São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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Ponto de fuga

Bienais, ainda

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Sheila Leirner enviou alguns comentários sobre os últimos textos publicados nesta coluna, que se referiam à Bienal de Veneza. Sheila Leirner é crítica de arte e foi, ela própria, curadora da Bienal de São Paulo em 1985 e 1987. Entre outras coisas, diz o seguinte: "Lembra quando éramos crianças e acontecia alguma coisa grave? Fazíamos a mesma coisa que os "artistas" de hoje realizam, coletiva ou individualmente. Brincávamos. E lembre-se que os "artistas" de hoje também são crianças. E cada vez mais crianças. Com 30 anos já estarão fazendo retrospectivas... Então, em face do que ocorre no mundo -pois em meu entendimento a coisa nunca esteve tão preta-, agora o pessoal só quer mesmo é brincar, "s'éclater'! Party! Na minha opinião, as "bulas" nem são por causa da suposta "nobreza elevada da arte" que a modernidade sempre combateu. Pior do que isso, elas existem como "carteirinha" para que os garotos possam entrar nos clubes dirigidos pelos curadores, estes sim guardiões dos bons costumes e do status quo. As bienais só vão se assumir como "parque de diversões", "clube" (ou como "recreio de escola primária", com os curadores como professores e bedéis, se preferir) quando houver uma consciência disso tudo. Se você quiser, podemos lançar um movimento!".
A criançada transforma tudo em brinquedo, até aquilo que angustia. Mas qualquer criança razoável sabe o que é brincadeira e o que não é. Pode ser que não existam muito mais crianças razoáveis; em todo caso, os artistas de hoje, aqueles para quem gatos são lebres, levam suas brincadeiras muito a sério.

Escorregador
Há alguns anos, o Guggenheim de Nova York organizou uma exposição sobre Picasso e a Segunda Guerra Mundial. Eram obras terríveis, angustiadas, depressivas. Do outro lado da rua, o Metropolitan Museum expunha o Picasso de Antibes e Vallauris, o Picasso do pós-guerra que, num refluxo de felicidade, inventava um mundo mediterrâneo de faunos, ninfas, sátiros, alegres e harmônicos.
Mas Sheila Leirner tem razão: pela farra, criadores tentam aliviar as aflições coletivas que lhes são contemporâneas. Porém deve haver outra coisa. Quase cem anos depois de Duchamp e de Dadá, a prática das artes, não as teorias, demonstra que obras, com o objetivo primário de criticar, contestar, subverter, revelam, pelo desgaste da repetição, seus limites muito estreitos. O doloroso é que crítica, contestação, subversão, são cartas de nobreza. Elas continuam iludindo: alguns modernos podem ter pensado que combatiam a "nobreza elevada da arte". Nos fatos, o combate era um empurrão: "Saia do trono para que eu possa me aboletar ali". Duchamp está nos museus exatamente como Leonardo, Ingres ou Bouguereau.
Por processo de concomitância e contaminação, a Bienal de Veneza 2005 criou uma seqüência de salas celebrando um morto, Bacon, e mumificando vivos: Tápies, Cildo Meireles, José Damaceno, entre outros. Não importa que certas obras sejam admiráveis: nesses recintos consagrados, todos terminam transformados em medalhões.

Words, words, words
A palavra crítica pode ser muito esperta e enganadora. À força de ser pronunciada, torna-se mantra e termina por aniquilar aquilo que enuncia. "Postura crítica", como se diz nos meios acadêmicos, é, no mais das vezes, ilusão ou embuste. A atitude desconfortável, incômoda, incerta, que interroga, não se resolve com a afirmação de um nome. Autocrítica é pior: faz pensar nos processos de Moscou, em que intelectuais assumiam a culpa do que não cometeram para benefício histórico e coletivo. Autocrítica pode cheirar como uma confissão estratégica de erros. Bedéis são capazes de crítica e autocrítica, mas raros serão os sinceros. Sheila Leirner tem carradas de razão. Talvez ocorra uma renovação franca nas artes quando todos tiverem consciência clara que o nosso tempo é propício aos jogos.

Rápido
Sheila Leirner e Jorge Coli fundam, aqui e agora, o movimento "Trem Fantasma" pela imediata transformação de bienais em parques de diversão.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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