São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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UM DIA IREMOS DESAPARECER

DIRETOR TEATRAL VÊ EM NOVA ORLEANS UMA EXCEÇÃO DENTRO DOS EUA COMPARÁVEL A NOVA YORK, E NA MÚSICA LOCAL, SEU PRÓPRIO CANTO FÚNEBRE PROFÉTICO

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eu geralmente me incomodo quando vejo algum dramaturgo usando uma tragédia natural ou uma guerra, por exemplo, para traçar metáforas com o mundo fantasioso e lúdico do palco ou da prosa. Mas o evento Katrina, a partir do próprio nome, e a devastação de uma cidade tão singular como Nova Orleans, me provocam arrepios tão fortes como os eventos de 11 de Setembro em Nova York ou a invasão do Iraque ou o tsunami do ano passado misturado com as fotos que via em criança de Hiroshima. Catástrofes naturais misturadas a política. A miséria humana misturada ao mais puro sadismo e aos conchavos humanos, seus piores preconceitos e fetiches mal resolvidos.
É que em Nova Orleans, assim como em Nova York, "estamos e não estamos" (assim como numa peça de Samuel Beckett ou em Shakespeare) nos Estados Unidos da América. Sim, por acaso essas duas cidades se encontram em solo norte-americano, mas talvez, se perguntada, a maioria norte-americana, digo, o povão norte-americano, repudiaria esses nichos de "alienígenas impuros" (talvez eu devesse incluir aqui San Francisco também, por seu liberalismo sexual gay). Claro, estou exagerando.


A resposta lenta do governo terá sido porque ela reflete a repugnância norte-americana por esses nichos de "outcasts"?


Não, não teremos mais uma lua sobre Bourbon Street, como cantava Sting, há vários discos atrás. A cultura "cajun" (crioula-francesa) é algo obscura para a maioria dos norte-americanos. Paupérrima para os padrões primeiro-mundistas, Nova Orleans fala um inglês que muitos norte-americanos (mesmo os sulistas) têm dificuldade de entender. Está além do "jive" ou da "slang" -"It's as cajun as a mudpie". Vá entender! É um inglês teatral. Fala-se muito com as mãos.
Com a água subindo e subindo, eu imaginei duas cenas. Tennessee Williams completamente bêbado em seu quarto de hotel se "afogando" em mágoas, literalmente (como de fato fazia), e a mais bela metáfora já criada em teatro: o prólogo que Peter Brook encenou para "A Tempestade", em Hanover, há décadas: colocou uma caravela de papelão na cabeça de um ator africano que bebia e bebia e bebia, até cair.
Não há tempestade mais bem representada e, no que diz respeito aos ex-escravos até hoje numa posição inferior (apesar da "affirmative action" e outras medidas políticas e sociais), os negros de Nova Orleans poderiam ser esses náufragos da encenação de Brook. Ele e Williams, ambos náufragos no teatro, mas secos e bem nutridos. Vamos deixá-los pra lá.
Katrina não poderia ser personagem de Beckett, pois Beckett não é devastador, apesar de suas peças destruírem, rasgarem a alma do ser humano com a falta de palavras ou perspectivas. Talvez fosse uma personagem feminina: aquela menina do Paul Auster que procura, na terra esquecida e perdida, um ente querido que não encontra. Sim, voltamos ao mestre irlandês em "The Lost Ones", uma prosa Beckettiana cheia de nichos; artifício que Auster plagiou, ou meramente pegou emprestado em que seres vagam à procura de outros seres.
No dia em que escrevo, seres em Nova Orleans, seres quase submersos ainda buscam seus entes perdidos, e o número de mortos está anunciado pelo prefeito na casa da dezena de milhar. É realmente difícil para qualquer artista ficar imune -ou impune- a essas imagens. Elas se ramificam porque, em questão de um dia, o homem virou bicho, o ser humano virou lixo e as etnias foram comprimidas a um só sólido bloco de lama e fezes naquele solo onde se berra e canta "God Bless America" mais vezes por dia do que se vai ao banheiro.

Canto fúnebre
Mesmo assim essas interpretações literárias ou dramáticas de eventos catastróficos me incomodam. Estou diante de uma fogueira de vaidades, e os fatos não mentem e... Ver pela televisão corpos inchados boiando, ou gente há uma semana nos telhados sufocadas pelo próprio ar, ou de dor e de peste, confrontadas com o cheiro da finitude, assim como se estivéssemos em plena Idade Média, num total Terceiro Mundo, é imensamente desconcertante. Mas me pergunto se nos sentiríamos assim se isso não estivesse acontecendo nos Estados Unidos e, principalmente, na terra que nos deu o jazz.
A identificação com a cultura brasileira se dá por aí. É como se a população que criou o jazz e o Mardi Gras e se apropriou do vodu já estivesse predestinada, já soubesse que em seu futuro algo nesse estilo fosse acontecer. "Um dia iremos desaparecer", diz Caliban em "A Tempestade", de Shakespeare (ou será Trinculo?), numa ilha dominada por Próspero e pela bruxa Sycorax. "Um dia iremos desaparecer e portanto vamos criar a música do lamento, do jazz ao blues, e vamos desfilar nossas fantasias ao som de trompetes bem altos pra que todos nos ouçam, nós, os NEGROS MISERÁVEIS do SUL!, com uma batida lenta dos tambores, assim como se faz num FUNERAL!!!"
Pensamento intuitivo e lógico! Mais lógico do que qualquer ciência pudesse prever. A resposta lenta do governo terá sido porque ela reflete a repugnância norte-americana por esses nichos de "outcasts"? A falta de manutenção dos diques terá sido por quê? Porque, mais cedo ou mais tarde, cidades como Nova Orleans já renderam o que tinham que render (ou seja, grande parte de seus jovens está lutando no Iraque, ou melhor, já morreu lá) e sua música se esgotou? Nova Orleans estava mesmo se tornando um "problema criminal", assim como o Rio de Janeiro, com assaltos a turistas etc.? É, não há mesmo jeito de escapar de um paralelo dramatúrgico. Mas ainda não sei bem qual, já que ainda não há desfecho. Estamos em pleno primeiro ato.
Katrina foi uma mulher maldosa ou um espírito "voduísta" maldito que retornou para castigar a região do rio Mississippi. E como a desgraça ainda está em progresso e não se sabe aonde vai dar, não se pode compará-la a nada, absolutamente nada. Katrina é somente um espírito. Não se compara mesmo ao tsunami que arrastou Sri Lanka, Tailândia e Indonésia no ano passado para o buraco mais fundo da humanidade. Aqui estamos vivendo e presenciando um drama que ainda não terminou, sendo que o Presidente da República está, como sempre esteve, omisso, ausente, atrasado em seu estado de quase onipresença.
Acho que daqui a um ano poderemos fazer alguma coisa disso tudo. Minto. Hoje completamos quatro anos desde os ataques que derrubaram o World Trade Center, evento que vi da minha janela em Williamsburg, Brooklyn. Até hoje não sei o que fazer daquilo ou com aquilo. O mundo mudou de tal forma que o pensador ou o criador está com o mosaico destruído ainda.
A iconoclastia e o desconstrutivismo do século 20 não deixou pedra sobre pedra. E, sem esses pilares -coisa de "fin-de-siècle"-, temos a autópsia da autópsia da autópsia de tudo. Estilhaços por todos os lados. Já declarei minha guerra contra esse tsunami cultural chamado "desconstrutivismo": CHEGA! Quando nos colocarmos moralmente de pé -e bota uns bons dez anos nisso-, quem sabe olharemos para Nova Orleans com melancolia e colocaremos no iPod alguma coisa que lembre o jazz com alguma nostalgia, muita vergonha, e certamente muita raiva e tristeza.

Gerald Thomas é diretor teatral.


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