São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2001

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Tentativa de classificar conflito como moral ou religioso traduz incapacidade em admitir a ausência da esfera política e a falência da gestão razoável

A história em pedaços

por Jacques Rancière

Entre o bem e o mal, sabemos que Deus não é neutro." Foi nesses termos que George W. Bush anunciou sua confiança na guerra lançada pelos EUA contra o terrorismo. Evidentemente o argumento suscita alguns problemas, dos quais o primeiro poderia ser expresso em termos simples: o fato é que, justamente nessa história, Deus parece estar se mostrando estranhamente neutro. É o mesmo Deus -o de Moisés/Moussa e de Abraão/Ibrahim- que justifica a convicção inversa: a de que os combatentes da jihad farão triunfar a causa do bem contra o "império do mal" americano.
É em linguagem moral e religiosa que se afirma cada uma dessas causas. E é ainda nessa linguagem que, basicamente, se expressaram aqueles que se opõem à cruzada anunciada pelo presidente dos EUA: "God", "Love", "Peace" e "No more hate" era o que se lia em toda parte nos cartazes carregados pelas pessoas que se reuniram na Union Square ou na Washington Square para opor a preocupação de um Deus do amor à fúria do Deus da vingança: "Que não nos transformemos no mal que deploramos". Como se se aceitasse que é apenas nesses termos religiosos e morais que se pode exprimir distância com relação ao grande consenso da nação unida em torno de suas vítimas e sua vingança.
Mas não é apenas uma questão de respeito e de solidariedade com as vítimas. Tudo acontece, em nível mais radical, como se as palavras que eram ditas 30 anos atrás -mundo livre, imperialismo, opressão, resistência- não se aplicassem mais, como se nenhuma outra linguagem, nenhum outro contexto de pensamento, existisse para expressar e avaliar a situação atual.
Que isso aconteça neste início do terceiro milênio, no centro do mundo desenvolvido, evidentemente nos obriga a uma reflexão. Faz muito tempo, com certeza, que os profetas anunciavam o fim da política e da história. Mas, justamente, o fim que estamos vendo lembra muito pouco aquele que nos anunciavam. O "fim da história" declarado por Francis Fukuyama e, pouco depois, confirmado pela queda do império soviético era o fim do mundo dividido em blocos opostos pela alternativa socialista. O fim das utopias, outro grande tema dos anos de 1980, era o próprio fim da divisão entre os ideais de justiça e a gestão empírica das necessidades. A democracia se impunha como o governo último, o governo racional que fazia coincidir as exigências da justiça e as da necessidade econômica.
Onde a utopia havia dividido, o retorno aos dados compartilhados de uma realidade restritiva parecia prometer, em prazo maior ou menor, o acordo no interior das nações e entre elas. É verdade que se ouviam vozes dissonantes penetrando na música consensual dos cientistas políticos oficiais. Elas se opunham a esse realismo demasiado simples -o advento de um mundo virtual e da mídia- em que toda realidade se desfazia em imagens, e toda imagem, em números. Uns saudavam o reinado da comunicação, que iria destruir as fortalezas econômicas e do Estado e, por meio da miscigenação generalizada, instaurar a grande democracia planetária da rede. Outros, dependendo do caso, denunciavam a ampliação ao infinito da sociedade do controle, o colapso do real e o totalitarismo "soft" da tela total -ou, ainda, o triunfo fatal do indivíduo narcisista na democracia de massas.
Mas essas aparentes dissidências se baseavam, na realidade, na mesma crença essencial. Ingênuos e astutos, otimistas e pessimistas, todos, no fundo, compartilhavam a mesma idéia -justamente aquela que foi tanto criticada no defunto comunismo-, a de que a história tem um sentido único, no qual a técnica, a economia e a política avançam juntas e a circulação mundial de homens e mercadorias significa que as particularidades estão fadadas a desaparecer, enquanto o desenvolvimento de novas tecnologias significa o fim das ideologias antigas.
Os conflitos étnicos do Leste Europeu, a ascensão do fundamentalismo no mundo muçulmano e os avanços de uma extrema direita racista e xenófoba em vários países ocidentais aparentemente não bastaram para abalar essa crença na concordância dos tempos. Será que a queda das torres gêmeas o conseguirá, hoje?
Àqueles que já nos viam vivendo futuramente no puro universo virtual das redes, àqueles que diziam que o horror vivido nesse dia já tinha sido previsto pelos filmes de catástrofe, o dia 11 de setembro fez lembrar, em primeiro lugar, que ainda vivemos e trabalhamos em edifícios de ferro, pedra e vidro, cuja resistência e cujo desgaste nada têm a ver com as telas ou os efeitos especiais, e que, quando desabam, desabam de fato.
Mostrou, sobretudo, que a maior arma a favor da destruição real é essa "ideologia" que o mundo atual e o império da comunicação tecnológica pensavam ter relegado ao reino das recordações. Por trás da pergunta falsamente ingênua "por que eles nos odeiam?" se oculta uma perplexidade mais sincera: "Por que eles não são razoáveis, como nós?".
Por que as coisas não obedecem a essa razão simples que quer que, quando os equipamentos se multiplicam, as pessoas vivam melhor, e, quando elas vivam melhor, se tornem mais pacíficas? Gostaríamos muito de acreditar que os atentados são obra de pessoas que ainda não têm acesso a equipamentos e ao bem-estar. Mas como compreender que seja possível ser ao mesmo tempo chefe de uma rede financeira internacional e guerreiro de Deus, fanático suicida e organizador e executante minucioso? Que se possa avançar rumo à morte certa quando não se é um miserável que não tem mais nada a perder, mas um homem normal, que concluiu seus estudos e poderia ter uma bela carreira de engenheiro?
Assim a derrota atual da política em nome da moral e da religião não guarda relação com o cenário de fim da história que se vê por toda parte nos últimos 20 anos. Não se identifica com o reinado planetário da gestão razoável que, pouco a pouco, se ergue sobre as ruínas da utopia. Pelo contrário -ela marca não apenas a refutação desse cenário "razoável" mas também a negação da concepção linear de evolução histórica que o sustenta. A política não acabou. Apenas se ausentou.
Ela foi excluída, por princípio, pelos Estados ou grupos autoritários que declaram, sem rodeios, que não precisam dela, porque a palavra de Deus ou outro princípio de identidade qualquer é o verdadeiro alicerce da vida em comunidade. Ela é esvaziada de dentro para fora pelos Estados liberais que, cada vez mais, tendem a trazer a forma democrática de volta à gestão supostamente unívoca dos interesses econômicos comuns.
O que fica mais claro do que nunca, hoje, é que a política não é um dado permanente e identificável na organização das comunidades de Estado. Ela é uma maneira de conduzir conflitos e de fazer disso o próprio centro da vida comunitária. Essa maneira nem sempre foi exercida. Mas todo Estado, bom ou ruim, tende a reduzir a política, por meios violentos ou brandos, em nome de um princípio de comunidade não equívoca, não conflitante: a identidade da fé ou da origem, mas, também, a lei, o interesse comum ou as restrições impostas pelas circunstâncias.
O que também fica aparente quando a política se apaga é que ela é, antes de mais nada, uma maneira de dotar os acontecimentos de nome e de contexto, uma maneira de compreender as diferenças das temporalidades num mesmo presente, de situar o mesmo e o outro numa espécie comum. Algumas nações não vêem necessidade disso, encontrando nas escrituras sagradas, na lei do sangue ou da terra meios de atender a essas necessidades. Outras, que a percepção política ajudou a formar em grau maior do que elas mesmas se dão conta, se vêem desarmadas agora.
É o que estamos observando hoje nos EUA e entre seus aliados. O recurso às referências seguras da moral e da religião traduz a impossibilidade de dar nome ao conflito, de situar o inimigo num espaço comum, de pensar o tempo comum às convicções ancestrais que o animam e às tecnologias novas que ele maneja, para traduzi-los em atos. É uma incapacidade compartilhada pelos dirigentes americanos, que não sabem que nome atribuir à sua guerra, e aos opositores, que não sabem como defender sua discordância a essa guerra.
Alguns setores poderiam afirmar que se trata de uma guerra de palavras, apenas, e que isso não impede o jogo das grandes potências. Mas a própria oposição entre palavras e atos está sendo questionada. A potência americana sofre dificuldades que não se limitam à falta de adaptação de seus meios militares à geografia do Afeganistão mas também à própria natureza dessa potência.
A hegemonia americana é, em primeiro lugar, aquela que os Estados Unidos exercem sobre seus aliados em nome da lógica consensual dos interesses comuns e das realidades restritivas. A mesma lógica que submete os Estados aliados é aquela em nome da qual eles asseguram seu poder.
Para quem aceita as regras do jogo, essa lógica não admite réplicas. Mas ela se esvazia diante daquele que a rejeita em bloco. Surge no próprio coração da superpotência uma impotência que é muito diferente da tradicionalmente comentada dificuldade de conciliar a vida democrática interna com a luta mortal contra um inimigo disposto a tudo. As mesmas razões que desarmam a contestação nos Estados ocidentais e dão carta branca a seus governantes podem dificultar não apenas a tarefa de dar nome ao inimigo e à guerra mas também a de chegar ao fim dela.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de Clara Allain.


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