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O escritor americano Don DeLillo flerta com o expressionismo abstrato em seu novo romance, "A Artista do Corpo", que está sendo publicado no Brasil
Um inquietante transe gestual
Alcir Pécora
especial para a Folha
Don DeLillo (1936), filho de pais
italianos que emigraram para
Nova York, nasceu e cresceu no
Bronx. Estreou na ficção em
1971 com o romance "Americana" e, de
lá para cá, escreveu mais de uma dúzia de
romances, em geral bem recebidos pela
crítica norte-americana. Isso é especialmente verdadeiro para "White Noise",
de 1985, que teve edição brasileira ("Ruído Branco", Cia. das Letras). "Players",
de 1977, tem sido lembrado por alguns
comentaristas por referir-se a um grupo
terrorista que planeja um ataque à Bolsa
de Valores de Nova York bem como
"Mao 2", de 1991, que trata do terrorismo
fundamentalista. Nenhum desses temas,
contudo, tem relação direta com seu último livro, editado nos Estados Unidos em
fevereiro deste ano, que recebe agora tradução brasileira, "A Artista do Corpo"
("The Body Artist"), cuja matéria é muito menos, digamos, reconhecível.
Para começar, o romance, diferentemente dos calhamaços habituais, é muito curto e tem uma estrutura pouco linear, que encaixa cinco partes bem distintas numa sequência supostamente
cronológica, na qual a narrativa mais se
suspende e problematiza do que avança.
Na primeira delas, descreve-se lentamente o café da manhã de um casal, num
domingo, na cozinha de uma casa alugada, numa praia deserta. As perguntas e
respostas lacônicas e distraídas não
fluem, quebradas a maior parte do tempo pela consciência ou esquecimento
dos gestos repetidos e estranhamente desordenados por xícaras, jornais, cereais,
rádio, chaves etc.
Na segunda parte, um obituário anuncia secamente o suicídio do homem em
questão, que atira contra a própria cabeça na casa da primeira mulher, naquela
mesma manhã de domingo, após deixar
a casa de praia em que estava com a mulher que já conhecemos e que, então, se
revela ser a sua terceira mulher, uma praticante de "body art".
Na parte seguinte, a mais longa e impressiva do livro, a narração se concentra
nas reações pesarosas da mulher, que fica sozinha na casa de praia, tentando retomar a própria vida e absorver a morte
inesperada do marido.
Tais reações, na verdade, referem menos pensamentos ou emoções diretamente relativos à perda do que certa dilatação temporal gerada pelo impacto de
sons e imagens sobre ela: a visão de uma
japonesa, à frente de sua casa, com uma
mangueira nas mãos; a voz computadorizada da secretária eletrônica de uma
amiga, dizendo para deixar a mensagem
após o sinal; um site na internet que
mostra ininterruptamente a imagem de
uma câmara de vídeo instalada numa estrada de duas pistas em Kotka, cidade da
Finlândia; a ilusão de ótica ou erro de
percepção que a faz ver, num relance, a
figura de um homem e a sua vida inteira,
sua profissão, seus filhos, para então descobrir que não havia ali senão uma lata
de tinta sobre uma tábua equilibrada entre duas cadeiras.
Tons assombrados Mas ocorre
também, em meio a esses quase-acontecimentos, a esses sinais indiferentes de
realidades paralelas e impalpáveis, um
evento extraordinário: a protagonista
descobre que há mais alguém vivendo
ocultamente no terceiro andar, aparentemente abandonado, do velho casarão.
Trata-se de um homenzinho desajeitado,
sem idade definida, vagamente assemelhado a um antigo professor de ciências
do secundário, mas sem uma conformação nítida, parecendo mesmo, por vezes,
não ter queixo, como se fora um esboço
de desenho.
Nesse ponto, o romance, cujo andamento era já inquietante pelos sobressaltos que truncavam certa vaguidade tediosa, ganha tons assombrados. O intruso parece apresentar alguma forma de
retardamento ou afasia e, longe de explicar a sua presença ali, apenas responde
às perguntas da mulher com frases desconexas, mal justapostas, acompanhadas de gestos incompletos, embora estranhamente familiares.
Num relance, reconhece
que ele reproduzia, no
presente, ecos de coisas
ditas por ela mesma ou
por seu marido, o verdadeiro dono daqueles gestos, em diferentes momentos de sua vida em comum. Arma-se
então de um gravador e, enquanto intensifica os exercícios corporais que visam a
livrá-la de sua própria forma habitual,
tenta estabelecer algum modo de conversa com o estranho, reinventando o
idioma em formas insólitas de concatenação.
A quarta parte é ocupada pelo texto de
uma crítica do espetáculo de "body art"
apresentado pela mulher no Centro para
Artes de Boston, intitulado "Tempo Corporal" ("Time Body"). Assina-o uma escritora, amiga da artista, na forma de
uma entrevista improvisada num café
árabe. Fica evidente, desde logo, o nível extraordinário da performance, cujo transcurso se faz por
meio da transformação
do corpo da artista em diferentes personagens, começando por uma japonesa e terminando por
um homem nu e disléxico, que se esforça por dizer alguma coisa,
enquanto ao fundo se projeta a imagem
de uma estrada com pouco tráfego.
O discurso alinhava palavras aparentemente aleatórias que induzem progressivamente o corpo do homem a movimentos elétricos e convulsivos, semelhantes
aos de um desenho animado. A entrevista termina com uma assustadora troca
da voz ao vivo da artista, que passa a soar
como a do homem nu, descrita então como semelhante ao som de um instrumento de sopro dentro de um móvel.
Na última parte, a mulher está de volta
à casa da praia, mas o homenzinho desapareceu há tempos. Os pensamentos dela formulam-se como uma percepção da
distância temerosa que as pessoas guardam dos sofrimentos das outras. Certo
dia, o dono da casa aparece no lugar, como a mulher antevira numa imagem anterior, e pede-lhe permissão para retirar
do cômodo do terceiro andar, aquele
mesmo onde aparecera o homenzinho,
uma velha cômoda da família que ficara
esquecida por lá. Pela manhã, a mulher ouve um barulho em seu próprio
quarto. Antes mesmo de entrar, adivinha que o seu marido está lá e que refazem uma noite de sexo intenso, até
que amanheça novamente e desçam
para tomar o café do último dia.
Quando se decide a entrar no quarto,
sabe que está finalmente vazio.
Desse relato parcial das partes, interessa-me ressaltar duas linhas de força que equivocam o texto de DeLillo.
A primeira é a do deslizamento do pesar pessoal por figuras objetivas recortadas no próprio horizonte cotidiano do sujeito do luto até o ponto
em que o corpo, despojado de si mesmo, experimenta uma nudez desamparada e desconexa.
A segunda é a efetuada pelo lento
trabalho de produção da obra de arte,
que, alimentando-se de gestos expressivos, movidos a afeições radicais, termina por autonomizar-se, tornando-se um outro também para o artista.
No primeiro caso, DeLillo encarece a
entrega à dor da perda, da vulnerabilidade, entendida como condição da vida moral; no segundo, efetua um elogio da arte entendida como experiência-limite, que é emanação do real, e
não da consciência do artista. Ao contrário, enquanto esta se dá ou resiste,
não há senão arte medíocre, desconectada da sintonia ou simultaneidade de seus elementos objetivos.
Claro que a articulação entre as duas
direções é fundamental: a experiência
dolorosa, vivida como extremo, é que
possibilita o estado de transe gestual,
que não exprime, mas recebe de fora,
a forma que sintetiza realidades simultâneas e curvas temporais fechadas. Nesse ponto, cumpre perceber a
dívida de DeLillo com a reflexão elaborada por artistas do chamado expressionismo abstrato norte-americano. Com isso em mente, parece justo propor, aqui, que o homenzinho
informe funciona no romance à imagem dos seres monstruosos e híbridos
referidos, por exemplo, por Mark
Rothko, para designar os estados de
pulverização da identidade familiar,
necessários para o reencontro de experiências de transcendência artística.
Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de
"Máquina de Gêneros" (Edusp) e outros.
A Artista do Corpo
128 págs., R$ 19,50
de Don DeLillo. Trad. Paulo
Henriques Britto. Cia. das Letras
(r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP,
tel. 0/xx/11/3846-0801).
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