São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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Ponto de Fuga
O lugar do povo

Jorge Coli

No século 19, os românticos afirmaram a noção de arte popular. Nela descobriram forças criadoras enérgicas, profundas, sinceras, capazes de regenerar a consciência cultural e artística do Ocidente. Nesse novo território, porém, brotou um espinheiro emaranhado, onde se mesclaram povo, arte, cultura, raça, nação, Estado. O desenho artificioso da geografia política, que recorta países no mapa, adquiriu aspecto enganador de verdade inata ao tornar-se legitimado por origens populares. Proclamando que suas raízes provinham de um solo popular, as ideologias nacionalistas se acreditaram "naturais". Mais ainda, amalgamando povo e raça, atribuíram procedências biológicas a um nacionalismo supostamente instintivo. Os totalitarismos do século 20 fizeram uso horrendo dessa mixórdia.
Um breve texto, não muito divulgado, ilumina tais questões. Redigido em 1928, demonstra espantoso caráter premonitório. Sua tradução em português se encontra na "Revista Brasileira de História" (15, 1987/8). Trata-se de "Arte e Cultura Populares", que Henri Focillon (1881-1943) escreveu como apresentação às atas do 1º Congresso Internacional das Artes Populares, ocorrido naquele ano, em Praga.
Focillon desejava "suscitar comparações e estabelecer grandes linhas de uma espécie de quadro ideal em que a classificação por nacionalidade não impedisse de ver, com vigor, os liames que unem tantas formas diversamente nuançadas, mas não estrangeiras umas às outras". Formas vindas de todo o mundo, atestando parentescos para além das fronteiras.

Ciladas - Focillon alertou: "Os esquemas nacionais e os esquemas étnicos não coincidem e não poderiam coincidir, porque são instáveis, moventes, porque a noção de raça é confusa e frequentemente artificial, porque um povo é um complexo antigo ou recente, estabilizado numa língua e numa civilização: mas essas próprias línguas e essas civilizações se enriquecem pelo exterior, sob pena de morrer". Em 1928, levanta-se contra os nacionalismos que se perfilavam então no horizonte de várias culturas.
O Brasil não escapou das vagas nacionalistas. Nascidas no século 19, fortaleceram-se com o tempo. Modernizaram-se. Contemporâneo aos escritos de Focillon, Mário de Andrade, no final dos anos de 1920, propunha fórmulas para a criação de uma arte nacional fundada no popular: era o "Ensaio sobre a Música Brasileira". Nesse mesmo momento, demonstrava, com uma grande obra literária, "Macunaíma", as possibilidades de tais receitas. O populismo nacionalista do Estado Novo, em seguida, soube carrear, no seu fluxo, todos os que acreditavam numa essência brasileira; esse fluxo mostraria ainda poderes durante a ditadura militar. São, na verdade, mitos cômodos, sumários e euforizantes, que, por isso mesmo, perduram.

Saídas - Focillon lembrou o caráter convencional da separação "em dois andares", como diz, entre arte, de um lado, e arte popular do outro. Queria também que os estudiosos não fossem da monografia pontual à constituição de um duvidoso caráter nacional, mas aos percursos que um tema, uma forma e uma técnica tomaram mundo afora. Formula: "A arte do povo não é forçosamente a arte dos povos".

Naif - O Centro Cultural Banco do Brasil (SP) apresenta a mostra "Pop Brasil - A Arte Popular e o Popular na Arte". O enunciado inclui dois problemas. Um deles é o das relações, quase sempre conflitantes, entre arte popular e produtos urbanos da indústria, do consumo, recuperados pela pop art. O outro, o das relações entre o que é chamado de arte popular e o que é chamado, simplesmente, de arte. Não resolve nenhum deles, nem sequer os discute. Sem muito cuidado, mistura algumas obras do pop art brasileiro com as de artistas que se voltaram para tradições populares, mas separa, em andares, a produção popular (embaixo) e a artística (em cima). Reitera as fundamentações conservadoras do nacionalismo. Por falta de reflexão mais densa, acomoda-se nas convenções e numa facilidade imprecisa.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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