. A inteligência não serve de critério de determinação da estatura ética: as vidas dos seres humanos não são mais valiosas do que as vidas dos animais simplesmente por exibirem mais inteligência (se a inteligência fosse padrão de julgamento, aponta Singer, poderíamos impunemente realizar experimentos médicos com retardados mentais). Em última análise, e dada sua igualdade fundamental, um animal tem tanto interesse em viver quanto um humano. Portanto, e dada sua igualdade fundamental, experimentos médicos com animais são imorais. Os defensores desses experimentos afirmam que sacrificar a vida de 20 animais salvará milhões de vidas humanas -mas o que dizem de sacrificar 20 seres humanos para salvar milhões de animais? Os críticos de Singer gostam de apontar a conclusão horripilante desse princípio: os interesses de 20 pessoas superam os interesses de uma, o que dá luz verde para todo o tipo de abuso dos direitos humanos. Em resposta, Singer propõe que não podemos mais recorrer à ética tradicional para resolver os dilemas que nossa constelação nos impõe; ele propõe uma nova ética, voltada para a proteção da qualidade da vida humana -não de sua santidade. À medida que se dissolvem os limites nítidos entre vida e morte, seres humanos e animais, essa nova ética lança dúvidas sobre a moralidade da pesquisa com animais, ao mesmo tempo em que exprime simpatia pelo infanticídio. Quando bebês nascem com deformações severas, que de outro modo os levariam à morte, será que médicos e pais têm a obrigação moral de usar a tecnologia mais avançada para mantê-los vivos, seja lá qual for o custo? Não! Quando uma gestante perde todas as suas funções cerebrais, será que os médicos deveriam lançar mão de todos os procedimentos disponíveis para manter seu corpo vivo até que o bebê nasça? Não! Será que um médico pode, dentro das regras da ética, auxiliar pacientes terminais que desejam morrer? Sim!

Extravagância monstruosa
Não se pode descartar Singer como extravagância monstruosa -o que Adorno dizia da psicanálise (sua verdade reside em seus exageros) vale bem para Singer: ele é tão traumático e intolerável porque seus exageros "escandalosos" tornam diretamente visível a verdade da assim chamada ética pós-moderna. Afinal de contas, o horizonte último da "política de identidades" pós-moderna não é o darwinismo -isto é, a defesa do direito de algumas espécies humanas em meio à variedade de sua multidão proliferante (gays com Aids, mães negras solteiras etc.)? Até mesmo a oposição entre política "conservadora" e "progressista" pode ser concebida nos termos do darwinismo: em última análise, os conservadores defendem os direitos dos poderosos (cujo sucesso é prova de que venceram na luta pela sobrevivência), ao passo que os "progressistas" advogam a proteção das espécies humanas periclitantes, isto é, daquelas que estão perdendo na luta pela sobrevivência.
Uma das subdivisões do capítulo sobre a razão na "Fenomenologia do Espírito" de Hegel fala do "reino animal espiritual": o mundo social destituído de substância espiritual, de tal modo que, nele, os indivíduos interagem como "animais inteligentes". Fazem uso da razão, mas tão-somente de modo a impor seus interesses individuais, a manipular os outros em prol de seus próprios prazeres. Um mundo em que os direitos supremos são direitos humanos não é, com efeito, um "reino animal espiritual"? Há contudo um preço a ser pago por essa liberação: num universo assim, os direitos humanos funcionam em última análise como direitos animais. Essa é a verdade fundamental de Singer: nosso universo de direitos humanos é um universo de direitos animais.
O contra-argumento mais óbvio reza assim: e daí? Por que não reduzir a espécie humana a seu devido lugar entre as demais espécies animais? O que se perde nessa redução? Jacques-Alain Miller, o principal discípulo de Lacan, comentou certa vez um sinistro experimento de laboratório com ratos: num ambiente labiríntico, põe-se um objeto desejado (um naco de comida ou uma parceira sexual) à disposição de um rato; em seguida, o ambiente é alterado de modo que o rato veja e saiba onde está o objeto desejado, mas não possa ter acesso a ele; em troca, como prêmio de consolação, uma série de objetos semelhantes, mas de valor inferior, é colocada à sua disposição. Como o rato reage? Por algum tempo, ele tenta encontrar o caminho para o "verdadeiro" objeto; em seguida, constatando que o objeto está definitivamente fora de alcance, o rato renuncia a ele e se contenta com objetos substitutos inferiores ou, por outra, age como o sujeito "racional" do utilitarismo.

O verdadeiro experimento
Mas é então que o verdadeiro experimento tem início: os cientistas realizaram uma intervenção cirúrgica no rato, remexendo em seu cérebro, realizando descargas de laser sobre as quais, diz Miller, é melhor não saber nada. O que aconteceu quando o rato operado foi solto no labirinto com o objeto inacessível? O rato insistiu: não se conformou mais com a perda do "verdadeiro" objeto nem se resignou a um de seus substitutos inferiores, mas repetidamente tentou voltar e chegar a ele.
Em suma, o rato foi por assim dizer humanizado, assumiu a relação trágica que os homens mantêm com aquele objeto absoluto inatingível que, por sua própria inacessibilidade, cativa eternamente nosso desejo. Por outro lado, é essa mesmíssima fixação "conservadora" que impele o homem à renovação contínua, uma vez que ele jamais consegue integrar esse excesso em seu processo vital.
Podemos entender por que Freud usou o termo "pulsão de morte": a lição da psicanálise é que os homens não estão apenas vivos; mais do que isso, eles são possuídos por um estranho impulso a gozar a vida além do curso ordinário das coisas, e a "morte" vale simples e precisamente como dimensão além da vida biológica comezinha.
Eis então o que se perde no "reino animal espiritual" de Singer: a Coisa, aquele algo a que somos incondicionalmente ligados, sejam quais forem suas qualidades positivas. No universo de Singer há lugar para vacas loucas, mas não para uma vaca sagrada hindu.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Samuel Titan Jr..

O que ler:
Peter Singer, "The Essential Singer: Writings on an Ethical Life" (Nova York, Ecco Press, 2000), que pode ser encomendado na www.amazon.com


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