São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2001

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Otimismo da belle époque é tema de "1890-1914 - No Tempo das Certezas"

Quando o mundo era uma festa

Moacyr Scliar
Colunista da Folha

A história é uma estória, disse Millôr, usando o expressivo silogismo criado por Guimarães Rosa a partir de "story". Nem todos concordariam. Durante muito tempo os historiadores, em busca de uma visão científica para seu empreendimento, procuraram consagrar a diferença entre estória (ficção) e história (ciência, ou tendente a), sacrificando a essa diferença o prazer do texto de que fala Barthes.
Historiografia tinha de ser erudita -e chata. Mas aí vêm Fernand Braudel e os historiadores dos Annales e mostram que a boa história pode também gerar uma emocionante narrativa. Entre nós a Companhia das Letras consagrou essa tendência por meio de notáveis lançamentos, principalmente em coleções como "História da Vida Privada" e "História da Vida Privada no Brasil".
Uma nova coleção, menos maciça, mas igualmente brilhante, é "Virando Séculos", que começou com "O Ano Mil" (Hilário Franco Júnior) e continuou examinando os finais dos últimos quatro séculos. O mais recente volume da série é "1890-1914 - No Tempo das Certezas", de Ângela Marques da Costa e Lilia Moritz Schwarcz, autora de "As Barbas do Imperador" (Prêmio Jabuti).
Basta folhear o relativamente pequeno volume (176 páginas) para entender a razão do sucesso da coleção junto ao público em geral. O que temos aqui é um texto arejado, bem dividido e, o que é importante, farta e belamente ilustrado. É uma obra de divulgação? Sim, é uma obra de divulgação, mas é, principalmente, uma obra de análise, de idéias. Ângela e Lilia mostram que o século 20 (que para muitos de nós continuará sendo, em termos de tempo, o referencial básico) foi, como diz o subtítulo, um período de certeza. É verdade que a esse se seguiria a "Era da Incerteza", na expressão consagrada pelo hoje um tanto esquecido Galbraith.
Mas os 25 anos abrangidos no estudo são uma época de inusitado otimismo, causado sobretudo pela ascensão da ciência, que passou então a ser sinônimo de progresso. Porque não se tratava de ciência pura, e sim de ciência voltada para a tecnologia, a indústria e o comércio. Trata-se da locomotiva a vapor, trata-se da luz elétrica, do telégrafo. A isso correspondia uma generalizada euforia, uma alegria maníaca; não por outra razão, lembram as autoras, essa é a belle époque. O mundo, ao menos o mundo dito civilizado, era uma festa; parafraseando Hemingway, uma festa para a qual nem todos eram convidados, mas a que, de longe, todos podiam assistir.
O começo do século foi marcado pela Exposição Universal de Paris (exposições e feiras estavam em moda), na qual a eletricidade era a atração maior. Eram tantas as invenções que muitas vezes chegavam a suscitar ceticismo. A luz elétrica não passava de um truque, de um engodo francês, sustentava o professor Erasmus Wilson (Oxford). Os raios X? Uma mistificação, para o físico lorde Kelvin. O avião? "Brinquedo interessante, mas sem utilidade militar", para o marechal Foch.
O notável surto científico-tecnológico acompanhou a Segunda Revolução Industrial (a primeira se apoiara no tripé ferro-carvão-vapor). A explosão produtiva exigiu a conquista de novos mercados, sob a forma de neocolonialismo ou imperialismo (alguém ainda se lembra desse termo?). Recentemente o Mais! lembrou, por meio de um belo artigo de Nicolau Sevcenko, o centenário da morte da rainha Vitória. "Durante seu reinado", dizem as autoras, "a Inglaterra garantiu não só o domínio político-militar, como impôs um modelo moral".
A moral vitoriana, autoritária, repressiva, criou situações de conflito psicológico severo, exploradas por escritores como Eça de Queirós e Oscar Wilde, ambos mortos em 1900. Desse ano data também "A Interpretação dos Sonhos", a obra em que Sigmund Freud começa a explorar aquele escuro porão da mente, o inconsciente. Aliás, o próprio lançamento do livro é um exemplo da "mística do século": foi publicado em 1899, mas a editora optou por datá-lo de 1900.
A maior parte da obra, contudo, é dedicada ao Brasil, que, sob o regime republicano, procurava entrar em sintonia com o progresso mundial. O Rio de Janeiro, capital, deveria se transformar no cartão-postal do país; daí a reforma urbana de Pereira Passos, que procurava copiar o modelo implantado em Paris pelo barão Haussmann, abrindo largas avenidas que facilitassem o trânsito e dificultassem a construção de barricadas. Nos dois casos, a truculência foi a regra. Autoritarismo também foi a marca de Oswaldo Cruz, o saneador da cidade. Essa modernização não foi feita sem conflito; a vacinação obrigatória, por exemplo, gerou a "revolta da vacina" (1904). Essa também foi uma época de conflitos messiânicos, como os de Contestado e Canudos.
O próprio perfil da população muda, "branqueia", com a maciça entrada de emigrantes, que vinham principalmente para a cafeicultura. O otimismo traduzia-se nos anúncios de jornais, que anunciavam novidades como o "lápis perpétuo" (isto é, a lapiseira). Nas ruas circulavam os bondes e os primeiros automóveis. Em 1903, Santos Dumont, o "brasileiro voador", era louvado em uma composição popular que começa anunciando: "A Europa se curvou ante o Brasil". Ou seja: o otimismo da época tinha chegado aqui. O Brasil ia às feiras internacionais não só para ver as últimas novidades da tecnologia, mas também para apresentar seus próprios inventos.
Um dos capítulos mais interessantes e originais do livro é aquele em que são apresentados exemplos da criatividade brasileira: um projeto de uma cadeira contra enjôo no mar ("quanto mais se balança, menos se enjoa"), de um "seringueiro mecânico", capaz de substituir os trabalhadores em seringais, de um chuveiro portátil e de um sabonete flutuante. E não faltam testemunhos dos autores da época, como Olavo Bilac e Lima Barreto.
Ângela e Lilia mostram que a História, com H maiúsculo, pode -em termos de prazer- ser lida como estória. E fazem o leitor lamentar que o próximo fim de século ainda esteja longe.


Moacyr Scliar é escritor e colunista da Folha, autor, entre outros, de "Os Leopardos de Kafka".



1890-1914 - No Tempo das Certezas
184 págs., R$ 22,00
de Lilia Moritz Schwarcz e Ângela Marques da Costa. Companhia das Letras.




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