São Paulo, domingo, 11 de março de 2001 |
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+ brasil 501 d.C. Antevisões imperiais
Evaldo Cabral de Mello
Como d. Luís da Cunha, Silva Tarouca partia do pressuposto da precariedade insanável da situação do reino "vis-à-vis" da Espanha, acoplando-a à dinâmica do sistema de relações de forças na Europa. "Vivemos em século turbulento (confidenciava desalentado a Pombal em carta de 1756), no qual já vimos bem estranhos trocos (isto é, mudanças); e os que sobreviverem hão-de provavelmente ver outros." Desde a paz de Ryjswick (1697), em 60 anos "o sistema geral da Europa" havia "mudado grandemente" ao menos "três vezes". "E pode facilmente a nosso respeito mudar-se muito mais em pouco mais de 40, que correrão até o fim do nosso século 18." O estado atual das coisas era o oposto do que vigira então. Agora era a Casa de Bourbon que também reinava em Madri, dispondo das forças terrestres e navais mais numerosas que se haviam visto ali desde o reinado de Felipe 2º. É certo que a rainha católica, Bárbara de Bragança, mulher de Fernando 6º, era portuguesa, mas não tivera filhos, com o que a herança da coroa espanhola recairia no cunhado, o futuro Carlos 3º. Destarte, a união das coroas da França, da Espanha e de Nápoles na Casa de Bourbon parecia mais sólida e internacionalmente mais influente do que nunca. Podia-se, portanto, dar como coisa do passado "a bela conjuntura na corte de Madri", vale dizer, os anos da amizade estreita entre os dois reinos peninsulares, cultivada após a ascensão de Fernando 6º ao trono, a qual permitira inclusive a conclusão do tratado de Madri (1750), que procurara solucionar as querelas territoriais hispano-portuguesas na América meridional. Temia Silva Tarouca que, instalado em Madri, o Bourbon de Nápoles viesse a reeditar os manejos do cardeal Alberoni, antigo ministro de Felipe 5º, visando a se apossar de Portugal, dando em compensação aos Braganças os domínios italianos da família. "Possuindo El Rei Católico a Espanha inteira, com as suas Índias e Brasil, se faria a principal potência na Europa pela dependência em que poria pelo comércio todas as outras", graças à cumplicidade da França e da Inglaterra, que não "teriam escrúpulos de abandonar e vender Portugal a Castela para conservar e avantajar seus comércios". Particularmente preocupante parecia a Silva Tarouca "o espírito de comércio e, digâmo-lo claramente, de usurpação que reina hoje na Europa". Não era o caso de temer no curto prazo, "mas o não temê-lo agora não assegura nada para o futuro". Nessa conjuntura, tanto para d. Luís da Cunha quanto para Silva Tarouca, o Brasil era a tábua de salvação. Desde a conclusão da paz de Utrecht, confessava d. Luís vir cultivando o que ele mesmo designa como visão, a de se mudar El Rei para o Brasil, onde instalaria a corte no Rio de Janeiro e onde tomaria o título de imperador do Ocidente. Ao secretário de Estado, d. Luís desculpava-se antecipadamente pelo atrevimento da proposta de que "um rei de Portugal trocasse a sua residência na Europa pela da América", mas cumpria decidir o que seria mais vantajoso para o monarca, se "viver precariamente esperando ou temendo que cada dia o queiram despojar do seu diadema" ou poder "dormir o seu sono descansado e sem algum receio de que o venham inquietar". Para resolver o dilema, d. Luís apelava para o segundo desequilíbrio desfavorável ao reino, o que existia entre ele e a sua colônia americana, desequilíbrio que permitiria corrigir o inconveniente do primeiro, que, como vimos, era o desequilíbrio Espanha-Portugal. Império do Ocidente Para conservar seu poder na metrópole, El Rei dependia inteiramente dos recursos do Brasil e não dos de Portugal, "de que se segue que é mais cômodo e mais seguro estar onde se tem o que sobeja que onde se espera o de que se carece". Embora pudesse parecer semelhante projeto coisa precipitada ou cavilação de velho, d. Luís da Cunha, profético, rematava sua antevisão assinalando que "poderia vir algum (tempo), de que Deus nos livre, em que não seja mal lembrada". D. Luís da Cunha levantava também a questão da autarquia que a América portuguesa podia proporcionar ao império, ponto a cujo respeito ele não compartilha o otimismo dos nossos primeiros cronistas. Era certo que o Brasil não produzia vinho, azeite nem sal (sic), mas, no tocante ao trigo, o que se cultivava na região meridional seria suficiente para as necessidades, que não eram grandes, devido ao fato de que os colonos preferiam a farinha de mandioca, da mesma maneira pela qual os habitantes do Minho, de Trás-os-Montes e das Beiras se alimentavam de milho e centeio. Mas, se o Brasil não produzia muitos gêneros de que se dispõe na Europa, não era menos verdade que esta também carecia de muitas coisas preciosas que a colônia possuía, ao que acrescia a diferença de que as carências brasileiras podiam ser facilmente remediadas pela diligência e indústria humanas, as quais, entretanto, não lograriam jamais produzir no reino o que se produz na América, como o ouro e os diamantes. Desse modo, transformar-se-ia o Brasil no "entreposto de todas as mercadorias das outras três partes do mundo". Esse império do Ocidente, a ser estabelecido na América portuguesa, gozaria ademais da segurança geopolítica que lhe conferia a distância dos centros europeus de poder. Inegavelmente semelhante plano comportaria riscos para a coroa, que d. Luís excogitava atalhar. Como Portugal seria governado por um vice-rei, como a Índia, a Espanha procuraria conquistá-lo, com o apoio daquela parte da nobreza do reino que não concordasse em acompanhar o monarca ao Brasil. Este poderia, contudo, se acautelar mediante a obtenção de garantia internacional da independência portuguesa, de vez que a Europa não tinha interesse no incremento do poder da Espanha, tanto mais que o comércio europeu teria passado a gozar de acesso franco aos portos brasileiros. Outro fator de inibição das pretensões espanholas seria a probabilidade de retaliações contra a América espanhola, que se poderiam organizar do Brasil não só contra o Prata, mas contra o Peru e mais além, no rumo do istmo do Panamá. Quanto à fidelidade da nobreza do reino, poderiam servir de caução os laços de parentesco com aquelas famílias suas que se tivessem radicado do lado de cá do Atlântico. De qualquer maneira, era indispensável ao êxito do novo império chegar a acordo com Madri acerca das questões de limites na América. Nesse particular das acomodações territoriais, d. Luís propunha a troca do Chile pelo Algarve, muito conveniente aos espanhóis pelas facilidades portuárias. Apreensivo também no tocante ao destino de Portugal na Europa, Silva Tarouca volta os olhos, como fizera d. Luís da Cunha, para o Brasil, "donde me parece que a eloquência do famoso Vieira fundava "o Quinto Império do Mundo e esperanças de Portugal'". No que, aliás, se enganava o duque, pois a visão profética do jesuíta tinha o mundo inteiro por âmbito do império português, e não apenas a América. Não deixa, porém, de ser significativa semelhante releitura dada no século 18 à concepção do inaciano e mediante a qual passavam a se fundar "na riqueza, posição e vasto do Brasil (...) as esperanças da monarquia lusitana e sua duração humanamente falando". Como de costume, eram as dimensões continentais da colônia que fixavam a atenção do observador, de vez que elas se prestavam a "um império como o da China e ainda maior que a França, Alemanha e Hungria unidas se fossem em um só corpo". A analogia com a China acompanha, aliás, todo o raciocínio do duque. Embora não dispusesse em Viena de mapas recentes do Brasil e descontando como inabitável e incultivável uma quinta parte do seu território, ainda assim haveria nada menos de 90 mil léguas quadradas portuguesas, comparadas às menos de 3.000 que existiriam em Portugal, o que faria o Brasil 30 vezes maior que o reino. Estimava ainda Silva Tarouca que, tendo Portugal uma população de 2 milhões de habitantes em área tão acanhada, a América portuguesa poderia proporcionalmente conter 60 milhões, o que correspondia precisamente à população estimada então para a China.
Convenientemente populado e civilizado, o Brasil estava fadado a ter "a mesma figura na América que fazem atualmente na Ásia tantos diversos impérios", como eram a China, o Japão, a Pérsia, o mongol e o otomano, com o que Portugal ver-se-ia suficientemente seguro em ambos os lados do Atlântico nem já voltariam à tona das intrigas diplomáticas esses projetos de trocas territoriais e dinásticas na Europa, do feitio do outrora afagado pelo cardeal Alberoni. As nações mercantes não se arriscariam a perder o comércio brasileiro, a Espanha se acharia na contingência de temer pela sorte das suas possessões americanas e, graças ao porto de Lisboa, Portugal se veria mesmo promovido à condição de potência marítima. Cumpria, pois, dar-se por satisfeito com o que se possuía na Europa, se cuidando apenas de promover as manufaturas em que empregar a população reinol. Ao contrário de d. Luís da Cunha, Silva Tarouca não previa a transmigração da corte, que reputaria um "disparate", ao saber do rumor segundo o qual, por motivo do terremoto de Lisboa (1755), Sua Majestade planejava "ir estabelecer-se no Brasil, da parte do Maranhão". Só faltava, por conseguinte, arranjar gente com que povoar esses vastos desertos, o que constituía a grande limitação de Portugal. Em outro dos seus textos mais conhecidos, o "Testamento Político", que endereçara ao príncipe d. José 1º, d. Luís da Cunha advertira o futuro monarca a respeito da sangria de gente que o Brasil causava ao reino, assunto que, como se sabe, se tornara especialmente preocupante desde a descoberta das minas. Segundo o diplomata, urgia povoar a colônia sem despovoar a metrópole; e para tanto não lhe parecia haver alternativa à permissão da emigração de estrangeiros e suas famílias onde bem lhes aprouvesse, sem nenhuma discriminação religiosa, mediante a doação de terras para cultivarem. D. Luís citava, a respeito, a iniciativa da coroa britânica de enviar emigrantes alemães do Palatinado às colônias da América do Norte, gente que, a seu ver, iria com maior boa vontade para o Brasil. Tapuias e camponeses À objeção de que a ortodoxia católica sairia prejudicada d. Luís respondia com a previsão, para consumo do Santo Ofício, de que tais colonos se misturariam no Brasil às famílias de origem portuguesa, de modo que em duas ou três gerações seriam tão bons católicos romanos quanto elas. Tampouco nas "instruções inéditas" ele se estende acerca da questão, apenas referindo que os índios se limitavam ao interior do país ou serviam de criados, "como em Lisboa nos servimos de negros". Por outro lado, os tapuias do sertão diferiam dos camponeses do reino apenas na cor da pele e, uma vez convertidos ao catolicismo, eram mais "observantes dos preceitos da Igreja que os nossos paisanos". Nesse particular, Silva Tarouca mostrava-se mais bem informado e mais pragmático. Era preciso povoar o Brasil "de qualquer modo que seja. Mouro, branco, negro, índio, mulato ou mestiço, tudo serve, todos são homens". Que entre uns e outros "haja muitos casamentos e pouquíssimos ventres inúteis", para o que se proibiria a ereção de novos conventos e controlar-se-ia severamente o número do clero regular ali existente. Seria de grande utilidade levar colonos alemães, como os ingleses estavam fazendo na América do Norte, desde que fossem católicos, pois o correspondente de Pombal era partidário de um império unitário, com uma só religião, uma só língua, a portuguesa, e uma só lei, mas esta exclusivamente formulada para a América portuguesa, uma espécie de "Codex Brasiliano", de vez que Sua Majestade poderia se reputar "um novo fundador", dada a inexistência de "pacta conventa" entre ele e os súditos da colônia. Quanto ao sistema educacional, "muitíssimas escolas", mas nada de universidade. Outra medida destinada a manter a união entre metrópole e colônia consistia numa doação generosa de terras, senhorios e comendas às famílias principais do Brasil, desde que convenientemente limitados. Sendo o império da China "antiquíssimo", nada pareceria "mais novo que o querer fazer de tão diversos selvagens, tapuias, negros, mulatos, uma China do Brasil! E contudo não seria absolutamente impossível", malgrado haver tardado Portugal a se dar conta da "verdadeira importância da nossa porção da América", da qual só agora se cuidava graças ao zelo do marquês do Pombal. Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil -Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!. Texto Anterior: + autores - Slavoj Zizek: Em defesa do ciberleninismo Próximo Texto: Milton Santos: Elogio da lentidão Índice |
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