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A LITERATURA E A FÚRIA
O ESCRITOR MILTON HATOUM FALA SOBRE WILLIAM FAULKNER E OS PARALELOS
ENTRE SUA OBRA "PALMEIRAS SELVAGENS" E A CATÁSTROFE ATUAL
DA REDAÇÃO
Em 1927, uma violenta enchente no rio Mississippi devastou áreas em sete Estados
do Sul norte-americano. Cerca de 1 milhão de pessoas ficaram
desabrigadas; ao menos 246 morreram. Os prejuízos foram avaliados
entre US$ 2 bilhões e US$ 7,8 bilhões, em valores atuais. Foi a maior
tragédia provocada pelas águas nos
Estados Unidos -até a devastação
ocorrida neste mês na região de Nova Orleans.
A enchente de 1927 mudou o país,
segundo o historiador John M.
Barry, autor de "Rising Tide -The
Great Mississippi Flood of 1927 and
How It Changed America" [Subida
da Maré - A Grande Enchente do
Mississippi de 1927 e Como Ela Mudou a América]. Evidenciou a pobreza, os conflitos sociais e raciais no
Sul, provocou uma imigração negra
para o Norte, desarranjou a política,
levou as lideranças negras sulistas a
tirar o seu apoio ao Partido Republicano e a adotar o Democrata de
Franklin D. Roosevelt, que seria eleito presidente em 1933 (até 1945).
A enchente também marcou o folclore sulista e a música negra. Foi na
literatura, porém, que a tragédia deixou sua marca mais notável. Precisamente em "Palmeiras Selvagens"
(1939, Cosacnaify), de William
Faulkner (1897-1962), um dos maiores romances do século 20.
Faulkner combinou
a violência com a
fúria da natureza, como se dissesse que o drama humano é tão violento quanto ela
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Na entrevista a seguir, o escritor
Milton Hatoum, admirador dedicado de Faulkner, fala sobre "Palmeiras Selvagens" e o significado da enchente do livro.
"Quem ler o romance verá cenas
desta enchente de agora. As coincidências são enormes. As cidades devastadas, os corpos boiando na
água... Os relatos dos jornais e das
TVs não têm o impacto da descrição
de Faulkner", diz o amazonense Hatoum, por telefone, de Manaus. Ele
acaba de lançar um novo romance,
"Cinzas do Norte" (Cia. das Letras).
A fascinação de Hatoum por
Faulkner o levou, há dez anos, durante estadia na Universidade de Iowa, a visitar o Sul dos EUA, Nova Orleans e a navegar no Mississippi, em
cuja história ele encontra paralelos
com a do Amazonas que atravessa a
sua terra natal.
Folha - Qual a importância da enchente em "Palmeiras Selvagens" e
que semelhanças ela guarda com a
tragédia atual?
Milton Hatoum - A enchente é parte
de um dos dois relatos do livro. Há o
relato "Palmeiras Selvagens", que dá
nome ao romance. E o outro é "O
Velho", que aborda a enchente, e cujo nome se refere ao Mississippi, conhecido também pelo apelido de
"Old River". São histórias bastante
diferentes, separadas por onze anos.
"O Velho" se passa em 1927, quando
ocorreu a grande enchente do Mississippi. O relato "Palmeiras Selvagens" passa-se em 1938.
Faulkner trabalhou as duas narrativas como um contraponto. Ele
avançava numa história e, quando
sentia que estava esmorecendo num
relato, passava para o outro, para se
revigorar. Há, porém, pontos de
convergência importante entre elas.
No relato "O Velho", Faulkner
narra o destino de um prisioneiro,
que é levado com outros mais de
uma colônia penal para a região encharcada, a fim de ajudar no salvamento.
Ao mesmo tempo em que o Mississippi é destruidor, por causa de
um rompimento de um dique
-aliás, a mesma causa da enchente
atual-, os prisioneiros são soltos
para resgatarem as vítimas da enchente. O protagonista se perde, encontra uma mulher grávida, que dará a luz dentro de um bote em meio
àquela enchente. A natureza destrói,
mas também gera a vida humana.
Quem ler o romance verá cenas
desta enchente de agora. As coincidências são enormes. As cidades devastadas, os corpos boiando... Os relatos dos jornais e das TVs não têm o
impacto da descrição de Faulkner,
pois ele une a grande enchente a um
forte drama individual.
Folha - Por que Faulkner resolveu
ambientar a história na enchente?
Hatoum - Porque ele faz um contraponto entre a fúria da natureza,
em seu estado mais primitivo, violento e misterioso, e a tragédia humana. Mas as coincidências e a atualidade do livro vão além do sentido
da catástrofe. Pois o romance revela
esta população do Sul, negra, pobre,
a mais pobre dos EUA. Quem são os
condenados? São os negros. Quem
são os trabalhadores das grandes
plantações de tabaco e algodão devastadas? Quem são pessoas em cima das árvores? Quem são os mortos? São, na maioria, os negros.
Folha - Qual a importância do Mississippi para a literatura norte-americana?
Hatoum - O Mississippi em si é um
mito nos EUA. É um rio grandioso,
que entra em vários Estados, que banha praticamente todo o Sul do país.
Do ponto de vista da economia escravista, foi fundamental, como o
Amazonas também foi, durante o ciclo da borracha. Inclusive, alguns
barcos a vapor do Mississippi navegaram no Amazonas. Os mais velhos
foram vendidos como sucata e navegaram por aqui, e também na Colômbia. García Márquez conta destes barcos a vapor que navegavam
no rio Madalena.
O Mississippi foi importantíssimo
para o escoamento do algodão, do
tabaco, e foi importante ainda para a
literatura, como na obra de Mark
Twain.
Mas tem outro aspecto da vida sulista, que comparece na literatura de
Faulkner e permanece um tema relevante e atual. É a religião, o fanatismo religioso, que também está presente em "Palmeiras Selvagens". É
este extremismo religioso que ajudou a eleger Bush. Até hoje, em Estados do Sul, no Texas, há farmácias
que não vendem pílulas anticoncepcionais.
Os EUA são um país que gasta bilhões no Iraque, mas que não consegue resolver problemas internos.
Faulkner colocou no centro da sua
literatura a violência, o racismo e o
fanatismo religioso. E combinou isso com a fúria da natureza, como se
ele dissesse que não é somente a natureza que é devastadora: o drama
humano é tão violento quanto ela.
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