São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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Anotações de Brecht durante a 2ª Guerra revelam o limite que encontrou nos EUA para sua obra, o marxismo e a possibilidade de mudança

O exílio total

Bruno de Cock - 03.out.2002/Reuters
Carro feito de pedaços de metal por refugiado angolano, parte de exposição organizada pelos Médicos Sem Fronteiras


JOSÉ ANTONIO PASTA JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

O "Diário de Trabalho" de Bertolt Brecht [1898-1956] talvez ainda seja o melhor comentário de sua obra. Trata-se de um amplo conjunto de anotações que vão de 1938 a 1955 -um ano antes de sua morte, portanto- e que se publicou postumamente. O título, dado pelo próprio Brecht, pode fazer pensar em notas de caráter exclusivamente técnico, referentes à produção da obra e suas questões internas. Anotações dessa ordem lá se encontram, de fato, em grande número, e dão testemunho do rigor formal e da exigência teórica, limpos de preciosismo, que se impunha o escritor alemão. Elas formam o fio vermelho do "Diário de Trabalho" e lhe justificam o título.
A esse fio, entretanto, muitos outros se entretecem e fazem contraste: as anotações de ordem pessoal e privada são poucas, secas, mas lancinantes e pontuam de modo incisivo o conjunto; reflexões sobre a atualidade acompanham-se de recortes de textos e fotos da imprensa; cada encontro -Benjamin, Adorno, Marcuse, Mann, Chaplin, Schönberg...- é relatado e posto em perspectiva; a marcha da guerra, as situações vividas, as múltiplas leituras se refletem umas nas outras, e tudo isso, em conjunto, forma uma espécie de todo que é maior que a soma de suas partes.


As anotações nas quais Brecht fala diretamente da feição californiana do "american way of life" manifestam uma aversão tão completa e uma irritação tão constante que chegam às raias do humor


De fato, o sentimento que se tem diante do conjunto é de que o "Diário de Trabalho" constitui um mundo completo em si mesmo. Ele não aspira ao estatuto estético nem se substitui à realidade, mas lê-lo não deixa dúvida de que, nele, Brecht se construiu um mundo, mais que isso, que o habitou. Essa espécie de totalidade polemicamente integrada e habitada por uma presença viva, quase tangível, ultrapassa, sem anulá-lo, o documento, e responde em boa parte pela força literária do livro.
Para dizê-lo com a brevidade que preferia o autor: durante os anos de exílio, que foram longos, Brecht habitou a sua obra. Como se sabe, tendo fugido da Alemanha em 1933, ele passa sucessivamente por Dinamarca, Suécia, Finlândia, União Soviética, de onde, finalmente, em 1941, emigrará para os Estados Unidos, de onde só retornará em 1947, com um estágio na Suíça, antes de ganhar novamente Berlim. "Trocando mais de país do que de sapatos", como diz em um texto famoso, ele aprenderá a pensar sua obra como um conjunto integrado, dotado "de uma história (interna) capaz de soar em harmonia ou em contraste com a história externa" -ou seja, nos seus próprios termos, aprenderá a pensá-la "como um "domesticum'" (9/8/ 1943). No conjunto da obra em progresso, "O Diário de Trabalho" será o grande operador dessa forma de totalização.
O possível ganho integrativo, entretanto, não deve ocultar que se trata, aí, antes de tudo, da reação a uma perda irreparável e de uma tentativa de sobrevivência em situações que beiram os extremos. Como se sabe, o Brecht do começo dos anos 30, na Alemanha, tirava sua força da imediatidade com que se transfundia nas lutas sociais, transformando sua atuação em "experimentos sociológicos" nos quais, pela via do escândalo "organizado", agia teatralmente e de modo direto na esfera pública, apagando as fronteiras entre vida e arte. Perdida essa imediatidade, o Brecht do exílio deve agora aprender a mediação.
A elaboração da distância talvez seja o trabalho por excelência de que trata o "Diário de Trabalho". Por isso, nele, ao mesmo tempo em que a prática literária ganha um valor extraordinário, ela se torna alvo da máxima ironia. Em 1940, no exílio da Finlândia, ele anotará: "Seria incrivelmente difícil descrever meu estado de espírito quando, depois de ter seguido a batalha da Inglaterra pelo rádio e pela medíocre imprensa fino-sueca, eu escrevo "Puntila" ["O Senhor Puntila e seu Criado Matti"]. Este fenômeno moral explica igualmente que tais guerras possam existir e que o trabalho literário possa continuar. "Puntila" não me concerne em quase nada, a guerra em tudo; posso escrever quase tudo sobre Puntila, nada sobre a guerra. Não penso apenas no "direito" de escrever, penso realmente também na "capacidade" de escrever. É interessante ver como a literatura está relegada, enquanto práxis, a uma tal distância do centro dos acontecimentos, de que tudo depende".

O recado dos EUA
A grande prova, no entanto, ainda estava por vir, e ela seria o exílio final nos EUA, de 1941 a 1947, período de que trata este volume 2 do "Diário de Trabalho". Brecht experimentará então uma espécie de exílio do exílio. Se o exílio na Europa encontrava na guerra uma espécie de explicação auto-evidente, a chegada aos Estados Unidos -que ainda estavam fora da guerra- fará Brecht defrontar "aquelas forças que fazem mesmo da paz uma guerra, as inomináveis", como pouco antes ele escrevera a propósito de "Mãe Coragem".
A agressão que, na Europa, ainda se ritmava pelos grandes golpes dos avanços nazistas, torna-se, nos Estados Unidos, contínua, micrológica, cotidiana. Seu agente, Brecht logo irá anotá-lo, é a onipresença da mercadoria, o caráter universal e incontrastado de sua lógica. Em uma de suas primeiras notas do período já se lê: "Em quase nenhuma outra parte minha vida foi mais difícil do que aqui neste mausoléu do "easy-going'" (1/8/ 1941).
As anotações desse período, nas quais Brecht fala diretamente dos Estados Unidos e, em particular, da feição californiana do "american way of life", manifestam uma aversão tão completa e uma irritação tão constante que chegam às raias do humor, tanto voluntário quanto involuntário. Tudo nesse modo de vida tem o condão de provocar-lhe a crítica, que ele não faz sem uma ponta de auto-ironia: "Realmente são nômades, trocam de profissão como quem troca de sapatos, constroem casas para durar 20 anos e nem ficam nelas tanto tempo, de modo que o lar não é nenhuma localidade específica. Não é sem razão que a "grande bagunça" cresceu aqui com tanta exuberância" (4/10/1941). Ou ainda: "Aqui, a atitude para com o dinheiro denuncia o capitalismo colonial. Tem-se a impressão de que todo mundo está onde está porque está de partida. Só se está nos Estados Unidos para ganhar dinheiro (...). Nas colônias, ninguém mora" (22/10/1941). Note-se que as mesmas imagens de troca de sapatos e da impossibilidade de morar, antes utilizados para figurar, na Europa, as experiências do exílio e da guerra, referem-se agora, nos EUA, à "normalidade" cotidiana.
O mais duro recado, porém, que a experiência norte-americana dará ao trabalho de Brecht talvez seja a que se registra em uma nota de 1942: "A oportunidade especial que o marxismo teve na Europa não existe aqui. O sensacional desnudamento das práticas comerciais nos países burgueses indica que o marxismo surgiu como um iluminismo, efeito que não é possível aqui. Aqui você se vê diante de um Estado instituído diretamente pela burguesia, que em nenhum momento se envergonha de ser burguesa (...)".
Salvo engano, o que Brecht registra aqui, com lucidez vertiginosa, é o limite objetivo que uma completa universalização da forma-mercadoria põe à eficácia do "efeito de distanciamento", mola fundamental de seu trabalho. Não tardaria muito para que esse limite estivesse em toda parte. Ainda uma vez, embora o recado venha do coração do império, será o "capitalismo colonial" que devolverá à Europa a imagem do seu futuro.

José Antonio Pasta Jr. é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Trabalho de Brecht" (ed. Ática).

Diário de Trabalho vol. 2 - 1941-1947
346 págs., R$ 44 de Bertolt Brecht. Tradução de Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Ed. Rocco (rua Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2584-3536).



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