São Paulo, domingo, 11 de março de 2001

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+ sociedade

Exceto em casos muito graves, adoção de penas alternativas no lugar da pena de prisão já é um consenso universal

Grades vergadas de desespero

por Evandro Lins e Silva

"Os presos, na maioria dos cárceres de todo o mundo, invejam as coudelarias e os canis"
. Roberto Lyra, "Penitência de um Penitenciarista"

Há, hoje, um consenso universal, a partir da Organização das Nações Unidas, que preconiza a adoção de penas alternativas em substituição à pena de prisão, destinada esta a ser aplicada, em último caso, como verdadeira medida de segurança para a segregação dos delinquentes perigosos que possam pôr em risco a incolumidade alheia. Não se ignora mais que a prisão não ressocializa nem regenera ninguém, mas, ao contrário, perverte, corrompe, deforma, embrutece, avilta, estigmatiza, é uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas, onde se diploma o profissional do crime. Se não a podemos eliminar de uma vez, só devemos conservá-la para os casos extremos, em que ela é indispensável. Estendê-la, exacerbá-la, é retroceder a um obsoleto período de fanatismo repressivo, de reações instintivas, de um direito autoritário e desumano, que fica a um passo de outras formas violentas e abomináveis de castigo. Não é com a aspereza das penas que se combate ou extingue a criminalidade. Se assim fosse, bastaria estabelecer a pena de morte que os crimes desapareceriam com a só ameaça de sua aplicação.
A pena de prisão é um remédio opressivo e brutal, de consequências devastadoras sobre a personalidade do ser humano. É um enjaulamento cruel, a que Roberto Lyra, nosso grande criminólogo e mestre reconhecido de ciência penitenciária, em autocrítica feita num pequeno livro que hoje corre mundo e cujo título já diz tudo -"Penitência de um Penitenciarista"-, dá duro combate: "A pedagogia, a medicina, a psicologia, a economia, a política, até a própria moral já não admitem discussão sobre a monstruosidade antinatural, antiindividual e anti-social de prender, isolar, segregar. É pior do que eliminar e transportar".
As resistências a essa posição atuam no sentido de agravar o sentimento de insegurança resultante do inegável aumento da criminalidade violenta e organizada, cujas causas geradoras são bem conhecidas: a miséria, a fome, o desemprego, a injustiça social. Há as causas individuais, em proporções insignificantes: os deficientes mentais, os portadores de distúrbios psíquicos, alcoólatras, dependentes de drogas etc. Que fazer, então?
A lógica mais elementar deixa transparente esta evidência, esta verdade apodíctica: não é de mais cadeias que o país precisa, e sim de escolas, de aperfeiçoamento e efetiva execução de uma política de governo, na qual se engloba a política penitenciária, de modo a prevenir o crime, economizando os custos da construção de presídios e manutenção dos encarcerados, gastos em que os turiferários de uma repressão cada vez maior e mais severa jamais pensaram; gastos que podiam ser empregados no atendimento aos menores abandonados, na criação de condições sociais e econômicas que impeçam a geração de novos delinquentes.
O preso sai muito caro aos cofres da nação -quando presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, cheguei a iniciar estudos e pesquisas nesse sentido, e os resultados foram surpreendentes, indo de três a sete salários, conforme a região. Só por eles, vê-se, o despropósito de insistir nessa posição falaz, ilusória e contraproducente de construir novas gaiolas de ferro para enclausurar criaturas humanas, nas condições que todos conhecem, como se fossem bichos, amontoados em cubículos promíscuos e superlotados. Além da segregação, outra pena vem embutida na condenação: a possível ou provável contaminação pelo vírus da Aids, como é notório.
Estas rápidas reflexões me vieram à mente tendo em vista o recente motim de presos de São Paulo, de tão larga repercussão, por sua abrangência e simultaneidade, em diversos presídios do Estado, a ponto de levar o deputado e advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, com quem tive a honra de partilhar, faz pouco tempo, a defesa de José Rainha, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Tribunal do Júri de Vitória (sem esquecer nosso outro companheiro de tribuna, Aton Fon Filho), a entender tal rebeldia, por algumas singularidades e inovações, como uma "declaração de guerra ao poder público". Dada a autoridade do opinante, "fundador do Comitê Brasileiro pela Anistia, intransigente militante da defesa dos direitos humanos, advogado experiente", presente no complexo do Carandiru, por ocasião dos fatos, o jornalista e escritor Alberto Dines, com grande destaque, no "Jornal do Brasil", publicou brilhante artigo, como tudo que lhe sai da pena, preocupado com as "indicações dessa guerra civil" e cauterizando o contubérnio entre o crime organizado e a corrupção instalada nos mais diversos setores da sociedade. E o jornalista é tanto mais conhecedor desse alarmante e assustador aumento da criminalidade pois já fora vítima dias antes da revolta dos presos, de um sequestro relâmpago, que lhe deu "uma experiência inolvidável em matéria de revelações sobre o crime organizado".
Estamos numa era de transição no mundo inteiro, "Mundo em Descontrole" (ed. Record), título de um notável livro de Anthony Giddens, tido por muitos como o mais importante pensador britânico contemporâneo, cujo expressivo subtítulo informa seu instigante conteúdo: "O Que a Globalização Está Fazendo de Nós".
De nossa parte, como velho socialista democrático, sempre encarei com muitas reservas o desembaraço, a adesão entusiástica e imprudente, o mergulho cego, a concordância acrítica à chamada globalização, especialmente em relação às privatizações de empresas, que importam em perda de patrimônio público, em empobrecimento do país, em redução de seu futuro poder de barganha, no campo internacional, e até no enfraquecimento de nossa auto-estima como povo e como nação. De fato, a globalização é inarredável, na conjuntura universal. Mas vamos devagar com o andor...
Por sua própria essência ela é, intrínseca e extrinsecamente, a própria economia de mercado, ela gira em torno da moeda e, por isso mesmo, a sua execução é minaz e ameaçadora aos seus sócios minoritários, mas que têm alguma coisa a oferecer. Nela o dinheiro é tudo. Daí o seu estímulo à corrupção, ao enriquecimento, daí estar ela azinhavrando a consciência do mundo.

Ganhar dinheiro Hoje, os jovens não são formados e preparados para viver e se dedicar a uma atividade que os possa premiar com a realização de serviços à comunidade, com o sucesso e a glória nos vários setores da atividade humana que não estejam ligados ao mercado e à moeda, fontes sedutoras de rápido enriquecimento, por meio de jogos da Bolsa, de especulações, sem os escrúpulos tradicionais, com a álea e os riscos de atos lúdicos, lotéricos, de resultados dependentes de acontecimento fortuitos, ao sabor da sorte ou do acaso.
Não, influenciados pela mídia e pelo luxo dos palácios em que se desfruta dos bens e dos prazeres que a riqueza pode dar, uma grande parte deles sonha e expressa o seu projeto de vida: trabalhar no mercado, isto é, ganhar dinheiro. Aconselha a mãe ambiciosa: "Get money, my son, honestly if be possible, but get money", ("ganha dinheiro, meu filho, honestamente se possível, mas ganha dinheiro").
Esta pequena digressão foi sugerida pelo artigo de Alberto Dines e com ele concorda, em que é urgente acabar com essa amigação entre o crime organizado e os seus cúmplices ou parceiros.
Voltemos ao motim. Enquanto ele ocorria, duas das mais altas autoridades do país, o presidente do Senado e o candidato à sua sucessão, se acusavam mutuamente: em termos chulos e chocantes, de corrupção e de enriquecimento por meios criminosos. O mais ousado chegou a fazer insinuação desprimorosa ao próprio presidente da República! A nação inteira, por seu povo, está perplexa com as cenas repetidas desse espetáculo nada edificante.
Tal episódio, que rende leitura obrigatória até hoje, é um triste exemplo dos dias atuais, com o inegável desgaste do poder público. A rebelião dos presos passou a plano secundário na avaliação popular.
Com a experiência de 70 anos cuidando dos problemas penais do país, nos três pólos de atuação dos operadores do direito, como advogado, procurador-geral da República e ministro do Supremo Tribunal Federal, tenho manifestado, sobretudo nos últimos tempos, a minha estranheza quanto à passividade e à conformação dos nossos presidiários com o inacreditável sistema de tratamento dos reclusos, amontoados como bichos, em verdadeiros cubículos insuficientes para o seu alojamento, numa ociosidade malsã, nos xadrezes policiais e nos presídios espalhados pelo país. Não partilho do temor nem vejo no protesto mais extenso, em penitenciárias diversas, a dimensão de uma guerra declarada ao poder público; foi apenas um grito mais alto, um brado mais forte, ou melhor, uma súplica mais lancinante, de sofredores, de desgraçados, de infelizes, de desesperados contra o sadismo de um castigo, em que se esmera, no suplício da "justiça do Príncipe" na sua crueldade: "A ostentação, a violência corporal, o jogo desmesurado de forças, o cerimonial cuidadoso, enfim, todo o seu aparato... no funcionamento político da penalidade" (Foucault).
Concordo plenamente com ambos na necessidade imperiosa de uma moralização absoluta e igualitária no cotidiano da vida pública para que os condenados não se sintam injustiçados ao terem notícia de que a impunidade não os abarca nem os protege, só alcança os que manipulam as rédeas do poder, nos seus mais altos degraus. E também na globalização, como alerta Anthony Giddens, seu autorizado intérprete, "todos nós precisamos de compromissos morais que se elevem acima das preocupações e contendas comuns da vida cotidiana. (...) A democratização da democracia significa promover uma descentralização efetiva do poder... significa criar medidas anticorrupção efetivas em todos os níveis... depende também da promoção de uma vigorosa cultura cívica. Mercados não produzem esse tipo de cultura" (grifo nosso).
Marc Ancel, grande penalista francês do século 20, dizia, com a segurança de seus conhecimentos: "(...) Um dos principais problemas da política criminal de hoje é, salvo as exceções inevitáveis, o de se desembaraçar da prisão". E o grande juiz que foi Magarinos Torres, com a antecipação do que seria, como é, atualmente, um truísmo, doutrinava, ainda em 1934: "Ciência não será, tampouco, um entretenimento literário de espíritos pretensiosos, que vivem a embair a ingenuidade dos moços nas escolas com a prédica das sanções rigorosas e sistemáticas, fingindo ignorar a maldade monstruosa, que caracteriza, na sua objetividade, o direito penal. Prisão é somente uma necessidade, que nenhuma ciência poderá justificar".
O motivo dos presos de São Paulo resultou da ânsia natural de protestar contra as condições desumanas a que estão submetidos, com a indiferença e o velado apoio de nossas elites, sempre omissas no que tange a essa forma de tortura -a cadeia- que martiriza, destrói e mata, a conta-gotas, as vítimas do seu emprego, o mais das vezes desnecessário, quando outras medidas menos atrozes são suficientes para manifestar a reprovação da sociedade contra o crime.
Querem a solução para o problema? Governem, trabalhem, criem empregos. Para isso, façam o que está na cara desde a pregação dos abolicionistas: realizem uma reforma agrária de verdade para que milhões de famintos irmãos nossos possam tirar, do seio da terra, o sustento próprio e de suas famílias.
Querem medidas tópicas para atenuar ou diminuir provisoriamente a criminalidade? Proíbam a fabricação de armas individuais e mantenham policiamento ostensivo, em locais apropriados, os antigos Cosme e Damião.
Tenham a coragem de enfrentar os fabricantes das armas que matam e só permitam a sua produção à requisição do Estado, para suas forças de segurança.
Do contrário, devemos aguardar cada vez mais o recrudescimento da violência e o aumento da criminalidade.
Não perdeu a atualidade o verso genial de Dante, epigrama posto na entrada dos cemitérios, e que também pode encimar o portão das nossas prisões, na sua maior parte autênticos ergástulos, enxovias ou masmorras, como antigamente: "Lasciate ogni speranza, o voi ch'entrate".


Evandro Lins e Silva é advogado, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, presidente do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal e membro da Academia Brasileira de Letras.


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