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Otimismo da belle époque é tema de "1890-1914 - No Tempo das Certezas"
Quando o mundo era uma festa
Moacyr Scliar
Colunista da Folha
A história é uma estória, disse Millôr, usando o expressivo silogismo criado por Guimarães Rosa a
partir de "story". Nem todos
concordariam. Durante muito tempo os
historiadores, em busca de uma visão
científica para seu empreendimento,
procuraram consagrar a diferença entre
estória (ficção) e história (ciência, ou
tendente a), sacrificando a essa diferença
o prazer do texto de que fala Barthes.
Historiografia tinha de ser erudita -e
chata. Mas aí vêm Fernand Braudel e os
historiadores dos Annales e mostram
que a boa história pode também gerar
uma emocionante narrativa. Entre nós a
Companhia das Letras consagrou essa
tendência por meio de notáveis lançamentos, principalmente em coleções como "História da Vida Privada" e "História da Vida Privada no Brasil".
Uma nova coleção, menos maciça, mas
igualmente brilhante, é "Virando Séculos", que começou com "O Ano Mil"
(Hilário Franco Júnior) e continuou examinando os finais dos últimos quatro séculos. O mais recente volume da série é
"1890-1914 - No Tempo das Certezas", de
Ângela Marques da Costa e Lilia Moritz
Schwarcz, autora de "As Barbas do Imperador" (Prêmio Jabuti).
Basta folhear o relativamente pequeno
volume (176 páginas) para entender a razão do sucesso da coleção junto ao público em geral. O que temos aqui é um texto
arejado, bem dividido e, o que é importante, farta e belamente ilustrado. É uma
obra de divulgação? Sim, é uma obra de
divulgação, mas é, principalmente, uma
obra de análise, de idéias. Ângela e Lilia
mostram que o século 20 (que para muitos de nós continuará sendo, em termos
de tempo, o referencial básico) foi, como
diz o subtítulo, um período de certeza. É
verdade que a esse se seguiria a "Era da Incerteza", na expressão consagrada pelo hoje um tanto
esquecido Galbraith.
Mas os 25 anos abrangidos no estudo são uma
época de inusitado otimismo, causado sobretudo pela ascensão da ciência, que passou
então a ser sinônimo de progresso. Porque não se tratava de ciência pura, e sim
de ciência voltada para a tecnologia, a indústria e o comércio. Trata-se da locomotiva a vapor, trata-se da luz elétrica,
do telégrafo. A isso correspondia uma
generalizada euforia, uma alegria maníaca; não por outra razão, lembram as autoras, essa é a belle époque. O mundo, ao
menos o mundo dito civilizado, era uma
festa; parafraseando Hemingway, uma
festa para a qual nem todos eram convidados, mas a que, de longe, todos podiam assistir.
O começo do século foi marcado pela
Exposição Universal de Paris (exposições e feiras estavam em moda), na qual
a eletricidade era a atração maior. Eram
tantas as invenções que muitas vezes
chegavam a suscitar ceticismo. A luz elétrica não passava de um truque, de um
engodo francês, sustentava o professor
Erasmus Wilson (Oxford). Os raios X?
Uma mistificação, para o físico lorde
Kelvin. O avião? "Brinquedo interessante, mas sem utilidade militar", para o
marechal Foch.
O notável surto científico-tecnológico
acompanhou a Segunda Revolução Industrial (a primeira se apoiara no tripé
ferro-carvão-vapor). A explosão produtiva exigiu a conquista de novos mercados, sob a forma de neocolonialismo ou
imperialismo (alguém ainda se lembra
desse termo?). Recentemente o Mais!
lembrou, por meio de um belo artigo de
Nicolau Sevcenko, o centenário da morte
da rainha Vitória. "Durante seu reinado", dizem as autoras, "a Inglaterra garantiu não só o domínio político-militar,
como impôs um modelo moral".
A moral vitoriana, autoritária, repressiva, criou situações de conflito psicológico severo, exploradas por escritores como Eça de Queirós e Oscar Wilde, ambos
mortos em 1900. Desse ano data também
"A Interpretação dos Sonhos", a obra em
que Sigmund Freud começa a explorar aquele
escuro porão da mente, o
inconsciente. Aliás, o próprio lançamento do livro
é um exemplo da "mística
do século": foi publicado
em 1899, mas a editora
optou por datá-lo de 1900.
A maior parte da obra, contudo, é dedicada ao Brasil, que, sob o regime republicano, procurava entrar em sintonia com
o progresso mundial. O Rio de Janeiro,
capital, deveria se transformar no cartão-postal do país; daí a reforma urbana
de Pereira Passos, que procurava copiar
o modelo implantado em Paris pelo barão Haussmann, abrindo largas avenidas
que facilitassem o trânsito e dificultassem a construção de barricadas. Nos dois
casos, a truculência foi a regra. Autoritarismo também foi a marca de Oswaldo
Cruz, o saneador da cidade. Essa modernização não foi feita sem conflito; a vacinação obrigatória, por exemplo, gerou a
"revolta da vacina" (1904). Essa também
foi uma época de conflitos messiânicos,
como os de Contestado e Canudos.
O próprio perfil da população muda,
"branqueia", com a maciça entrada de
emigrantes, que vinham principalmente
para a cafeicultura. O otimismo traduzia-se nos anúncios de jornais, que anunciavam novidades como o "lápis perpétuo" (isto é, a lapiseira). Nas ruas circulavam os bondes e os primeiros automóveis. Em 1903, Santos Dumont, o "brasileiro voador", era louvado em uma composição popular que começa anunciando: "A Europa se curvou ante o Brasil".
Ou seja: o otimismo da época tinha chegado aqui. O Brasil ia às feiras internacionais não só para ver as últimas novidades
da tecnologia, mas também para apresentar seus próprios inventos.
Um dos capítulos mais interessantes e
originais do livro é aquele em que são
apresentados exemplos da criatividade
brasileira: um projeto de uma cadeira
contra enjôo no mar ("quanto mais se
balança, menos se enjoa"), de um "seringueiro mecânico", capaz de substituir os
trabalhadores em seringais, de um chuveiro portátil e de um sabonete flutuante.
E não faltam testemunhos dos autores da
época, como Olavo Bilac e Lima Barreto.
Ângela e Lilia mostram que a História,
com H maiúsculo, pode -em termos de
prazer- ser lida como estória. E fazem o
leitor lamentar que o próximo fim de século ainda esteja longe.
Moacyr Scliar é escritor e colunista da Folha, autor, entre outros, de "Os Leopardos de Kafka".
1890-1914 - No Tempo
das Certezas
184 págs., R$ 22,00
de Lilia Moritz Schwarcz e Ângela Marques da Costa. Companhia das Letras.
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