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Ponto de fuga
Bienais, ainda
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Sheila Leirner enviou alguns comentários sobre os últimos textos publicados nesta coluna, que se referiam à
Bienal de Veneza. Sheila Leirner é
crítica de arte e foi, ela própria, curadora da
Bienal de São Paulo em 1985 e 1987. Entre
outras coisas, diz o seguinte: "Lembra
quando éramos crianças e acontecia alguma coisa grave? Fazíamos a mesma coisa
que os "artistas" de hoje realizam, coletiva
ou individualmente. Brincávamos. E lembre-se que os "artistas" de hoje também são
crianças. E cada vez mais crianças. Com 30
anos já estarão fazendo retrospectivas... Então, em face do que ocorre no mundo
-pois em meu entendimento a coisa nunca esteve tão preta-, agora o pessoal só
quer mesmo é brincar, "s'éclater'! Party! Na
minha opinião, as "bulas" nem são por causa da suposta "nobreza elevada da arte" que
a modernidade sempre combateu. Pior do
que isso, elas existem como "carteirinha"
para que os garotos possam entrar nos clubes dirigidos pelos curadores, estes sim
guardiões dos bons costumes e do status
quo. As bienais só vão se assumir como
"parque de diversões", "clube" (ou como "recreio de escola primária", com os curadores
como professores e bedéis, se preferir)
quando houver uma consciência disso tudo. Se você quiser, podemos lançar um movimento!".
A criançada transforma tudo em brinquedo, até aquilo que angustia. Mas qualquer criança razoável sabe o que é brincadeira e o que não é. Pode ser que não existam muito mais crianças razoáveis; em todo caso, os artistas de hoje, aqueles para
quem gatos são lebres, levam suas brincadeiras muito a sério.
Escorregador
Há alguns anos, o Guggenheim de Nova
York organizou uma exposição sobre Picasso e a Segunda Guerra Mundial. Eram
obras terríveis, angustiadas, depressivas.
Do outro lado da rua, o Metropolitan Museum expunha o Picasso de Antibes e Vallauris, o Picasso do pós-guerra que, num
refluxo de felicidade, inventava um mundo
mediterrâneo de faunos, ninfas, sátiros,
alegres e harmônicos.
Mas Sheila Leirner tem razão: pela farra,
criadores tentam aliviar as aflições coletivas
que lhes são contemporâneas. Porém deve
haver outra coisa. Quase cem anos depois
de Duchamp e de Dadá, a prática das artes,
não as teorias, demonstra que obras, com o
objetivo primário de criticar, contestar,
subverter, revelam, pelo desgaste da repetição, seus limites muito estreitos. O doloroso é que crítica, contestação, subversão, são
cartas de nobreza. Elas continuam iludindo: alguns modernos podem ter pensado
que combatiam a "nobreza elevada da arte". Nos fatos, o combate era um empurrão:
"Saia do trono para que eu possa me aboletar ali". Duchamp está nos museus exatamente como Leonardo, Ingres ou Bouguereau.
Por processo de concomitância e contaminação, a Bienal de Veneza 2005 criou
uma seqüência de salas celebrando um
morto, Bacon, e mumificando vivos: Tápies, Cildo Meireles, José Damaceno, entre
outros. Não importa que certas obras sejam
admiráveis: nesses recintos consagrados,
todos terminam transformados em medalhões.
Words, words, words
A palavra crítica pode ser muito esperta e
enganadora. À força de ser pronunciada,
torna-se mantra e termina por aniquilar
aquilo que enuncia. "Postura crítica", como se diz nos meios acadêmicos, é, no mais
das vezes, ilusão ou embuste. A atitude desconfortável, incômoda, incerta, que interroga, não se resolve com a afirmação de um
nome. Autocrítica é pior: faz pensar nos
processos de Moscou, em que intelectuais
assumiam a culpa do que não cometeram
para benefício histórico e coletivo. Autocrítica pode cheirar como uma confissão estratégica de erros. Bedéis são capazes de
crítica e autocrítica, mas raros serão os sinceros. Sheila Leirner tem carradas de razão.
Talvez ocorra uma renovação franca nas
artes quando todos tiverem consciência
clara que o nosso tempo é propício aos jogos.
Rápido
Sheila Leirner e Jorge Coli fundam, aqui e
agora, o movimento "Trem Fantasma" pela imediata transformação de bienais em
parques de diversão.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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