São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Terroristas, assassinos seriais e skinheads globalizam o ímpeto ancestral para o sacrifício e destroem a crença ocidental de que a modernização irrefreável possa extinguir as manifestações retrógradas

Paranóia da autodestruição

Associated Press
Mulheres muçulmanas na Tailândia aguardam em ponto de ônibus na frente de anúncio de roupas íntimas femininas


por Hans Magnus Enzensberger

Quanto mais imediato o comentário, mais rápida é, em geral, sua desintegração. Nada contra a atualidade. Mas é justamente quando ninguém sabe como as coisas vão prosseguir que algo parece recomendar a tentativa de distanciamento. No que se refere à globalização, por exemplo: um cientista alemão chamado Karl Marx analisou esse processo com bastante profundidade já há 150 anos. Ele seguramente não teria cogitado ser "contra isso" ou "a favor daquilo"; a controvérsia que se agravou em localidades como Seattle, Gotemburgo ou Gênova ele teria visto como pouco mais que um exercício de boxe contra o vento. O protesto contra um fato histórico de alcance tão maciço pode ser digno de respeito, mas também pode, no entanto, produzir na melhor das hipóteses encenações televisivas em escala mundial. Isso mesmo já evidencia que os adversários ingênuos são eles mesmos uma parte daquilo que combatem.
O erudito alemão descreveu a globalização de seu tempo como um fenômeno meramente político-econômico. Era o ano de 1848 e não havia outra perspectiva possível, já que a ampliação do mercado mundial e a política das potências colonizadoras naquele tempo eram os impulsos decisivos. De lá para cá, porém, esse processo irreversível tomou conta de todos os sistemas. Quem só tem em vista a dinâmica econômica não o entendeu. Não há hoje nada mais que possa escapar a esse processo -nem a religião nem a ciência nem a cultura nem a tecnologia, sem falar no consumo e na mídia. Por isso seus custos recaem sobre todos os cantos e em todas as esferas.
Não só os inúmeros perdedores da economia foram atingidos. Ao mercado mundial e suas correntes financeiras e do conhecimento seguem também por todas as partes do planeta repentinos colapsos, armas, vírus de computador, epidemias inéditas, catástrofes ecológicas, guerras civis e atos criminosos.
A idéia de que uma sociedade possa se isolar contra essas consequências é equivocada. Uma dessas consequências é o terrorismo. Seria um milagre se unicamente ele tivesse deixado de operar em nível global.
Posta diante de massas de fanáticos, a era moderna por muito tempo sustentou a idéia de que teria de encarar características de sociedades retrógradas. A modernização irrefreável, acreditavam muitos, haveria de pôr fim, mais cedo ou mais tarde, a tais atavismos, ainda que não fosse possível evitar uma ou outra recaída. Pelo menos desde a ascensão de regimes totalitários no século 20, essa ilusão teve de perder seu encanto; porém, negativa no estereótipo da "Idade Média das trevas", esperançosa quando fala nos "países em desenvolvimento", ela continua viva até hoje.
Só que não se pode, de modo nenhum, remeter as energias assassinas da atualidade a nenhuma tradição de outrora. Não importa se se trata das guerras civis nos Bálcãs, na África, Ásia ou América Latina, nas ditaduras do Oriente Próximo ou dos inúmeros "movimentos" sob a bandeira do islã -em todos esses casos há que encarar não resquícios de um tempo arcaico, mas fenômenos absolutamente contemporâneos.
De modo mais específico: as formações de reação (mecanismos de defesa) em relação ao momento atual da sociedade mundial. Isso vale também para uma religião certamente respeitável como o islamismo, que, no entanto -e de modo idêntico o judaísmo ultra-ortodoxo-, há tempos não dá origem a nenhuma idéia produtiva. Sua força vem se manifestando até agora exclusivamente na negação determinada da modernidade, à qual ele justamente por isso se mantém acorrentado.
A imanência do terror, seja lá de onde provenha, mostra-se não só no comportamento dos atores, mas também na escolha de seus meios.
Nesse sentido, trata-se de cópias patológicas do adversário. A sensação de que o ataque vem de fora é ilusória, já que não existe mais um espaço externo de ações humanas e desumanas fora do contexto global. A ameaça é onipresente como a câmera, o telefone, a internet e o satélite de espionagem. Os autores do atentado de Nova York não estavam à altura de nosso tempo somente no que diz respeito à tecnologia. Inspirados pela lógica visual simbólica do Ocidente, eles encenaram o massacre como espetáculo midiático. Nisso, seguiram à risca os roteiros do filme de terror e de thrillers de ficção científica. Um entendimento tão íntimo da civilização americana não dá mostras de uma mentalidade anacrônica. Ele lança sobretudo uma luz sobre as alegadas convicções dos criminosos.
Não é por acaso que no primeiro momento se tornaram públicas dúvidas quanto à autoria do ataque. Na internet responsabilizaram-se os militantes radicais de extrema direita dos EUA, outros falaram de grupos de terroristas japoneses ou de um complô qualquer do serviço secreto sionista. Como sempre nesses casos, logo proliferaram todas as teorias conspiratórias possíveis. Nessas interpretações pode-se medir como a loucura dos autores do crime é contagiosa.

Prazer pelo declínio Elas contêm no entanto um fundo de verdade, porque mostram como as motivações são intercambiáveis. As "cartas de reivindicação", cheias de frases feitas, previamente decoradas, que aparecem após a maioria dos atentados, se assemelham em seu vazio. A imitação recíproca entre grupos bem diferentes de criminosos, no que diz respeito à sua exibição propagandística, técnica e procedimentos táticos, fala por si. Claro que a busca de motivos é do mais alto interesse para os investigadores e serviços secretos, já que pode levar a pistas dos criminosos.
Porém a análise ideológica não é capaz de dar nenhuma resposta à pergunta quanto à origem da energia psíquica que alimenta o terror. Fórmulas como esquerda e direita, nação ou seita, religião ou emancipação levam exatamente aos mesmos padrões de ação. O denominador comum é a paranóia. Mesmo no caso da carnificina de Nova York teremos de nos perguntar em que medida aquilo carrega motivos islâmicos; outra justificativa qualquer também bastaria.
Num tal campo de obscuridades não se pode ter certezas. Porém é muito difícil deixar de notar um ponto em comum em praticamente todas as ações terroristas que conhecemos. É a medida de autodestruição que os criminosos têm em vista. Isso vale não apenas para grupos conspiradores e os inúmeros "senhores da guerra", milícias e grupos paramilitares que aterrorizam grande parte da África e da América Latina, mas também para os chamados "Estados irresponsáveis", como a Coréia do Norte e o Iraque.
Tais ditaduras têm em mira menos a aniquilação de seus inimigos reais ou imaginários do que a ruína de seu próprio país. Como até hoje insuperável pioneiro nesse tipo de anseio pode-se citar Hitler, que conseguiu ter a seu favor a maioria do povo alemão.
No caso da Rússia, foram necessários 70 anos até que se alcançasse o colapso total. Também o Iraque se orgulha do próprio declínio. Naturalmente, numerosos "movimentos de libertação" perseguem objetivos semelhantes. Argélia, Afeganistão, Angola, Burundi, Camboja, Caxemira, Chade, Colômbia, Congo, El Salvador, Filipinas, Guatemala, Indonésia, Irlanda do Norte, Libéria, Nicarágua, Nigéria, País Basco, Peru, Ruanda, Serra Leoa, Sérvia, Sri Lanka, Sudão, Tchetchênia, Uganda -é um alfabeto do horror que parece não ter fim.
Essa lógica da automutilação vale também para o ataque terrorista aos EUA. Pois as consequências mais terríveis, a longo prazo, não serão sentidas pelo Ocidente, mas exatamente por aquela região do mundo em nome da qual ele foi realizado. Para milhões de muçulmanos as consequências previsíveis são catastróficas. Os islâmicos conclamam festivamente uma guerra que nunca irão vencer. Não são apenas refugiados, gente em busca de asilo e migrantes que sofrerão com essa guerra. Povos inteiros, do Afeganistão à Palestina, terão de pagar, para além de qualquer justiça, pelos atos de seus supostos representantes, um imenso preço político e econômico. A previsível retaliação poupará tão pouco os inocentes como o ataque a que ela responde.
No entanto o ímpeto coletivo para a autoflagelação, para não dizer suicídio, é mesmo uma força motriz cuja intensidade o Ocidente insiste em subestimar. Para tornar o incompreensível pelo menos um tanto mais compreensível, a reflexão sobre o próprio passado aparentemente não basta. Por isso talvez seja indicado arriscar uma comparação heurística com acontecimentos que estão próximos de nós. Um olhar sobre os "faits-divers" mostra quão irresistível é o prazer pelo próprio declínio também nas chamadas sociedades altamente desenvolvidas. Ainda que viciados em drogas e "skinheads" diminuam qualquer chance de vida com bastante objetividade, ainda que todo dia produza novas "tragédias familiares" e assassinos seriais, continua sendo uma certeza que o princípio regulador da ação humana é e continuará sendo o instinto de autopreservação. Ao que cada dia apresenta uma nova prova contrária.
O estudante psicopata narcisista avança com a faca sobre o professor e os colegas de classe. O soropositivo infecta o maior número de parceiros que pode. O homem que julga ter sido destratado pelo chefe escala uma torre e atira para todos os lados, às cegas, não apesar de que, mas porque o massacre deverá acelerar seu próprio fim. Também em todos esses casos as motivações são secundárias; com frequência, o próprio autor do crime as desconhece.
A jornada individual para a morte apresenta várias semelhanças com a configuração dos instintos dos autores de atentados. Tanto num caso quanto no outro, o suicida individual ou coletivo dispensa qualquer alternativa, independentemente de quão real ou imaginário é o horror sem fim ao qual se vê exposto, em nome de um fim com horror. Só muda a dimensão de suas ações. Enquanto o "skinhead" só tem seu taco de beisebol, e o incendiário, sua garrafa de gasolina, o bem formado autor de atentado dispõe de financiadores, uma logística altamente desenvolvida, os mais modernos meios de comunicação e técnicas de criptografia; num futuro próximo terá a seu dispor talvez até mesmo armas atômicas, bacteriológicas e químicas.
Tão diferentes as escalas do horror, tão iguais se tornam todos esses criminosos sob um aspecto: sua agressão flutuante não se dirige contra outros quaisquer, mas sobretudo contra si mesmos. Se o terrorista pode aí apresentar um objetivo mais elevado, melhor ainda.
Não importa saber de qual alucinação se trata. Qualquer instância superior serve -uma missão divina, uma pátria sagrada, uma revolução qualquer. Em caso de emergência, no entanto, o suicida assassino pode se arranjar até com uma justificativa qualquer de segunda mão. Seu triunfo consiste no fato de que não poderá ser atacado nem punido; disso ele mesmo se encarrega. E também o mandante à distância aguarda em seu "bunker" o momento da própria extinção; deleita-se -como Elias Canetti já há meio século formulava- só com a idéia de que antes dele possivelmente todos os outros, inclusive seus correligionários, serão mortos.
Quem prefere continuar vivo dificilmente entenderá isso. Embora aquele que não tem a menor vontade de sair matando faça parte de uma maioria esmagadora, no momento do confronto contra os fanáticos suicidas, esse não tem nenhuma chance. Como presumivelmente há centenas de milhares de bombas vivas, sua violência continuará a nos acompanhar pelo século 21 adentro. Também o sacrifício humano, um antiquíssimo costume da espécie, vive assim sua globalização.

Hans Magnus Enzensberger é ensaísta, poeta e dramaturgo alemão, autor de "O Naufrágio do Titanic" (Cia. das Letras).
Tradução de Marcelo Rondinelli.



Texto Anterior: +5 livros Sobre o islã
Próximo Texto: Durkheim desvendou a sociologia do suicídio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.