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Manuscritos de "Viagem ao Fim da Noite", que irão a leilão em abril, lançam luz sobre um dos principais romances franceses do século 20
Céline volta a incomodar
Leda Tenório da Motta
especial para a Folha
Para a comoção geral, vai ser levado a leilão, na
França, nas próximas semanas, por cerca de US$
1 milhão, um imperdível manuscrito perdido.
Trata-se de um belo lote escrito à mão, nada
mais, nada menos, pelo mais importante prosador
francês depois de Proust -e, aliás, seu seguidor confesso: Céline.
E não se trata de pouca coisa, como vem sendo informado desde que a notícia explodiu. São 876 folhas manuscritas, muitas vezes na frente e no verso, a serem
provavelmente arrematadas pela Biblioteca Nacional
de Paris. E, não bastasse tudo isso, o considerável manuscrito é a primeira versão do mais célebre romance
de Céline, o livro de estréia, de 1932: "Viagem ao Fim da
Noite" (no Brasil, editado pela Companhia das Letras).
E, ao que se diz, é um colecionador inglês que está passando o autógrafo para a frente.
Mas as coisas são tão mais dramáticas quanto sempre
se soube, nesse caso, que o manuscrito existia e que estava perdido, talvez irremediavelmente, desde que foi
vendido por Céline, em 1943, em plena guerra, por 10
mil francos, com um pequeno Renoir. Negociação essa
que não deveria causar espécie, quando também se sabe
que o escritor já se preparava, naquele momento, para
abandonar a França, onde as coisas iam de mal a pior,
principalmente para ele. E quando se conhece sua fixação (no sentido clínico) por dinheiro, que ele acaba ganhando com esse mesmo romance, que volta agora do
passado. E que foi daí que saíram os recursos para a fuga para a Dinamarca, via Alemanha, empreendida no
ano seguinte, na liberação.
Ele, aliás, fala disso na abertura do primeiro volume
de sua deslumbrante trilogia final, "D'un Chateau, l'Autre" ("De Castelo em Castelo", 1957; os castelos são os
quartéis-generais do pessoal de Vichy na Alemanha,
onde ele vai parar). Ele, que não cessava de dizer que escrevia por dinheiro, o que não era para ser entendido ao
pé da letra. Embora Sartre, com a sublime falta de sensibilidade para a psicologia profunda dos gênios que o caracterizava, tenha acreditado nessa arenga obsessiva a
ponto de dizer que o escritor era pago pelos nazistas para publicar o que publicava. O que lançou a hipótese de
que teria contribuído diretamente para o Holocausto.
Ora, se isso fosse verdade, o manuscrito desenterrado
seria nada mais nada menos que o ponto de partida
dessa literatura venal e letal.
Qual a verdadeira importância desses papéis ligados a
uma figura de escritor tão explosiva -pergunta o mundo-, que, não obstante sua crescente afirmação artística, ficou presa ao estigma da colaboração e cuja história
envolve dois anos de cadeia (em Copenhague, onde o
escritor é alcançado em sua fuga) e o fuzilamento do
editor Denoël (em plena rua, em dezembro de 1945)?
Antes de um começo de reconhecimento, que acontece
no final dos anos 50, pouco antes da morte, em 1961, já
na Gallimard.
Ela é enorme. Pois, para além da felicidade absoluta
em que se constitui por si só um achado desses, que deve equivaler a algo assim como encontrar um esboço de
um Renoir -para ficar num mestre que Céline apreciava, embora os seus famosos pontos de exclamação e
muitas reticências arejantes fossem inspirados nos pontilhistas-, é a própria gênese do romance, de que não
era possível saber muita coisa, até aqui, ou o próprio ato
de engendramento de um ficcionista máximo que se
desvendam para os pesquisadores de todo tipo, particularmente para os geneticistas, a partir do próximo
mês de abril. Já que é com "Viagem ao Fim da Note"
que Céline entra na literatura. A menos que se considere que já é escritura a bela tese de doutorado em medicina defendida em 1924 sobre a "A Vida e a Obra de Semmelweis" (Companhia das Letras) -o pioneiro da assepsia-, como admitem alguns.
Primeira passada de tinta Mas, ainda que se recue o ponto de partida, o que se ganha é a primeira passada de tinta de um dos romances que mais marcaram
o século 20. A comparar, obrigatoriamente, daqui por
diante, com uma outra, que era a única, até prova em
contrário, de que se dispunha. Essa segunda, em poder
de um outro colecionador, que a publicou, parcialmente, algumas poucas vezes, no passado, mas só para bibliófilos, em edições ultralimitadas.
E tanto mais que as 800 e tantas páginas recuperadas
surgem fartamente corrigidas e aumentadas, de próprio punho, pelo escritor, segundo se noticia. Temos aí
o próprio fetiche da cena poética primitiva, enfim. Ou,
já que o manuscrito recuperado é o primeiro do primeiro romance... o DNA do resto. Mas afora tudo o que de
propriamente poético se possa estar comemorando
neste momento e tudo o que, mais para a frente, se venha a tirar daí, em matéria de conhecimento de causa e
comentário crítico, o maior interesse do manuscrito é
trazer à tona o próprio problema Céline, nos parece.
Já que o romance de estréia, que antecede de alguns
anos os não menos famosos panfletos do escritor -publicados no delicado período de 1937 a 1941, com uma
verve ainda mais agressiva que a anterior, em que os especialistas tendem a ver a precipitação do grande estilo
da maturidade, apesar de as agressões se revestirem de
furor anti-semita, em sua incandescência geral-, está
na raiz de um equívoco digno de nota.
De fato, por um breve momento, e por conta dos leitores que acaba encontrando, "Viagem ao Fim da Noite"
faz do doutor Destouches -o verdadeiro nome de Céline, que era médico de profissão e, aliás, praticante de
ambulatórios da periferia pobre parisiense, fato com o
qual a ladainha do dinheiro tem, certamente, algo a
ver- o porta-voz da maior revolta literária desses tempos sombrios, e assim um verdadeiro ícone da "rive
gauche". Com tudo o que essa margem do Sena, em volta da qual se agrupam os escritores, comporta, na época, de pertencimento à boa consciência de esquerda da
literatura francesa.
E tudo o que ela deve a Sartre, o mentor mesmo de tais
espíritos, acirrados na defesa de um punhado de idéias
progressistas consensuais. Já que é ele quem chama a
atenção para o médico escritor que parece bradar toda a
cólera dos homens. E que, ironicamente, depois de comemorar a primeira bomba da safra celiniana, enfatizando o valor de denúncia de seus excessos, vai se arvorar, diante da produção subsequente, cada vez mais violenta, no maior algoz de Céline, denunciando-o, expressamente, no número um da revista "Les Temps Modernes" (em 1945), como um "collabo" (colaboracionista).
E o fato é que, junto com a questão do engajamento
dos escritores do lado certo da história, é na questão do
Holocausto -ou do mais grave problema ético do século 20, por mais que saibamos hoje de cifras relativas
aos gulags (campos de concentração da União Soviética), por exemplo, que mostram que o massacre dos judeus não foi o único- que esse manuscrito vem, ainda,
remexer. Dando aos celinianos -toda uma pequena
família, que começa, lá atrás, com Henry Miller, que
vem se instalar na geografia de "Viagem", o bairro de
Clichy, para ficar mais perto do legado, e termina na
Universidade de Paris 7, onde funciona hoje um Centre
Céline, envolvendo gente como Julia Kristeva- a oportunidade de responder novamente às "esquerdas".
Escritura hiperbólica Reiterando que a pecha de
fascista não apenas reduz a infinitamente torturada
abertura do discurso celiniano contra tudo e contra todos -aí compreendidos os judeus, é bem verdade que
em má hora-, mas faz tábula rasa da escritura hiperbólica que é a do escritor, nesse sentido herdeiro de Sade, que, como se sabe, insere um dos mais violentos
exemplares do gênero panfleto em "A Filosofia na Alcova". É essa transfiguração que derruba as abordagens
mais toscamente temáticas ou mais politicamente corretas. Já que não se pode ignorar, por mais embaraçoso
que seja o assunto de um grande escritor, ou por menos
beleza moral que ostente, que o estilo não apenas conta,
mas... significa.
Ou, dito em outras palavras, que ele muda tudo. Tomar Céline por nazista tem a mesma fundura que tachar La Rochefoucauld de misógino, só porque ele deixou finos pensamentos sobre as "coquetes", ou pretender que Henry James escrevia sobre fantasmas.
Nem o fundo nem a forma celiniana se coadunam, na
verdade, com a argumentação de tipo granítico que é a
dos totalitaristas. E, aliás, de acordo com Kristeva, nem
mesmo os panfletos, com sua retórica mais febrilmente
persecutória, teriam a ver com qualquer demonstração
ideológica da parte do escritor. Interpretação endossada por outro especialista, Henri Godard -aliás, o mesmo que assina um dos recentes artigos no "Le Monde"
(de 26/1) sobre o manuscrito recuperado-, para quem a escritura celiniana, ao contrário de fechada, é toda esburacada, no seu cruzamento proustiano de tempos,
espaços e posições de enunciação rememorante. Ou,
como diz Godard, "rendilhada". A mãe do escritor era
comerciante de rendas e bordados, por sinal, numa daquelas "passagens" comerciais pelas quais tanto se interessa Benjamin.
E, assim, o mais importante a sublinhar, no momento
em que o novo século se depara com esse velho Céline
desde sempre intratável, é que ele já era Céline em 1932,
quando já fazia a crônica da Primeira Guerra -ainda
que a "margem esquerda" não tenha percebido nada,
porque só encontrava nele o que buscava. E que tudo
nessa literatura de testemunho sobre a grande "boucherie" (açougue, carnificina) -tão mais desconfortável
quanto ela se posta, singularmente, não do lado das vítimas, mas no centro do vulcão- já está dado, para
quem sabe ouvir, desde essa "Viagem", que vai agora a
leilão, como uma tela de mestre. Até porque o Bardamu, alter ego do escritor, que já impreca ali, antes que
Céline se ponha a falar definitivamente em primeira
pessoa, como Proust, seu modelo, a partir de "Morte a
Crédito" (1936), é combatente de guerra, médico e observador ultrapessimista como seu criador.
O que muda, depois disso, de um lado, é que o mundo
a descrever conseguiu ficar ainda pior. De outro, que o
escritor, até por causa do inesperado sucesso de seu primeiro romance -cujos direitos chegaram a ser vendidos para o cinema, depois que o livro é traduzido para
diversas línguas, inclusive para o russo da Cortina de
Ferro-, apura sua expressão. Há uma luta crescente
com as próprias palavras, tarefa de toda grande literatura, de resto, em paralelo à guerra real. E é dessa dupla
batalha que vêm os excessos: além das hipérboles e dos
pontos de exclamação, que introduzem uma indignação, a gíria pesada e o baixo calão de periferia (a edição
Pléiade das obras completas traz um pequeno dicionário de gíria para facilitar a compreensão do autor). E isso é quanto basta para o formidável desentendimento
final entre Céline e seu tempo. Por certo duro, mas também vindicativo, senão filisteu. Os especialistas falam
numa "arte do desentendimento" com os tempos, antes
que numa suposta cooptação.
Mas comemore-se ainda, para terminar, que nessa
versão de "Viagem", a exemplo do que já acontecia com
o inédito de Proust, nos anos 80 (onde se mudava o lugar da morte de Albertine, e com isso os "côtés" -caminhos- de "Em Busca do Tempo Perdido"), há uma
reviravolta completa dos acontecimentos. Já que não é
Bardamu que conduz, aí, a narração, e sim seu interlocutor, Arthur. O que significa dar a palavra principal ao
conformista, não ao anarquista. O mundo também se
pergunta o que poderia ter sido a estréia de Céline -e
todo Céline- se tivesse prevalecido a anarquia vista assim de fora! Já que o furor celiniano é no âmago.
Leda Tenório da Motta é professora no programa de Comunicação e
Semiótica da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica), autora de, entre outros, "Lições de Literatura Francesa" (Ed. Imago).
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