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+ sociedade
Exceto em casos muito graves, adoção de penas alternativas
no lugar da pena de prisão já é um consenso universal
Grades vergadas de desespero
por Evandro Lins e Silva
"Os presos, na maioria dos cárceres de todo o
mundo, invejam as coudelarias e os canis" .
Roberto Lyra, "Penitência de um Penitenciarista"
Há, hoje, um consenso universal,
a partir da Organização das
Nações Unidas, que preconiza
a adoção de penas alternativas
em substituição à pena de prisão, destinada esta a ser aplicada, em último caso,
como verdadeira medida de segurança
para a segregação dos delinquentes perigosos que possam pôr em risco a incolumidade alheia. Não se ignora mais que a
prisão não ressocializa nem regenera
ninguém, mas, ao contrário, perverte,
corrompe, deforma, embrutece, avilta,
estigmatiza, é uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas, onde
se diploma o profissional do crime. Se
não a podemos eliminar de uma vez, só
devemos conservá-la para os casos extremos, em que ela é indispensável. Estendê-la, exacerbá-la, é retroceder a um obsoleto período de fanatismo repressivo,
de reações instintivas, de um direito autoritário e desumano, que fica a um passo de outras formas violentas e abomináveis de castigo. Não é com a aspereza das
penas que se combate ou extingue a criminalidade. Se assim fosse, bastaria estabelecer a pena de morte que os crimes
desapareceriam com a só ameaça de sua
aplicação.
A pena de prisão é um remédio opressivo e brutal, de consequências devastadoras sobre a personalidade do ser humano. É um enjaulamento cruel, a que
Roberto Lyra, nosso grande criminólogo
e mestre reconhecido de ciência penitenciária, em autocrítica feita num pequeno
livro que hoje corre mundo e cujo título
já diz tudo -"Penitência de um Penitenciarista"-, dá duro combate: "A pedagogia, a medicina, a psicologia, a economia, a política, até a própria moral já não
admitem discussão sobre a monstruosidade antinatural, antiindividual e anti-social de prender, isolar, segregar. É pior
do que eliminar e transportar".
As resistências a essa posição atuam no
sentido de agravar o sentimento de insegurança resultante do inegável aumento
da criminalidade violenta e organizada,
cujas causas geradoras são bem conhecidas: a miséria, a fome, o desemprego, a
injustiça social. Há as causas individuais,
em proporções insignificantes: os deficientes mentais, os portadores de distúrbios psíquicos, alcoólatras, dependentes
de drogas etc. Que fazer, então?
A lógica mais elementar deixa transparente esta evidência, esta verdade apodíctica: não é de mais cadeias que o país
precisa, e sim de escolas, de aperfeiçoamento e efetiva execução de uma política
de governo, na qual se engloba a política
penitenciária, de modo a prevenir o crime, economizando os custos da construção de presídios e manutenção dos encarcerados, gastos em que os turiferários
de uma repressão cada vez maior e mais
severa jamais pensaram; gastos que podiam ser empregados no atendimento
aos menores abandonados, na criação de
condições sociais e econômicas que impeçam a geração de novos delinquentes.
O preso sai muito caro aos cofres da
nação -quando presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, cheguei a iniciar estudos e pesquisas nesse sentido, e os resultados foram surpreendentes, indo de três a sete
salários, conforme a região. Só por eles,
vê-se, o despropósito de insistir nessa
posição falaz, ilusória e contraproducente de construir novas gaiolas de ferro para enclausurar criaturas humanas, nas
condições que todos conhecem, como se
fossem bichos, amontoados em cubículos promíscuos e superlotados. Além da
segregação, outra pena vem embutida na
condenação: a possível ou provável contaminação pelo vírus da Aids, como é
notório.
Estas rápidas reflexões me vieram à
mente tendo em vista o recente motim
de presos de São Paulo, de tão larga repercussão, por sua abrangência e simultaneidade, em diversos presídios do Estado, a ponto de levar o deputado e advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, com
quem tive a honra de partilhar, faz pouco
tempo, a defesa de José Rainha, dirigente
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Tribunal do Júri de
Vitória (sem esquecer nosso outro companheiro de tribuna, Aton Fon Filho), a
entender tal rebeldia, por algumas singularidades e inovações, como uma "declaração de guerra ao poder público". Dada
a autoridade do opinante, "fundador do
Comitê Brasileiro pela Anistia, intransigente militante da defesa dos direitos humanos, advogado experiente", presente
no complexo do Carandiru, por ocasião
dos fatos, o jornalista e escritor Alberto
Dines, com grande destaque, no "Jornal
do Brasil", publicou brilhante artigo, como tudo que lhe sai da pena, preocupado
com as "indicações dessa guerra civil" e
cauterizando o contubérnio entre o crime organizado e a corrupção instalada
nos mais diversos setores da sociedade. E
o jornalista é tanto mais conhecedor desse alarmante e assustador aumento da
criminalidade pois já fora vítima dias antes da revolta dos presos, de um sequestro relâmpago, que lhe deu "uma experiência inolvidável em matéria de revelações sobre o crime organizado".
Estamos numa era de transição no
mundo inteiro, "Mundo em Descontrole" (ed. Record), título de um notável livro de Anthony Giddens, tido por muitos como o mais importante pensador
britânico contemporâneo, cujo expressivo subtítulo informa seu instigante conteúdo: "O Que a Globalização Está Fazendo de Nós".
De nossa parte, como velho socialista
democrático, sempre encarei com muitas reservas o desembaraço, a adesão entusiástica e imprudente, o mergulho cego, a concordância acrítica à chamada
globalização, especialmente em relação
às privatizações de empresas, que importam em perda de patrimônio público, em empobrecimento do país, em redução de seu futuro poder de barganha,
no campo internacional, e até no enfraquecimento de nossa auto-estima como
povo e como nação. De fato, a globalização é inarredável, na conjuntura universal. Mas vamos devagar com o andor...
Por sua própria essência ela é, intrínseca e extrinsecamente, a própria economia de mercado, ela gira em torno da
moeda e, por isso mesmo, a sua execução
é minaz e ameaçadora aos seus sócios
minoritários, mas que têm alguma coisa
a oferecer. Nela o dinheiro é tudo. Daí o
seu estímulo à corrupção, ao enriquecimento, daí estar ela azinhavrando a
consciência do mundo.
Ganhar dinheiro Hoje, os jovens não são formados e preparados para viver e se dedicar a uma atividade que os
possa premiar com a realização de serviços à comunidade, com o sucesso e a glória nos vários setores da atividade humana que não estejam ligados ao mercado e
à moeda, fontes sedutoras de rápido
enriquecimento, por meio de jogos da
Bolsa, de especulações, sem os escrúpulos tradicionais, com a álea e os riscos de
atos lúdicos, lotéricos, de resultados dependentes de acontecimento fortuitos,
ao sabor da sorte ou do acaso.
Não, influenciados pela mídia e pelo
luxo dos palácios em que se desfruta dos
bens e dos prazeres que a riqueza pode
dar, uma grande parte deles sonha e expressa o seu projeto de vida: trabalhar no
mercado, isto é, ganhar dinheiro. Aconselha a mãe ambiciosa: "Get money, my
son, honestly if be possible, but get money", ("ganha dinheiro, meu filho, honestamente se possível, mas ganha dinheiro").
Esta pequena digressão foi sugerida
pelo artigo de Alberto Dines e com ele
concorda, em que é urgente acabar com
essa amigação entre o crime organizado
e os seus cúmplices ou parceiros.
Voltemos ao motim. Enquanto ele
ocorria, duas das mais altas autoridades
do país, o presidente do Senado e o candidato à sua sucessão, se acusavam mutuamente: em termos chulos e chocantes, de corrupção e de enriquecimento
por meios criminosos. O mais ousado
chegou a fazer insinuação desprimorosa
ao próprio presidente da República! A
nação inteira, por seu povo, está perplexa com as cenas repetidas desse espetáculo nada edificante.
Tal episódio, que rende leitura obrigatória até hoje, é um triste exemplo dos
dias atuais, com o inegável desgaste do
poder público. A rebelião dos presos
passou a plano secundário na avaliação
popular.
Com a experiência de 70 anos cuidando dos problemas penais do país, nos
três pólos de atuação dos operadores do
direito, como advogado, procurador-geral da República e ministro do Supremo
Tribunal Federal, tenho manifestado, sobretudo nos últimos tempos, a minha estranheza quanto à passividade e à conformação dos nossos presidiários com o
inacreditável sistema de tratamento dos
reclusos, amontoados como bichos, em
verdadeiros cubículos insuficientes para
o seu alojamento, numa ociosidade malsã, nos xadrezes policiais e nos presídios
espalhados pelo país. Não partilho do temor nem vejo no protesto mais extenso,
em penitenciárias diversas, a dimensão
de uma guerra declarada ao poder público; foi apenas um grito mais alto, um
brado mais forte, ou melhor, uma súplica mais lancinante, de sofredores, de desgraçados, de infelizes, de desesperados
contra o sadismo de um castigo, em que
se esmera, no suplício da "justiça do
Príncipe" na sua crueldade: "A ostentação, a violência corporal, o jogo desmesurado de forças, o cerimonial cuidadoso, enfim, todo o seu aparato... no funcionamento político da penalidade"
(Foucault).
Concordo plenamente com ambos na
necessidade imperiosa de uma moralização absoluta e igualitária no cotidiano
da vida pública para que os condenados
não se sintam injustiçados ao terem notícia de que a impunidade não os abarca
nem os protege, só alcança os que manipulam as rédeas do poder, nos seus mais
altos degraus. E também na globalização, como alerta Anthony Giddens, seu
autorizado intérprete, "todos nós precisamos de compromissos morais que se
elevem acima das preocupações e contendas comuns da vida cotidiana. (...) A
democratização da democracia significa
promover uma descentralização efetiva
do poder... significa criar medidas anticorrupção efetivas em todos os níveis...
depende também da promoção de uma
vigorosa cultura cívica. Mercados não
produzem esse tipo de cultura" (grifo
nosso).
Marc Ancel, grande penalista francês
do século 20, dizia, com a segurança de
seus conhecimentos: "(...) Um dos principais problemas da política criminal de
hoje é, salvo as exceções inevitáveis, o de
se desembaraçar da prisão". E o grande
juiz que foi Magarinos Torres, com a antecipação do que seria, como é, atualmente, um truísmo, doutrinava, ainda
em 1934: "Ciência não será, tampouco,
um entretenimento literário de espíritos
pretensiosos, que vivem a embair a ingenuidade dos moços nas escolas com a
prédica das sanções rigorosas e sistemáticas, fingindo ignorar a maldade monstruosa, que caracteriza, na sua objetividade, o direito penal. Prisão é somente
uma necessidade, que nenhuma ciência
poderá justificar".
O motivo dos presos de São Paulo resultou da ânsia natural de protestar contra as condições desumanas a que estão
submetidos, com a indiferença e o velado apoio de nossas elites, sempre omissas no que tange a essa forma de tortura
-a cadeia- que martiriza, destrói e
mata, a conta-gotas, as vítimas do seu
emprego, o mais das vezes desnecessário, quando outras medidas menos atrozes são suficientes para manifestar a reprovação da sociedade contra o crime.
Querem a solução para o problema?
Governem, trabalhem, criem empregos.
Para isso, façam o que está na cara desde
a pregação dos abolicionistas: realizem
uma reforma agrária de verdade para
que milhões de famintos irmãos nossos
possam tirar, do seio da terra, o sustento
próprio e de suas famílias.
Querem medidas tópicas para atenuar
ou diminuir provisoriamente a criminalidade? Proíbam a fabricação de armas
individuais e mantenham policiamento
ostensivo, em locais apropriados, os antigos Cosme e Damião.
Tenham a coragem de enfrentar os fabricantes das armas que matam e só permitam a sua produção à requisição do
Estado, para suas forças de segurança.
Do contrário, devemos aguardar cada
vez mais o recrudescimento da violência
e o aumento da criminalidade.
Não perdeu a atualidade o verso genial
de Dante, epigrama posto na entrada dos
cemitérios, e que também pode encimar
o portão das nossas prisões, na sua maior
parte autênticos ergástulos, enxovias ou
masmorras, como antigamente: "Lasciate ogni speranza, o voi ch'entrate".
Evandro Lins e Silva é advogado, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, presidente
do Grupo Brasileiro da Associação Internacional
de Direito Penal e membro da Academia Brasileira
de Letras.
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