São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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Precariedade das bibliotecas brasileiras é determinante na fraca produção intelectual do país, em que especialistas, desprovidos de livros, são obrigados a escrever cada vez menos ou a diluir suas idéias

A ficção acadêmica

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Se este texto houvesse sido escrito há alguns meses, teria provavelmente um caráter reivindicatório. Remeteria às várias matérias publicadas nos últimos anos por jornais de São Paulo e do Rio sobre as condições em que se encontram as bibliotecas universitárias. Não precisaria citá-las para dizer o que ressaltavam: tetos desabando, paredes infiltradas, coleções encaixotadas, livros umedecidos, estragados, desaparecidos. Provavelmente acrescentaria advertência publicada, em 3 de outubro de 2004, neste caderno: "Os acervos das bibliotecas de duas das maiores instituições universitárias do país, a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, dispõem de parte dos 50 livros indicados pelos dez especialistas ouvidos pelo Mais!".
Alguém saberá se isso teve algum efeito? Como se fizesse parte dos estigmas nacionais, as bibliotecas das maiores capitais do país -e não falo das outras porque não devo prejulgá-las- permanecem em estado precário, cada vez mais desfalcadas. A descrição que Borges fizera -"O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um numero indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais (...)"- antes nos parece parte de suas "ficciones".
É evidente que a "ficção" da biblioteca brasileira não é de hoje. (Em "Sob o Peso das Sombras" [Planeta], romance de Francisco Dantas, encontro uma variante que desconhecia: famílias que obrigam seus velhos parentes a se desfazerem das bibliotecas que tinham amealhado).
Desde que me entendo, sei que aqueles que precisam de livros, no Brasil, precisam tê-los em suas casas. Partindo da premissa de que serão professores, e não empresários, como os terão? Por suposto, hão de ter herdado alguma casa ou apartamento espaçoso, para que caibam estantes bastantes e ainda haja lugar para outras.
Mas as heranças não costumam ser recebidas pelo tipo dos que vêem os livros como matéria de primeira necessidade. Na falta de herança, tenho de presumir que os que deles precisam dispõem de bons salários. E, como desde o século 19, os especialistas em matérias contidas em livros são sobretudo professores, devo imaginar que, para o funcionamento de nosso sistema intelectual, os professores sejam bem pagos. Ora, alguém que cogite disso seria digno não de Borges, mas de uma fantasia de Walt Disney.
Lembro-me, a respeito, do que ouvi há alguns anos. Durante uma de nossas intermináveis greves universitárias, um grupo de professores conseguiu ser recebido pela máxima autoridade competente. Depois de ouvir os argumentos dos grevistas, o ilustre "representante do povo" teria respondido: "A quantos por cento do eleitorado os senhores correspondem?".
A resposta era irretocavelmente "democrática": as reivindicações não podiam ser levadas a sério pois os grevistas representavam um número ínfimo da população. Mas, sem entrada de caixa -e sequer se imagina algum "caixa dois"-, como os especialistas podem exercer sua função? Toda espécie de perversão torna-se viável. A mais espantosa: quanto mais amadurece, tanto menos escreve nosso especialista.
As outras fazem parte da comitiva: reescreve o que fizera e, como o número de leitores é pequeno e sua capacidade de saturação facilmente atingida, nosso especialista tende a diluir o que, em princípio, já nascera diluído; ou, empunhe ou não uma bandeira nacionalista, restringe-se a tratar de bibliografias existentes em português, quando não referentes a temas de sua cidade.
Mesmo assim, a solução não está alcançada: como saberá ele o que está publicado sobre certo tema ou autor, se, além das bibliotecas carentes, não dispõe de publicações que registrem, sistematicamente, o que se tem editado? E como saberá se um determinado livro merece ser comprado? Inevitavelmente, há de se guiar pelo renome do autor, o que, dadas as dificuldades de informação, suporá a passagem de muitos anos. Em suma, ou o nosso especialista "entra na real" e reconhece que não tem condições de acompanhar a bibliografia ou já existente ou que se acumula sobre seu objeto, ou procura uma janela para o estrangeiro "civilizado".

O mundo de fora
Manter contato com o mundo de fora torna-se uma questão de sobrevivência. A perda de um desses contatos será quase igual a um desastre amoroso. Mas, cuidado, não deve aproveitar-se do contato para exagerar no luxo bibliográfico. Isso criaria, entre seus pares, a suspeita de tratar-se de um erudito, palavra que equivale a "pessoa sem inspiração".
De todo modo, quaisquer que sejam os cuidados suplementares, a janela para fora dos trópicos é imprescindível. Daí a genialidade do anônimo inventor do que se chama bolsa-sanduíche. É verdade que serve apenas aos doutorandos. Mas, sem ela, como os doutorandos que tenham escolhido um tema não brasileiro poderiam lhe dar profundidade?
A bolsa-sanduíche lhes permite passar alguns tantos meses em uma instituição acadêmica (norte-americana ou européia) com livre acesso a livros e revistas especializadas. Embora isso tenha certos pré-requisitos, em princípio o mecanismo funciona bastante bem. Se o nosso bolsista for esperto, aproveitará a oportunidade para criar uma base lá fora ou, mais pragmaticamente, um sistema de trocas -"tu me convidas e eu te convido"- que lhe permitirá voltar a lugares em que os livros não são raridades. Retornará então ao Brasil com os olhos assentes na troca futura. Pois isso de globalização deve funcionar para os que mexem com coisa mais volátil.

Sem exílio
Como no mundo dos homens há sempre os retardados, só agora entendo o que se passou comigo há 20 anos. Cansado da ditadura, me candidatara a um posto em universidade norte-americana. Como era uma posição que, depois de alguns anos, podia se tornar permanente ("tenure-track"), ao chegar o momento de pedi-lo, preferi não o fazer. Depois de dois anos e tantos meses, decidi não passar o resto da vida como imigrante. Ademais, a ditadura desmoronava.
Só agora entendo a reação dos colegas de então. Durante dias, tive de explicar que minha recusa não tinha a ver com alguma ofensa; que era uma decisão pessoal etc. Simplesmente não se convenciam que alguém, por espontânea vontade, resolvesse voltar a uma universidade brasileira.
Agora devo concluir que meus ex-colegas compreendiam melhor do que eu mesmo o que me esperava: terminada a ditadura, já tivemos governos de centro, de centro(?)-direita, de centro-esquerda(?), e a situação das bibliotecas e o exercício de atividade intelectual permanecem inalteráveis. Houve, por certo, alguma mudança, mas por conta do desenvolvimento da eletrônica: as livrarias virtuais tornaram mais fácil o acesso a obras que nos faltam, e as bibliotecas virtuais oferecem um socorro que se desconhecia.
Mas a ressalva tem claros limites. Dada a estreiteza de nossos bolsos, não podemos encomendar às livrarias virtuais senão parca e modestamente. As bibliotecas virtuais são bastante úteis, mas, exceto para as profissões técnicas mais bem amparadas, quase se limitam aos clássicos. As soluções não seriam complicadas, se não fôssemos, como dizia a autoridade, mais do que uma ínfima parcela do eleitorado.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemoinho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp), entre outros.


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