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Em defesa do ciberleninismo
Slavoj Zizek
Nesta época de mudanças rápidas e contínuas, da "revolução
digital" ao recuo a antigas formas sociais, mais que nunca o
pensamento é exposto à tentação de
"perder a coragem", de abandonar precocemente as antigas coordenadas conceituais. A mídia nos bombardeia constantemente com a necessidade de esquecer os "velhos paradigmas": para sobreviver, devemos modificar nossas idéias
mais fundamentais de identidade pessoal, sociedade, meio ambiente etc.
A sabedoria da Nova Era afirma que
estamos entrando numa era "pós-humana"; desde o surgimento da egopsicologia nos anos 30, os psicanalistas estão
"perdendo a coragem", baixando os braços (teóricos), apressando-se a admitir
que a matriz edipiana da socialização
não é mais operante, que vivemos numa
época de perversão generalizada, que o
conceito de "repressão" é inútil nestes
tempos permissivos; o pensamento político pós-moderno nos diz que estamos
entrando nas sociedades pós-industriais,
em que as antigas categorias de trabalho,
coletividade, classe etc. são zumbis teóricos, que não se aplicam mais à dinâmica
da modernização...
A ideologia e prática política da Terceira Via é efetivamente o modelo dessa
derrota, dessa incapacidade de reconhecer que o novo está aqui para permitir
que o antigo sobreviva. Contra essa tentação deveríamos seguir o modelo insuperado de Pascal e fazer a difícil pergunta: como podemos continuar fiéis ao antigo nas novas condições? Somente dessa
maneira poderemos gerar algo efetivamente novo.
Esquema natural Uma das ironias da história recente é que foi a antiga, infame e semi-esquecida dialética marxista
das forças produtivas e das relações de
produção que enterrou o socialismo
realmente existente: o socialismo não foi
capaz de suportar a passagem da economia industrial para a pós-industrial.
No entanto o capitalismo realmente
oferece um esquema "natural" de relações de produção para o universo digital? Não existe na World Wide Web um
potencial explosivo também para o próprio capitalismo? Talvez devamos nos
arriscar aqui a rever as idéias de Lênin
sobre como o caminho para o socialismo
passa pelo terreno do monopólio capitalista, que podem parecer perigosamente
ingênuas hoje:
"O capitalismo criou um aparato contábil na forma de bancos, sindicatos, serviço postal, associações de consumidores e de empregados de escritórios. Sem
os grandes bancos, o socialismo seria impossível. (...) Nossa tarefa aqui é meramente podar o que capitalisticamente
mutila esse excelente aparato e torná-lo
ainda maior, ainda mais democrático,
ainda mais abrangente. (...) Isso será
uma escrituração nacional, uma contabilidade nacional da produção e distribuição de bens, será, por assim dizer, algo na natureza do esqueleto da sociedade socialista."
Contra essa citação, evidentemente é
fácil tocar a melodia da "crítica da razão
instrumental" e do "mundo administrado": os potenciais "totalitários" estão
inscritos nessa própria forma de controle social total -na época de Stálin, o aparato administrativo social efetivamente
se tornou "ainda maior"? Mas as coisas
seriam realmente tão inequívocas?
E se substituirmos o exemplo (obviamente datado) do Banco Central pela
World Wide Web, hoje o candidato perfeito a Intelecto Geral? Dorothy Sayers
afirmou que a "Poética", de Aristóteles, é
efetivamente a teoria das novelas policiais avant la lettre -como o pobre Aristóteles ainda não conhecia as novelas policiais, precisou discutir os únicos exemplos disponíveis, as medíocres e entediantes tragédias... Seguindo essa mesma
linha, Lênin estava na verdade criando a
teoria do papel da World Wide Web,
mas, como não conhecia a WWW, teve
de tratar dos infelizes bancos centrais.
Consequentemente, também se poderia
dizer que "sem a World Wide Web, o socialismo seria impossível. (...) Nossa tarefa aqui é meramente podar o que capitalisticamente mutila esse excelente aparato, torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais abrangente"?
A lição do monopólio da Microsoft não
é então a leninista: em vez de combater
seu monopólio por meio do aparato de
Estado (lembre-se da divisão da Microsoft decretada pelos juízes), não seria
mais "lógico" socializar a empresa, tornando-a livremente acessível?
O antagonismo-chave das chamadas
novas indústrias (digitais) é o seguinte:
como manter a forma de propriedade
(privada) em que só a lógica do lucro se
sustenta (lembre-se também do problema do Napster)? E as complicações jurídicas na biogenética também não apontam na mesma direção? O elemento-chave dos novos acordos comerciais internacionais é a "proteção da propriedade
intelectual": nas fusões em que uma
grande companhia do Primeiro Mundo
assume o controle de uma companhia
do Terceiro Mundo, a primeira coisa que
se faz sempre é fechar o departamento de
pesquisa. Aqui surgem fenômenos que
levam a idéia de propriedade a extraordinários paradoxos dialéticos: na Índia, as
comunidades locais descobriram de repente que as práticas médicas e os materiais que usam há séculos hoje são de
propriedade de empresas americanas,
por isso têm de comprá-los delas; nas
empresas de biogenética que patenteiam
genes estamos descobrindo que partes
de nós mesmos, nossos componentes
genéticos, já estão patenteadas, são de
propriedade alheia...
O que tudo isso significa é que a tarefa
urgente da análise econômica hoje é repetir a "crítica da economia política" de
Marx, sem sucumbir à tentação da multidão de ideologias das sociedades "pós-industriais". A mudança-chave envolve
o status da propriedade privada: o elemento definitivo de poder e controle não
é mais o último elo na cadeia de investimentos, a firma ou o indivíduo que
"realmente possui" os meios de produção. O capitalista ideal hoje funciona de
forma totalmente diferente: investe dinheiro emprestado, nada ""possui realmente", está mesmo endividado, mas
não obstante controla o rumo das coisas.
Uma empresa é possuída por outra
empresa, que também empresta dinheiro dos bancos, que podem em última
instância manipular dinheiro de propriedade de pessoas comuns como nós.
Com Bill Gates, a "propriedade privada
dos meios de produção" torna-se sem
sentido, pelo menos no significado comum do termo.
O paradoxo dessa virtualização do capitalismo é afinal o mesmo do elétron na
física de partículas elementares. A massa
de cada elemento de nossa realidade se
compõe da massa em repouso mais o excedente gerado pela aceleração de seu
movimento; no entanto a massa de um
elétron em repouso é zero, sua massa
consiste apenas no excedente gerado pela aceleração de seu movimento, como se
estivéssemos lidando com um nada que
adquire certa substância ilusória simplesmente girando sobre si mesmo e gerando um excesso de si mesmo.
O capitalista ideal hoje funciona de forma totalmente diferente: investe dinheiro emprestado, nada "possui realmente", está mesmo endividado, mas não obstante controla o rumo das coisas; com Bill Gates, a "propriedade privada dos meios de produção" torna-se sem sentido, pelo menos no significado comum do termo
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O capitalista virtual de hoje funciona
de maneira semelhante -seu "valor líquido" é zero, ele opera diretamente apenas com o excedente, tomando emprestado do futuro. No entanto o resultado
dessa crise da propriedade privada dos
meios de produção não é de maneira alguma garantida -é aqui que devemos
levar em conta o paradoxo máximo da
sociedade stalinista: contra o capitalismo, que é a sociedade de classes, mas em
princípio igualitária, sem divisões hierárquicas diretas, o stalinismo "maduro"
é uma sociedade sem classes articulada
em grupos hierárquicos precisamente definidos (a alta nomenclatura, a inteligência técnica, o Exército...). Talvez a ironia máxima da história seja que, assim
como a visão de Lênin do "socialismo de
Banco Central" só pode ser lida de maneira adequada retroativamente, por
meio da World Wide Web, a União Soviética forneceu o primeiro modelo de
sociedade desenvolvida "pós-propriedade", do verdadeiro "capitalismo tardio",
em que a classe dominante será definida
pelo acesso direto aos meios (informáticos, administrativos) de poder e controle
social e a outros privilégios materiais e
sociais: o importante não será mais possuir empresas, mas diretamente dirigi-las, ter o direito de usar um jato particular, ter acesso a assistência médica de alta
qualidade etc. -privilégios que serão
adquiridos não pela propriedade, mas
por outros mecanismos (educacional,
administrativo etc.).
Produção imaterial A alternativa desqualificadora da teoria radical atual é: o que fazer a respeito da crescente importância da "produção imaterial" de
hoje (cibertrabalhadores)? Insistimos
que só os envolvidos na produção material "real" são a classe trabalhadora ou
damos o terrível passo ao aceitar que os
"trabalhadores simbólicos" são os (verdadeiros) proletários de hoje? Devemos
resistir a esse passo, porque ele ofusca o
papel central da separação entre produção imaterial e material, da divisão na
classe trabalhadora (geralmente geográfica) entre cibertrabalhadores e trabalhadores materiais (programadores nos
EUA ou na Índia, o trabalho suado na
China ou na Indonésia).
Talvez a figura do desempregado seja o
que representa hoje o proletário puro: a
determinação básica dos desempregados continua sendo igual à dos trabalhadores, mas eles são impedidos de concretizá-la ou de renunciar a ela, por isso permanecem suspensos na potencialidade
de trabalhadores que não podem trabalhar. Talvez em certo sentido hoje sejamos "todos desempregados": os empregos tendem cada vez mais a se basear em
contratos de curta duração, de modo que
o estado de desemprego é a regra, o nível
zero, e o emprego temporário, a exceção.
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana,
autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um
Mapa da Ideologia" (Ed. Contraponto). Escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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