São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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A LITERATURA E A FÚRIA

O ESCRITOR MILTON HATOUM FALA SOBRE WILLIAM FAULKNER E OS PARALELOS ENTRE SUA OBRA "PALMEIRAS SELVAGENS" E A CATÁSTROFE ATUAL

DA REDAÇÃO

Em 1927, uma violenta enchente no rio Mississippi devastou áreas em sete Estados do Sul norte-americano. Cerca de 1 milhão de pessoas ficaram desabrigadas; ao menos 246 morreram. Os prejuízos foram avaliados entre US$ 2 bilhões e US$ 7,8 bilhões, em valores atuais. Foi a maior tragédia provocada pelas águas nos Estados Unidos -até a devastação ocorrida neste mês na região de Nova Orleans.
A enchente de 1927 mudou o país, segundo o historiador John M. Barry, autor de "Rising Tide -The Great Mississippi Flood of 1927 and How It Changed America" [Subida da Maré - A Grande Enchente do Mississippi de 1927 e Como Ela Mudou a América]. Evidenciou a pobreza, os conflitos sociais e raciais no Sul, provocou uma imigração negra para o Norte, desarranjou a política, levou as lideranças negras sulistas a tirar o seu apoio ao Partido Republicano e a adotar o Democrata de Franklin D. Roosevelt, que seria eleito presidente em 1933 (até 1945).
A enchente também marcou o folclore sulista e a música negra. Foi na literatura, porém, que a tragédia deixou sua marca mais notável. Precisamente em "Palmeiras Selvagens" (1939, Cosacnaify), de William Faulkner (1897-1962), um dos maiores romances do século 20.


Faulkner combinou a violência com a fúria da natureza, como se dissesse que o drama humano é tão violento quanto ela


Na entrevista a seguir, o escritor Milton Hatoum, admirador dedicado de Faulkner, fala sobre "Palmeiras Selvagens" e o significado da enchente do livro.
"Quem ler o romance verá cenas desta enchente de agora. As coincidências são enormes. As cidades devastadas, os corpos boiando na água... Os relatos dos jornais e das TVs não têm o impacto da descrição de Faulkner", diz o amazonense Hatoum, por telefone, de Manaus. Ele acaba de lançar um novo romance, "Cinzas do Norte" (Cia. das Letras).
A fascinação de Hatoum por Faulkner o levou, há dez anos, durante estadia na Universidade de Iowa, a visitar o Sul dos EUA, Nova Orleans e a navegar no Mississippi, em cuja história ele encontra paralelos com a do Amazonas que atravessa a sua terra natal.
 

Folha - Qual a importância da enchente em "Palmeiras Selvagens" e que semelhanças ela guarda com a tragédia atual?
Milton Hatoum -
A enchente é parte de um dos dois relatos do livro. Há o relato "Palmeiras Selvagens", que dá nome ao romance. E o outro é "O Velho", que aborda a enchente, e cujo nome se refere ao Mississippi, conhecido também pelo apelido de "Old River". São histórias bastante diferentes, separadas por onze anos. "O Velho" se passa em 1927, quando ocorreu a grande enchente do Mississippi. O relato "Palmeiras Selvagens" passa-se em 1938.
Faulkner trabalhou as duas narrativas como um contraponto. Ele avançava numa história e, quando sentia que estava esmorecendo num relato, passava para o outro, para se revigorar. Há, porém, pontos de convergência importante entre elas.
No relato "O Velho", Faulkner narra o destino de um prisioneiro, que é levado com outros mais de uma colônia penal para a região encharcada, a fim de ajudar no salvamento.
Ao mesmo tempo em que o Mississippi é destruidor, por causa de um rompimento de um dique -aliás, a mesma causa da enchente atual-, os prisioneiros são soltos para resgatarem as vítimas da enchente. O protagonista se perde, encontra uma mulher grávida, que dará a luz dentro de um bote em meio àquela enchente. A natureza destrói, mas também gera a vida humana.
Quem ler o romance verá cenas desta enchente de agora. As coincidências são enormes. As cidades devastadas, os corpos boiando... Os relatos dos jornais e das TVs não têm o impacto da descrição de Faulkner, pois ele une a grande enchente a um forte drama individual.

Folha - Por que Faulkner resolveu ambientar a história na enchente?
Hatoum -
Porque ele faz um contraponto entre a fúria da natureza, em seu estado mais primitivo, violento e misterioso, e a tragédia humana. Mas as coincidências e a atualidade do livro vão além do sentido da catástrofe. Pois o romance revela esta população do Sul, negra, pobre, a mais pobre dos EUA. Quem são os condenados? São os negros. Quem são os trabalhadores das grandes plantações de tabaco e algodão devastadas? Quem são pessoas em cima das árvores? Quem são os mortos? São, na maioria, os negros.

Folha - Qual a importância do Mississippi para a literatura norte-americana?
Hatoum -
O Mississippi em si é um mito nos EUA. É um rio grandioso, que entra em vários Estados, que banha praticamente todo o Sul do país. Do ponto de vista da economia escravista, foi fundamental, como o Amazonas também foi, durante o ciclo da borracha. Inclusive, alguns barcos a vapor do Mississippi navegaram no Amazonas. Os mais velhos foram vendidos como sucata e navegaram por aqui, e também na Colômbia. García Márquez conta destes barcos a vapor que navegavam no rio Madalena.
O Mississippi foi importantíssimo para o escoamento do algodão, do tabaco, e foi importante ainda para a literatura, como na obra de Mark Twain.
Mas tem outro aspecto da vida sulista, que comparece na literatura de Faulkner e permanece um tema relevante e atual. É a religião, o fanatismo religioso, que também está presente em "Palmeiras Selvagens". É este extremismo religioso que ajudou a eleger Bush. Até hoje, em Estados do Sul, no Texas, há farmácias que não vendem pílulas anticoncepcionais.
Os EUA são um país que gasta bilhões no Iraque, mas que não consegue resolver problemas internos. Faulkner colocou no centro da sua literatura a violência, o racismo e o fanatismo religioso. E combinou isso com a fúria da natureza, como se ele dissesse que não é somente a natureza que é devastadora: o drama humano é tão violento quanto ela.


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