São Paulo, domingo, 11 de abril de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+Sociedade

Preto no branco


Situação de calamidade no Zimbábue faz população ter saudade do velho regime, branco e racista, diz jornalista


NICHOLAS D. KRISTOF
DO "NEW YORK TIMES", EM HWANGE (ZIMBÁBUE)

Eis um indicador da destruição que o presidente Robert Mugabe vem causando no antes próspero Zimbábue. Em uma semana de reportagens realizadas aqui de maneira sub-reptícia (cometer jornalismo pode ser delito criminal no Zimbábue), pessoas comuns com quem conversei repetiram inúmeras vezes que a vida era melhor sob o velho regime, branco e racista, do país então chamado Rodésia.
"Quando o país mudou de Rodésia para Zimbábue, ficamos muito entusiasmados", disse um homem, Kizita, na aldeia formada por casas de paredes de barro em que vive, perto de Hwange, uma cidade no oeste do país.
"Mas não percebemos que aqueles a quem estávamos expulsando eram melhores, e que os que estávamos colocando no poder nos oprimiriam".
"Teria sido melhor se os brancos continuassem a governar, porque o dinheiro teria continuado a entrar", acrescentou um vizinho, um agricultor de 58 anos de idade chamado Isaac. "Era melhor na época da Rodésia. Pelo menos havia empregos. As coisas eram mais baratas nas lojas. Agora não temos dinheiro nem comida."
Barry Bearak, um colega do "New York Times", foi aprisionado aqui em 2008 por suas reportagens, e por isso usei um passaporte novo para entrar no país como turista.
Em parte para proteger minha segurança, evitei entrevistar pessoas conectadas ao governo, de modo que não posso estar seguro de que meu vislumbre do clima reinante entre o povo seja representativo.
As pessoas com quem conversei temiam muito por sua segurança pessoal caso citadas -um medo muito maior do que existia no passado. É por isso que sou impreciso quanto a locais e concordei em não citar nomes completos.
Mas o que fica claro é que o Zimbábue decaiu muito nas últimas décadas (embora tenha melhorado ligeiramente ante a situação terrível que existia dois anos atrás).
O sistema de educação e saúde, um dia impressionante, está arruinado, e a expectativa de vida caiu de 60 anos em 1990 para entre 36 e 44, a depender das estatísticas.

Sem remédio, sem escola
Na aldeia de Kizita, por exemplo, fui apresentado a uma mulher de 29 anos de idade e grávida de sete meses que estava sofrendo de malária. Ela e o marido caminharam mais de seis quilômetros para chegar à clínica mais próxima, onde um teste demonstrou que era portadora de malária.
Mas a clínica se recusou a lhe fornecer o remédio que poderia salvar sua vida, a menos que ela pagasse US$ 2, e ela não tinha dinheiro nenhum em casa. Por isso, febril, ela caminhou de volta por mais seis quilômetros, de mãos vazias.
Por coincidência, dias antes eu havia visitado a clínica a que ela recorreu. As enfermeiras da instituição se queixaram de escassez crônica de bandagens, antibióticos e leitos.
Disseram que, para sobreviver, precisavam cobrar taxas dos pacientes clínicos, pelas consultas de planejamento familiar, pelos cursos pré-natais e a consequência é que os aldeões empobrecidos morrem, porque não podem pagar.
Também passei algum tempo em uma escola primária na qual o número de alunos despencou porque muito poucos pais são capazes de pagar a anuidade de US$ 36.
"Não temos carteiras de estudo. Não temos cadeiras. Não temos livros", explicou a diretora. A escola tampouco dispõe de água ou energia elétrica.
O Zimbábue é abençoado com um povo amistoso, uma fauna extraordinária e baixa criminalidade. A tragédia que vem se desenrolando aqui pode ser revertida, se Mugabe for obrigado pela pressão internacional, especialmente da África do Sul, a realizar eleições livres.
Foi a pressão mundial que levou o opressivo regime rodesiano a abandonar o poder três décadas atrás. Agora, é preciso pressão igual, tanto dos países ocidentais quanto dos africanos, para que Mugabe deixe de sufocar seu adorável país.

Tradução de Paulo Migliacci.



Texto Anterior: +Política: Obama antes da fama
Próximo Texto: O homem cinema
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.