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Pureza pela violência
Claudia Assef
de Paris
No fim da Segunda Guerra Mundial, a França
viril, que se livrou da ocupação alemã e teve
fôlego para renascer das cinzas, caminhou de
mãos dadas com a França covarde, pátria na
qual machos lavavam a honra raspando as cabeças de
mulheres que colaboraram com o inimigo. As duas
Franças se encontram em "La France Virile", primeiro
livro do historiador Fabrice Virgili.
Seu conteúdo arrebatador, em forma de documentário de guerra, acabou fazendo do livro um dos mais comentados na França durante o ano passado.
O subtítulo da obra resume bem seu teor: "Des Femmes Tondues à la Libération" (As Mulheres Raspadas
na Liberação). As "tondues" (raspadas) do pós-guerra
são ainda hoje um tema quase mítico na França.
"Pouco havia sido escrito e até mesmo falado sobre
esse assunto", disse à Folha o autor do livro. "Porém
quase todo mundo na França já ouviu histórias sobre as
"raspadas", contadas por alguma tia ou vizinha."
Apesar de fazer parte do inconsciente coletivo de boa
parte da população, a história dessas mulheres nunca
havia sido pesquisada com tal profundidade. "Comecei
a trabalhar nesse tema sem perceber sua importância. É
um evento que mistura violência, sexualidade e honra,
um universo fascinante", diz Virgili, que se dedicou exclusivamente ao tema por sete anos. A pesquisa começou em jornais e revistas da época e se estendeu a fichas
policiais e dossiês do Ministério da Justiça francês.
Filmes amadores Virgili usou ainda arquivos de prefeituras, fotografias e
filmes amadores, feitos por soldados
americanos e britânicos. "Eles estavam
na França na época da liberação. Vieram
filmar a saída dos alemães das cidades.
Mas as cenas das "tondues" os chocavam
tanto que eles acabaram as registrando
com frequência", diz.
O ato de raspar a cabeça das "traidoras" apareceu durante a ocupação da
França pela Alemanha, a partir de junho de 1940. "Desde o mês seguinte, em julho, a idéia de punir as mulheres que contribuíssem de alguma maneira com os alemães começou a ganhar as ruas", explica o historiador.
Os primeiros registros de "tondues" vieram em 1943.
"No começo, a "cerimônia" de raspar o cabelo das mulheres era realizada clandestinamente, à noite, por homens mascarados", conta Virgili. Durante a libertação
da França, quando o inimigo alemão deixou o país, as "tondues" viraram coisa
corriqueira. "A partir de junho de 1944,
as "raspadas" começam a aparecer em todas as regiões da França", diz.
Ao final de sua pesquisa, Virgili conseguiu calcular o número da violência:
num período de dois anos, a França
"produziu" 20 mil "tondues".
Normalmente o ato de raspar a cabeça
de uma "traidora" acontecia em praça
pública. Na maioria dos casos, a mulher
era trazida de sua casa para o acontecimento. "Era quase uma festa. As pessoas gritavam, levavam os filhos para assistir e agitavam, orgulhosas, a bandeira da França."
Durante a liberação, o clima de festa nas ruas se misturava com um mal-estar, uma vontade de lavar e afogar a humilhação sofrida durante a ocupação. A imprensa clandestina da época trazia advertências: "Cuidado, você será raspada quando a liberação chegar".
Segundo Virgili, durante o período da liberação os
franceses lutavam para reconquistar a força e a masculinidade, esmagadas pelo poder do inimigo. "A virilidade, que fora abafada durante a ocupação, estava de volta", diz. "Mas, para que tudo voltasse aos trilhos, era
preciso lavar a honra da pátria."
Marianne suja Virgili acredita que a idéia de punir
as mulheres que traíram o país tenha uma ligação com o
principal símbolo nacional da França, a Marianne, que
é uma figura feminina.
"Simbolicamente, é possível ver nas "tondues" uma
vontade de limpar a imagem da mulher francesa, da
Marianne", compara. "Nesse raciocínio, foi a Marianne
quem dormiu com o inimigo. Então, era preciso limpá-la, para que ela reencontrasse sua pureza, sua virgindade." O mais chocante, segundo o autor, é perceber que
na mesma época em que tantas mulheres sofriam tamanha humilhação, elas também ganhavam o direito ao
voto na França.
Em abril de 1944, quando a lei do sufrágio é adotada,
acontecem as primeiras eleições municipais. "Há uma
ligação entre os dois fatos: para que o francês pudesse se
tornar um cidadão, era preciso ser um "francês puro".
Para isso, era preciso punir os que traíram o país."
O livro não traz nenhuma entrevista. A idéia era relatar o mal e não revivê-lo pelos olhos de uma "tondue".
"Até hoje essas mulheres carregam um status ambíguo. Na época, o sentimento das pessoas era de que elas
eram culpadas e que mereciam a punição. Mais tarde, a
forma como a punição era conduzida, com violência,
começou a provocar um mal-estar nas pessoas. E elas
passaram a ser vistas como vítimas." Vítimas ou culpadas, as "tondues" entram de uma vez por todas para a
história da França com "La France Virile".
La France Virile
391 págs., 22,11 euros
de Fabrice Virgili. Ed. Payot
(França)
Onde encomendar
Livros em francês podem ser
encomendados, em SP, à livraria Francesa (tel. 0/ xx/11/231-4555) e, no RJ, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/21/ 533-2237).
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