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Precariedade das bibliotecas brasileiras é determinante na fraca produção intelectual do país, em que
especialistas, desprovidos de livros, são obrigados a escrever cada vez menos ou a diluir suas idéias
A ficção acadêmica
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Se este texto houvesse sido escrito há alguns meses, teria
provavelmente um caráter
reivindicatório. Remeteria às
várias matérias publicadas nos últimos anos por jornais de São Paulo e
do Rio sobre as condições em que se
encontram as bibliotecas universitárias. Não precisaria citá-las para dizer o que ressaltavam: tetos desabando, paredes infiltradas, coleções
encaixotadas, livros umedecidos, estragados, desaparecidos. Provavelmente acrescentaria advertência publicada, em 3 de outubro de 2004,
neste caderno: "Os acervos das bibliotecas de duas das maiores instituições universitárias do país, a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, dispõem de parte dos 50 livros indicados pelos dez especialistas ouvidos
pelo Mais!".
Alguém saberá se isso teve algum
efeito? Como se fizesse parte dos estigmas nacionais, as bibliotecas das
maiores capitais do país -e não falo
das outras porque não devo prejulgá-las- permanecem em estado
precário, cada vez mais desfalcadas.
A descrição que Borges fizera -"O
universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um numero
indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais (...)"- antes nos parece parte de suas "ficciones".
É evidente que a "ficção" da biblioteca brasileira não é de hoje. (Em
"Sob o Peso das Sombras" [Planeta],
romance de Francisco Dantas, encontro uma variante que desconhecia: famílias que obrigam seus velhos parentes a se desfazerem das bibliotecas que tinham amealhado).
Desde que me entendo, sei que
aqueles que precisam de livros, no
Brasil, precisam tê-los em suas casas.
Partindo da premissa de que serão
professores, e não empresários, como os terão? Por suposto, hão de ter
herdado alguma casa ou apartamento espaçoso, para que caibam estantes bastantes e ainda haja lugar para
outras.
Mas as heranças não costumam
ser recebidas pelo tipo dos que vêem
os livros como matéria de primeira
necessidade. Na falta de herança, tenho de presumir que os que deles
precisam dispõem de bons salários.
E, como desde o século 19, os especialistas em matérias contidas em livros são sobretudo professores, devo imaginar que, para o funcionamento de nosso sistema intelectual,
os professores sejam bem pagos.
Ora, alguém que cogite disso seria
digno não de Borges, mas de uma
fantasia de Walt Disney.
Lembro-me, a respeito, do que ouvi há alguns anos. Durante uma de
nossas intermináveis greves universitárias, um grupo de professores
conseguiu ser recebido pela máxima
autoridade competente. Depois de
ouvir os argumentos dos grevistas, o
ilustre "representante do povo" teria
respondido: "A quantos por cento
do eleitorado os senhores correspondem?".
A resposta era irretocavelmente
"democrática": as reivindicações
não podiam ser levadas a sério pois
os grevistas representavam um número ínfimo da população. Mas,
sem entrada de caixa -e sequer se
imagina algum "caixa dois"-, como os especialistas podem exercer
sua função? Toda espécie de perversão torna-se viável. A mais espantosa: quanto mais amadurece, tanto
menos escreve nosso especialista.
As outras fazem parte da comitiva:
reescreve o que fizera e, como o número de leitores é pequeno e sua capacidade de saturação facilmente
atingida, nosso especialista tende a
diluir o que, em princípio, já nascera
diluído; ou, empunhe ou não uma
bandeira nacionalista, restringe-se a
tratar de bibliografias existentes em
português, quando não referentes a
temas de sua cidade.
Mesmo assim, a solução não está
alcançada: como saberá ele o que está publicado sobre certo tema ou autor, se, além das bibliotecas carentes,
não dispõe de publicações que registrem, sistematicamente, o que se
tem editado? E como saberá se um
determinado livro merece ser comprado? Inevitavelmente, há de se
guiar pelo renome do autor, o que,
dadas as dificuldades de informação, suporá a passagem de muitos
anos. Em suma, ou o nosso especialista "entra na real" e reconhece que
não tem condições de acompanhar a
bibliografia ou já existente ou que se
acumula sobre seu objeto, ou procura uma janela para o estrangeiro "civilizado".
O mundo de fora
Manter contato com o mundo de
fora torna-se uma questão de sobrevivência. A perda de um desses contatos será quase igual a um desastre
amoroso. Mas, cuidado, não deve
aproveitar-se do contato para exagerar no luxo bibliográfico. Isso criaria, entre seus pares, a suspeita de
tratar-se de um erudito, palavra que
equivale a "pessoa sem inspiração".
De todo modo, quaisquer que sejam os cuidados suplementares, a janela para fora dos trópicos é imprescindível. Daí a genialidade do anônimo inventor do que se chama bolsa-sanduíche. É verdade que serve apenas aos doutorandos. Mas, sem ela,
como os doutorandos que tenham
escolhido um tema não brasileiro
poderiam lhe dar profundidade?
A bolsa-sanduíche lhes permite
passar alguns tantos meses em uma
instituição acadêmica (norte-americana ou européia) com livre acesso a
livros e revistas especializadas. Embora isso tenha certos pré-requisitos, em princípio o mecanismo funciona bastante bem. Se o nosso bolsista for esperto, aproveitará a oportunidade para criar uma base lá fora
ou, mais pragmaticamente, um sistema de trocas -"tu me convidas e
eu te convido"- que lhe permitirá
voltar a lugares em que os livros não
são raridades. Retornará então ao
Brasil com os olhos assentes na troca
futura. Pois isso de globalização deve
funcionar para os que mexem com
coisa mais volátil.
Sem exílio
Como no mundo dos homens há
sempre os retardados, só agora entendo o que se passou comigo há 20
anos. Cansado da ditadura, me candidatara a um posto em universidade norte-americana. Como era uma
posição que, depois de alguns anos,
podia se tornar permanente ("tenure-track"), ao chegar o momento de
pedi-lo, preferi não o fazer. Depois
de dois anos e tantos meses, decidi
não passar o resto da vida como imigrante. Ademais, a ditadura desmoronava.
Só agora entendo a reação dos colegas de então. Durante dias, tive de
explicar que minha recusa não tinha
a ver com alguma ofensa; que era
uma decisão pessoal etc. Simplesmente não se convenciam que alguém, por espontânea vontade, resolvesse voltar a uma universidade
brasileira.
Agora devo concluir que meus ex-colegas compreendiam melhor do
que eu mesmo o que me esperava:
terminada a ditadura, já tivemos governos de centro, de centro(?)-direita, de centro-esquerda(?), e a situação das bibliotecas e o exercício de
atividade intelectual permanecem
inalteráveis. Houve, por certo, alguma mudança, mas por conta do desenvolvimento da eletrônica: as livrarias virtuais tornaram mais fácil o
acesso a obras que nos faltam, e as
bibliotecas virtuais oferecem um socorro que se desconhecia.
Mas a ressalva tem claros limites.
Dada a estreiteza de nossos bolsos,
não podemos encomendar às livrarias virtuais senão parca e modestamente. As bibliotecas virtuais são
bastante úteis, mas, exceto para as
profissões técnicas mais bem amparadas, quase se limitam aos clássicos.
As soluções não seriam complicadas, se não fôssemos, como dizia a
autoridade, mais do que uma ínfima
parcela do eleitorado.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemoinho
do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções"
(Edusp), entre outros.
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