São Paulo, domingo, 11 de março de 2001

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Manuscritos de "Viagem ao Fim da Noite", que irão a leilão em abril, lançam luz sobre um dos principais romances franceses do século 20

Céline volta a incomodar

Leda Tenório da Motta
especial para a Folha

Para a comoção geral, vai ser levado a leilão, na França, nas próximas semanas, por cerca de US$ 1 milhão, um imperdível manuscrito perdido. Trata-se de um belo lote escrito à mão, nada mais, nada menos, pelo mais importante prosador francês depois de Proust -e, aliás, seu seguidor confesso: Céline.
E não se trata de pouca coisa, como vem sendo informado desde que a notícia explodiu. São 876 folhas manuscritas, muitas vezes na frente e no verso, a serem provavelmente arrematadas pela Biblioteca Nacional de Paris. E, não bastasse tudo isso, o considerável manuscrito é a primeira versão do mais célebre romance de Céline, o livro de estréia, de 1932: "Viagem ao Fim da Noite" (no Brasil, editado pela Companhia das Letras). E, ao que se diz, é um colecionador inglês que está passando o autógrafo para a frente.
Mas as coisas são tão mais dramáticas quanto sempre se soube, nesse caso, que o manuscrito existia e que estava perdido, talvez irremediavelmente, desde que foi vendido por Céline, em 1943, em plena guerra, por 10 mil francos, com um pequeno Renoir. Negociação essa que não deveria causar espécie, quando também se sabe que o escritor já se preparava, naquele momento, para abandonar a França, onde as coisas iam de mal a pior, principalmente para ele. E quando se conhece sua fixação (no sentido clínico) por dinheiro, que ele acaba ganhando com esse mesmo romance, que volta agora do passado. E que foi daí que saíram os recursos para a fuga para a Dinamarca, via Alemanha, empreendida no ano seguinte, na liberação.
Ele, aliás, fala disso na abertura do primeiro volume de sua deslumbrante trilogia final, "D'un Chateau, l'Autre" ("De Castelo em Castelo", 1957; os castelos são os quartéis-generais do pessoal de Vichy na Alemanha, onde ele vai parar). Ele, que não cessava de dizer que escrevia por dinheiro, o que não era para ser entendido ao pé da letra. Embora Sartre, com a sublime falta de sensibilidade para a psicologia profunda dos gênios que o caracterizava, tenha acreditado nessa arenga obsessiva a ponto de dizer que o escritor era pago pelos nazistas para publicar o que publicava. O que lançou a hipótese de que teria contribuído diretamente para o Holocausto. Ora, se isso fosse verdade, o manuscrito desenterrado seria nada mais nada menos que o ponto de partida dessa literatura venal e letal.
Qual a verdadeira importância desses papéis ligados a uma figura de escritor tão explosiva -pergunta o mundo-, que, não obstante sua crescente afirmação artística, ficou presa ao estigma da colaboração e cuja história envolve dois anos de cadeia (em Copenhague, onde o escritor é alcançado em sua fuga) e o fuzilamento do editor Denoël (em plena rua, em dezembro de 1945)? Antes de um começo de reconhecimento, que acontece no final dos anos 50, pouco antes da morte, em 1961, já na Gallimard.
Ela é enorme. Pois, para além da felicidade absoluta em que se constitui por si só um achado desses, que deve equivaler a algo assim como encontrar um esboço de um Renoir -para ficar num mestre que Céline apreciava, embora os seus famosos pontos de exclamação e muitas reticências arejantes fossem inspirados nos pontilhistas-, é a própria gênese do romance, de que não era possível saber muita coisa, até aqui, ou o próprio ato de engendramento de um ficcionista máximo que se desvendam para os pesquisadores de todo tipo, particularmente para os geneticistas, a partir do próximo mês de abril. Já que é com "Viagem ao Fim da Note" que Céline entra na literatura. A menos que se considere que já é escritura a bela tese de doutorado em medicina defendida em 1924 sobre a "A Vida e a Obra de Semmelweis" (Companhia das Letras) -o pioneiro da assepsia-, como admitem alguns.

Primeira passada de tinta Mas, ainda que se recue o ponto de partida, o que se ganha é a primeira passada de tinta de um dos romances que mais marcaram o século 20. A comparar, obrigatoriamente, daqui por diante, com uma outra, que era a única, até prova em contrário, de que se dispunha. Essa segunda, em poder de um outro colecionador, que a publicou, parcialmente, algumas poucas vezes, no passado, mas só para bibliófilos, em edições ultralimitadas.
E tanto mais que as 800 e tantas páginas recuperadas surgem fartamente corrigidas e aumentadas, de próprio punho, pelo escritor, segundo se noticia. Temos aí o próprio fetiche da cena poética primitiva, enfim. Ou, já que o manuscrito recuperado é o primeiro do primeiro romance... o DNA do resto. Mas afora tudo o que de propriamente poético se possa estar comemorando neste momento e tudo o que, mais para a frente, se venha a tirar daí, em matéria de conhecimento de causa e comentário crítico, o maior interesse do manuscrito é trazer à tona o próprio problema Céline, nos parece.
Já que o romance de estréia, que antecede de alguns anos os não menos famosos panfletos do escritor -publicados no delicado período de 1937 a 1941, com uma verve ainda mais agressiva que a anterior, em que os especialistas tendem a ver a precipitação do grande estilo da maturidade, apesar de as agressões se revestirem de furor anti-semita, em sua incandescência geral-, está na raiz de um equívoco digno de nota.
De fato, por um breve momento, e por conta dos leitores que acaba encontrando, "Viagem ao Fim da Noite" faz do doutor Destouches -o verdadeiro nome de Céline, que era médico de profissão e, aliás, praticante de ambulatórios da periferia pobre parisiense, fato com o qual a ladainha do dinheiro tem, certamente, algo a ver- o porta-voz da maior revolta literária desses tempos sombrios, e assim um verdadeiro ícone da "rive gauche". Com tudo o que essa margem do Sena, em volta da qual se agrupam os escritores, comporta, na época, de pertencimento à boa consciência de esquerda da literatura francesa.
E tudo o que ela deve a Sartre, o mentor mesmo de tais espíritos, acirrados na defesa de um punhado de idéias progressistas consensuais. Já que é ele quem chama a atenção para o médico escritor que parece bradar toda a cólera dos homens. E que, ironicamente, depois de comemorar a primeira bomba da safra celiniana, enfatizando o valor de denúncia de seus excessos, vai se arvorar, diante da produção subsequente, cada vez mais violenta, no maior algoz de Céline, denunciando-o, expressamente, no número um da revista "Les Temps Modernes" (em 1945), como um "collabo" (colaboracionista).
E o fato é que, junto com a questão do engajamento dos escritores do lado certo da história, é na questão do Holocausto -ou do mais grave problema ético do século 20, por mais que saibamos hoje de cifras relativas aos gulags (campos de concentração da União Soviética), por exemplo, que mostram que o massacre dos judeus não foi o único- que esse manuscrito vem, ainda, remexer. Dando aos celinianos -toda uma pequena família, que começa, lá atrás, com Henry Miller, que vem se instalar na geografia de "Viagem", o bairro de Clichy, para ficar mais perto do legado, e termina na Universidade de Paris 7, onde funciona hoje um Centre Céline, envolvendo gente como Julia Kristeva- a oportunidade de responder novamente às "esquerdas".

Escritura hiperbólica Reiterando que a pecha de fascista não apenas reduz a infinitamente torturada abertura do discurso celiniano contra tudo e contra todos -aí compreendidos os judeus, é bem verdade que em má hora-, mas faz tábula rasa da escritura hiperbólica que é a do escritor, nesse sentido herdeiro de Sade, que, como se sabe, insere um dos mais violentos exemplares do gênero panfleto em "A Filosofia na Alcova". É essa transfiguração que derruba as abordagens mais toscamente temáticas ou mais politicamente corretas. Já que não se pode ignorar, por mais embaraçoso que seja o assunto de um grande escritor, ou por menos beleza moral que ostente, que o estilo não apenas conta, mas... significa.
Ou, dito em outras palavras, que ele muda tudo. Tomar Céline por nazista tem a mesma fundura que tachar La Rochefoucauld de misógino, só porque ele deixou finos pensamentos sobre as "coquetes", ou pretender que Henry James escrevia sobre fantasmas.
Nem o fundo nem a forma celiniana se coadunam, na verdade, com a argumentação de tipo granítico que é a dos totalitaristas. E, aliás, de acordo com Kristeva, nem mesmo os panfletos, com sua retórica mais febrilmente persecutória, teriam a ver com qualquer demonstração ideológica da parte do escritor. Interpretação endossada por outro especialista, Henri Godard -aliás, o mesmo que assina um dos recentes artigos no "Le Monde" (de 26/1) sobre o manuscrito recuperado-, para quem a escritura celiniana, ao contrário de fechada, é toda esburacada, no seu cruzamento proustiano de tempos, espaços e posições de enunciação rememorante. Ou, como diz Godard, "rendilhada". A mãe do escritor era comerciante de rendas e bordados, por sinal, numa daquelas "passagens" comerciais pelas quais tanto se interessa Benjamin.
E, assim, o mais importante a sublinhar, no momento em que o novo século se depara com esse velho Céline desde sempre intratável, é que ele já era Céline em 1932, quando já fazia a crônica da Primeira Guerra -ainda que a "margem esquerda" não tenha percebido nada, porque só encontrava nele o que buscava. E que tudo nessa literatura de testemunho sobre a grande "boucherie" (açougue, carnificina) -tão mais desconfortável quanto ela se posta, singularmente, não do lado das vítimas, mas no centro do vulcão- já está dado, para quem sabe ouvir, desde essa "Viagem", que vai agora a leilão, como uma tela de mestre. Até porque o Bardamu, alter ego do escritor, que já impreca ali, antes que Céline se ponha a falar definitivamente em primeira pessoa, como Proust, seu modelo, a partir de "Morte a Crédito" (1936), é combatente de guerra, médico e observador ultrapessimista como seu criador.
O que muda, depois disso, de um lado, é que o mundo a descrever conseguiu ficar ainda pior. De outro, que o escritor, até por causa do inesperado sucesso de seu primeiro romance -cujos direitos chegaram a ser vendidos para o cinema, depois que o livro é traduzido para diversas línguas, inclusive para o russo da Cortina de Ferro-, apura sua expressão. Há uma luta crescente com as próprias palavras, tarefa de toda grande literatura, de resto, em paralelo à guerra real. E é dessa dupla batalha que vêm os excessos: além das hipérboles e dos pontos de exclamação, que introduzem uma indignação, a gíria pesada e o baixo calão de periferia (a edição Pléiade das obras completas traz um pequeno dicionário de gíria para facilitar a compreensão do autor). E isso é quanto basta para o formidável desentendimento final entre Céline e seu tempo. Por certo duro, mas também vindicativo, senão filisteu. Os especialistas falam numa "arte do desentendimento" com os tempos, antes que numa suposta cooptação.
Mas comemore-se ainda, para terminar, que nessa versão de "Viagem", a exemplo do que já acontecia com o inédito de Proust, nos anos 80 (onde se mudava o lugar da morte de Albertine, e com isso os "côtés" -caminhos- de "Em Busca do Tempo Perdido"), há uma reviravolta completa dos acontecimentos. Já que não é Bardamu que conduz, aí, a narração, e sim seu interlocutor, Arthur. O que significa dar a palavra principal ao conformista, não ao anarquista. O mundo também se pergunta o que poderia ter sido a estréia de Céline -e todo Céline- se tivesse prevalecido a anarquia vista assim de fora! Já que o furor celiniano é no âmago.


Leda Tenório da Motta é professora no programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica), autora de, entre outros, "Lições de Literatura Francesa" (Ed. Imago).


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