São Paulo, domingo, 11 de março de 2001

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"O Declínio dos Mandarins Alemães", de Fritz Ringer, faz análise desmistificadora do ambiente político e ideológico em que se formaram pensadores como Max Weber, Georg Simmel e Max Scheler

O ideal angustiado

Marcelo Coelho
do Conselho Editorial

O título não é dos mais convidativos. Um volume com mais de 400 páginas falando do "declínio dos mandarins alemães" parece ter apelo apenas para um público muito restrito de historiadores. "A Comunidade Acadêmica Alemã -1890-1933" -este o subtítulo do livro- tampouco constitui indício da amplitude e da importância das questões que Fritz K. Ringer irá discutir.
Mas quem quer que se interesse por temas como a democratização da universidade, o surgimento do nazismo, a crise da cultura humanística na era tecnológica, o pensamento de Max Weber ou as relações entre a política e a vida intelectual terá certamente muito a aproveitar desta obra fascinante.
Todos concordamos, por exemplo, com a tese de que o vestibular é uma aberração. Mas é interessante ver de que modo, na Alemanha do século 19, a extinção dos exames de ingresso nas universidades significou um poderoso instrumento de elitização, e não de democratização, do ensino. É que um lugar na universidade era garantido a todos os alunos que tivessem feito o chamado "gymnasium", o ensino médio voltado para os estudos clássicos; os alunos que tivessem estudado em colégios técnicos e profissionalizantes (isto é, os que não pertenciam à elite) estavam praticamente excluídos do sistema.

Disciplina e tradição Foi-se cristalizando assim uma separação rígida, desde o ensino básico, entre os que ocupariam altos cargos na burocracia, no sistema judiciário e na própria universidade, de um lado, e os que receberiam apenas o ensino adequado à posição que viriam a ocupar no sistema produtivo. Mesmo o conteúdo das matérias do ensino primário era diferente em cada caso.
Fritz Ringer expõe com clareza e minúcia essas particularidades do sistema educacional alemão para relacioná-las a uma questão mais geral, que diz respeito à sociedade alemã em seu conjunto. O país industrializava-se rapidamente, e com isso as distinções sociais baseadas na riqueza, na posse de bens, se tornavam cruciais como em qualquer país capitalista. Preservava-se, entretanto, uma outra escala de prestígio social e de poder, baseada nas distinções tradicionais entre origem familiar, tipo de educação, modo de vida, acesso a "bens espirituais". Classes sociais, de um lado, e estamentos, de outro.
A aliança entre a burocracia estatal e a nobreza agrária estimulava um discurso em torno dos valores nacionais alemães, da disciplina, da tradição e do "espírito", em oposição ao mundo dos interesses "mesquinhos" da técnica, da produção, do lucro e das reivindicações sindicais.
Com notável domínio narrativo, Ringer conduz o leitor pelo emaranhado mundo da crítica alemã ao "mundo moderno". Uma poderosa camada universitária, composta de eruditos angustiados, respeitados e respeitáveis, faz o elogio da Nação, do Ideal, do Espírito contra os influxos corrosivos do positivismo, da democracia, do materialismo, da civilização francesa e do industrialismo anglo-saxônico. Ringer está sempre a um passo da ironia quando parafraseia os debates e as construções conceituais que caracterizaram as ciências humanas na Alemanha na virada do século. Partindo de uma visão bastante "anglo-saxônica", isto é, atenta ao dado factual, para a verificação empírica e para a clareza dos conceitos, o autor abertamente desconfia do vocabulário teórico que acabou sendo construído pelos intelectuais alemães.
Um termo como "Wissenschaft", que habitualmente traduzimos por "ciência", é mantido por Ringer no idioma original: "Wissenschaft", para os mandarins, era coisa mais nobre do que a laboriosa investigação de hipóteses num campo delimitado do conhecimento.

Genealogia da crítica É nesse ponto que se destaca o perfil que Ringer traça de Max Weber. Certamente um "mandarim", na caracterização do autor, e bastante inconformado com os rumos da civilização moderna, Weber surge também como um vigoroso defensor do conhecimento científico desapaixonado contra as elucubrações retóricas de seus pares mais conservadores.
Aprofundando-se no debate entre a ala mais retrógrada e a ala "modernista" dos mandarins (cada vez mais acerbo e confuso à medida que irracionalismo, ressentimento nacional e crise econômica vão plantando as sementes do nazismo), Ringer faz um retrato bastante nítido de todo o background político e ideológico das famosas controvérsias teóricas em que Weber estava envolvido.
Mais do que isto, é toda uma linhagem intelectual, de Humboldt a Jaspers, passando por Rickert, Windelband e Dilthey, e depois por Sombart, Simmel e Scheler, que passa por um exame acurado e, sem dúvida, desmistificador. Inspirado no próprio Weber e na sociologia do conhecimento de Mannheim, Ringer não hesita em relacionar as altas especulações de filósofos, sociólogos e críticos da cultura ao contexto social, institucional e mesmo "corporativo" em que esses se situavam.
Para nós, brasileiros, é muito esclarecedora a genealogia feita por Ringer de toda a crítica alemã ao cientificismo de inspiração inglesa; por intermédio do "marxismo ocidental", absorvemos com rapidez a aversão ao "positivismo" em todas as suas formas. Curioso notar, por exemplo, que um conceito para nós tão lukacsiano como o da "totalidade" tem uma longa tradição na ideologia mandarim, que Ringer vem desmontar.
Mas não é preciso ser "positivista" nem ignorar os dilemas em que se envolve o projeto de uma sociologia do conhecimento no estilo de Mannheim para apreciar o impressionante feito de pesquisa, de elucidação intelectual e de clareza expositiva levado a cabo por este livro.
Apesar da minúcia da pesquisa, é difícil ler "O Declínio dos Mandarins Alemães" sem sobressaltos e crescente angústia. O caráter cada vez mais dramático da situação dos intelectuais alemães -tentando salvar o que entendiam por "cultura", mas cegos diante do fato de que essa "cultura" era também sinônimo de exclusão- faz do livro de Ringer algo bem mais vibrante do que seria de esperar dentro dos limites, a que o autor aliás se atém de forma rigorosa, de uma dissertação acadêmica.



O Declínio dos Mandarins Alemães
440 págs., R$ 52,00
de Fritz K. Ringer. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, 374, travessa J, 6º andar, SP, tel. 0/xx/11/3818-4006).





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