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Os novos dependentes
Confusão entre os conceitos de depressão e melancolia pode tornar o indivíduo "escravo" do mercado farmacêutico
JOEL BIRMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
O questionamento
da formulação da
psiquiatria biológica, no que se refere à depressão,
começa a se realizar no campo
das neurociências.
Eu diria que esse questionamento chegou tarde, pois aquela se difundiu no espaço social
como uma evidência insofismável, fazendo crer à população que a condição depressiva
seria não apenas uma anomalia
como também uma patologia
psíquica, decorrente da desregulação dos neuro-hormônios
no sistema nervoso central.
Assim, a depressão seria o
signo infalível de uma enfermidade nervosa, a ser devidamente submetida à intervenção psicofarmacológica.
Em decorrência disso, a
prescrição de antidepressivos
se realizou em escala global,
como uma nova panaceia para
possibilitar a felicidade ampla,
geral e irrestrita de todos os desesperados do planeta.
Quanto ao Brasil, o discurso
psiquiátrico retomou midiaticamente o enunciado pertinente de Caetano Veloso -de
que de perto ninguém é normal- para propor a otimização
de antidepressivos para todos,
pois a tristeza poderia se camuflar de maneira incipiente nas
pequenas dobras do espírito e
ser, assim, preventivamente
debelada em estado nascente.
Foi nesse mesmo comprimento de onda discursiva que a
Organização Mundial de Saúde
(OMS) diagnosticou o aumento da incidência da depressão
no mundo inteiro e fez ainda o
prognóstico preocupante de
que essa será uma das enfermidades mais frequentes no futuro próximo.
Sociedade performática
Fala-se menos, nessas afirmações peremptórias e supostamente científicas, sobre os
interesses da indústria farmacêutica que estão aqui envolvidos, à medida que foi na conjunção íntima com essa indústria que o discurso psiquiátrico
passou a propor uma leitura
neurocientífica da depressão e
de outros males do espírito.
O que se pretende com isso é
transformar esses males em
doenças nervosas, enfim, de
forma que a singularidade do
desejo e da dor humanos seja
reduzida à condição biológica
do sujeito neuronal.
Ao lado disso, é preciso evocar ainda que a disseminação
na prescrição de antidepressivos e de outros psicofármacos
se inscreve num projeto sociopolítico mais amplo, em que o
incremento da performance
das individualidades é a única
coisa que interessa aos imperativos da sociedade moderna
avançada (Guy Debord).
Nessa perspectiva, as oscilações do humor, a angústia e as
demais formas de sofrimento
psíquico das individualidades
perturbariam os imperativos
performáticos dos agentes sociais, devendo assim ser regulados prontamente pela alquimia psicofarmacológica.
O que o sujeito possa estar
balbuciando com tais dores
psíquicas não há nenhum interesse em saber e nenhum espaço dialógico é aberto pela psiquiatria para que aquele possa
se anunciar. A demanda de
subjetivação foi, assim, abolida
da prática psiquiátrica, em
conjugação com a suspensão
do discurso do paciente.
Como já dizia Platão nos
tempos clássicos da pólis grega,
tal modelo de prática médica,
sem linguagem, seria voltado
para os escravos, e não para os
cidadãos livres.
Portanto o que é mais inquietante nesse projeto psiquiátrico é a proposição axial
de que todos os cidadãos do
mundo pós-moderno seriam
reduzidos à condição de escravidão, pois não poderiam mais
ter acesso ao discurso e à subjetivação, nesse processo de medicalização ilimitado da dor
humana.
Desde "Luto e Melancolia"
(1917), Freud enunciou uma
leitura rigorosa da melancolia,
articulando esta com a experiência da perda, na medida em
que a perda se transforma para
o sujeito num estado de luto
patológico. Assim, se perder alguém ou algo deixa a todos tristes, isso não quer dizer que
qualquer depressão se transforme necessariamente numa
melancolia.
Pelo contrário, a tristeza incita o sujeito a um trabalho de
elaboração psíquica sobre
aquilo que foi perdido, conduzindo-o, pela fragilização em
que foi lançado, à diminuição
de sua impotência e consequentemente a seu enriquecimento simbólico.
Vale dizer, não poderia existir nem subjetivação nem simbolização sem as perdas e as
depressões correlatas.
Essa leitura de Freud se baseou num ensaio prévio de seu
discípulo Abraham, que em
1912 iniciou a investigação sistemática da psicose maníaco-depressiva, numa perspectiva
psicanalítica. Posteriormente,
o mesmo Abraham deu outros
passos decisivos na elucidação
dessa perturbação psíquica, estabelecendo em 1924 a relação
existente entre essa experiência mental e a história libidinal
do sujeito.
Diferenciação
Foi pela sua inscrição nessa
tradição teórico-clínica que
Melanie Klein (1882-1960) estabeleceu a importância crucial
no psiquismo do que denominou "posição depressiva", em
oposição à posição esquizoparanoide, para sustentar como a
posição depressiva seria fundamental para a produção simbólica e para o engendramento
dos processos de subjetivação
no psiquismo.
Nessa perspectiva, é preciso
diferenciar devida e rigorosamente as depressões -que a
existência produz necessariamente em todos nós- da melancolia, na medida em que essa evidencia impasses importantes na elaboração da experiência da perda.
Algo da ordem do narcisismo
estaria aqui em pauta.
Misturar essas diferentes
cartas do jogo psíquico, com o
nome de depressão, é nos destinar a todos à condição de escravidão no mercado da medicalização contemporânea.
O que implica, é claro, possibilitar ao sujeito a invenção de
novas ferramentas simbólicas,
para que possa forjar outras
modalidades de subjetivação.
O que não é possível é nos fazer crer que não exista experiência psíquica sem perdas e
delinear assim a existência humana como estando sempre
marcada pelo crivo do sujeito,
como se este pudesse sempre
ser performaticamente vencedor. Enfim, o que a psicanálise
pode nos oferecer, no que tange
a isso, é a possibilidade de
transformar as perdas dos indivíduos em produção simbólica
e novas formas de subjetivação.
JOEL BIRMAN é psicanalista e professor da
UFRJ e da UERJ.
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