São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2001

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Ensaios do sociólogo José de Souza Martins criticam o MST por sua postura que deslegitimiza o Estado

Reforma agrária reduzida

Marco Antonio Villa
especial para a Folha

O sociólogo José de Souza Martins, autor de vasta obra, acaba de lançar "Reforma Agrária - O Impossível Diálogo", uma coletânea de quatro ensaios acompanhados de uma longa introdução que ocupa mais de um terço do livro, desproporcional à harmonia do conjunto. Dos ensaios, o quarto não se justifica em um livro que trata da reforma agrária, pois é um texto voltado à discussão do que, para Martins, permanece na crítica socialista ao capitalismo. Mas vamos ao livro. Lembra o autor que a questão agrária "nos divide como povo, nos separa e nos confronta no terreno da intolerância, ou no terreno da indiferença, ou no terreno dos oportunismos e instrumentalizações extemporâneos e descabidos". Assim, logo de início, Martins polemiza com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), mas sobretudo com o primeiro, acusado de rejeitar a legitimidade do Estado, o que termina por impossibilitar negociações com o governo federal que poderiam resultar no aprofundamento da reforma agrária. Segundo o autor, o MST tem uma retórica antagonística e deslegitimadora; em seu livro, utopia dos sem-terra é transformada em uma ideologia partidária e reducionista, que só nega, mas não transforma a estrutura fundiária. Continuando no terreno das críticas ao MST, Martins considera que o movimento não compreende o funcionamento de uma sociedade moderna e democrática nem a sua própria existência. Pressiona o governo e, quando este atende a demanda, logo em seguida condena-o por atendê-los, pois o governo, supostamente, age somente sob pressão. Martins também ataca o movimento por considerar que a reforma agrária é decisão exclusiva do presidente da República, sem compreender os meandros do funcionamento do poder. Muitos dos intelectuais do MST, segundo o autor, desconhecem a obra de Marx e só repetem chavões de manuais, sendo produtores de "um materialismo mambembe". Em suma, tanto o MST quanto a CPT não "oferecem perspectivas de saída política para elas no marco da lei e da ordem. Pois para isso é preciso ganhar eleições e, não as ganhando, é preciso estar disponível para a negociação política de questões como essa, que são questões sociais e nacionais, suprapartidárias".

Pacto nacional
Para Martins, a reforma agrária -que só será alcançada por um pacto nacional- é o meio de incorporar ao capitalismo os camponeses sem terra e de democratizar o Estado brasileiro, e não, como imagina o MST, um caminho para o socialismo. Lembra ainda que, entre os maiores adversários da reforma agrária, está o grande capital, que se tornou grande proprietário de terras durante a ditadura militar graças aos incentivos fiscais. E chega a mais uma conclusão polêmica: "A efetiva demanda por reforma agrária é constituída pelos 60 mil sem-terra acampados nas ocupações". Segundo o autor, os outros 4,5 milhões de famílias de sem-terra não assumem essa identidade e "isso é o que conta politicamente".
As teses de Martins são polêmicas e, algumas delas, de difícil sustentação. É evidente que a demanda por terra não é representada por somente 60 mil famílias que estão acampadas, pois seria a mesma coisa que dizer que a demanda dos operários só é representada por aqueles que estão em greve. Por outro lado, a crítica aos intelectuais que assessoram o MST e a CPT tem um tom rancoroso, dando a entender que o sociólogo da USP não é mais ouvido pela liderança como era nos anos 70 e 80.
Mas isso não causa estranheza, pois, ao desqualificar a ação do MST, ao ignorar o massacre de camponeses -Eldorado do Carajás não foi citado uma vez sequer- e ao afirmar que o Partido dos Trabalhadores estabeleceu alianças no Congresso com a União Democrática Ruralista, o autor acabou assumindo o papel de um sociólogo complacente com o poder, muito distante daquele José de Souza Martins de "O Cativeiro da Terra" (ed. Hucitec) ou de "A Militarização da Questão Agrária no Brasil" (ed. Vozes), livros que marcaram época na sociologia agrária brasileira.
Deve ser lembrado também que o livro padece, por um lado, da excessiva citação dos seus próprios trabalhos, e, de outro, do esquecimento (proposital?) de sociólogos que não rezam pela cartilha da sociologia uspiana (por exemplo, os pesquisadores das universidades cariocas são ignorados). Agora resta esperar o desenrolar dessa polêmica -extremamente saudável para os rumos da reforma agrária, pois, certamente, o autor receberá a devida resposta do MST e da CPT- para que possamos ter um verdadeiro diálogo que esclareça os atores políticos e, por conseguinte, estenda a cidadania -com propriedade da terra- aos milhões de camponeses sem terra, como defendido há mais de um século por Joaquim Nabuco e André Rebouças.


Marco Antonio Villa é professor de história da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros, de "Vida e Morte no Sertão - História das Secas do Nordeste nos Séculos 19 e 20" (Ed. Ática).



Reforma Agrária - O Impossível Diálogo
176 págs., R$ 21,00
de José de Souza Martins. Edusp (av. prof. Luciano Gualberto, 374,travessa J / 6º andar, São Paulo, SP. tel. 0/ xx/11/ 3818-4006).




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