São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2001

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O escritor americano Don DeLillo flerta com o expressionismo abstrato em seu novo romance, "A Artista do Corpo", que está sendo publicado no Brasil

Um inquietante transe gestual

Alcir Pécora
especial para a Folha

Don DeLillo (1936), filho de pais italianos que emigraram para Nova York, nasceu e cresceu no Bronx. Estreou na ficção em 1971 com o romance "Americana" e, de lá para cá, escreveu mais de uma dúzia de romances, em geral bem recebidos pela crítica norte-americana. Isso é especialmente verdadeiro para "White Noise", de 1985, que teve edição brasileira ("Ruído Branco", Cia. das Letras). "Players", de 1977, tem sido lembrado por alguns comentaristas por referir-se a um grupo terrorista que planeja um ataque à Bolsa de Valores de Nova York bem como "Mao 2", de 1991, que trata do terrorismo fundamentalista. Nenhum desses temas, contudo, tem relação direta com seu último livro, editado nos Estados Unidos em fevereiro deste ano, que recebe agora tradução brasileira, "A Artista do Corpo" ("The Body Artist"), cuja matéria é muito menos, digamos, reconhecível.
Para começar, o romance, diferentemente dos calhamaços habituais, é muito curto e tem uma estrutura pouco linear, que encaixa cinco partes bem distintas numa sequência supostamente cronológica, na qual a narrativa mais se suspende e problematiza do que avança.
Na primeira delas, descreve-se lentamente o café da manhã de um casal, num domingo, na cozinha de uma casa alugada, numa praia deserta. As perguntas e respostas lacônicas e distraídas não fluem, quebradas a maior parte do tempo pela consciência ou esquecimento dos gestos repetidos e estranhamente desordenados por xícaras, jornais, cereais, rádio, chaves etc.
Na segunda parte, um obituário anuncia secamente o suicídio do homem em questão, que atira contra a própria cabeça na casa da primeira mulher, naquela mesma manhã de domingo, após deixar a casa de praia em que estava com a mulher que já conhecemos e que, então, se revela ser a sua terceira mulher, uma praticante de "body art".
Na parte seguinte, a mais longa e impressiva do livro, a narração se concentra nas reações pesarosas da mulher, que fica sozinha na casa de praia, tentando retomar a própria vida e absorver a morte inesperada do marido.
Tais reações, na verdade, referem menos pensamentos ou emoções diretamente relativos à perda do que certa dilatação temporal gerada pelo impacto de sons e imagens sobre ela: a visão de uma japonesa, à frente de sua casa, com uma mangueira nas mãos; a voz computadorizada da secretária eletrônica de uma amiga, dizendo para deixar a mensagem após o sinal; um site na internet que mostra ininterruptamente a imagem de uma câmara de vídeo instalada numa estrada de duas pistas em Kotka, cidade da Finlândia; a ilusão de ótica ou erro de percepção que a faz ver, num relance, a figura de um homem e a sua vida inteira, sua profissão, seus filhos, para então descobrir que não havia ali senão uma lata de tinta sobre uma tábua equilibrada entre duas cadeiras.

Tons assombrados Mas ocorre também, em meio a esses quase-acontecimentos, a esses sinais indiferentes de realidades paralelas e impalpáveis, um evento extraordinário: a protagonista descobre que há mais alguém vivendo ocultamente no terceiro andar, aparentemente abandonado, do velho casarão. Trata-se de um homenzinho desajeitado, sem idade definida, vagamente assemelhado a um antigo professor de ciências do secundário, mas sem uma conformação nítida, parecendo mesmo, por vezes, não ter queixo, como se fora um esboço de desenho.
Nesse ponto, o romance, cujo andamento era já inquietante pelos sobressaltos que truncavam certa vaguidade tediosa, ganha tons assombrados. O intruso parece apresentar alguma forma de retardamento ou afasia e, longe de explicar a sua presença ali, apenas responde às perguntas da mulher com frases desconexas, mal justapostas, acompanhadas de gestos incompletos, embora estranhamente familiares.
Num relance, reconhece que ele reproduzia, no presente, ecos de coisas ditas por ela mesma ou por seu marido, o verdadeiro dono daqueles gestos, em diferentes momentos de sua vida em comum. Arma-se então de um gravador e, enquanto intensifica os exercícios corporais que visam a livrá-la de sua própria forma habitual, tenta estabelecer algum modo de conversa com o estranho, reinventando o idioma em formas insólitas de concatenação.
A quarta parte é ocupada pelo texto de uma crítica do espetáculo de "body art" apresentado pela mulher no Centro para Artes de Boston, intitulado "Tempo Corporal" ("Time Body"). Assina-o uma escritora, amiga da artista, na forma de uma entrevista improvisada num café árabe. Fica evidente, desde logo, o nível extraordinário da performance, cujo transcurso se faz por meio da transformação do corpo da artista em diferentes personagens, começando por uma japonesa e terminando por um homem nu e disléxico, que se esforça por dizer alguma coisa, enquanto ao fundo se projeta a imagem de uma estrada com pouco tráfego.
O discurso alinhava palavras aparentemente aleatórias que induzem progressivamente o corpo do homem a movimentos elétricos e convulsivos, semelhantes aos de um desenho animado. A entrevista termina com uma assustadora troca da voz ao vivo da artista, que passa a soar como a do homem nu, descrita então como semelhante ao som de um instrumento de sopro dentro de um móvel.
Na última parte, a mulher está de volta à casa da praia, mas o homenzinho desapareceu há tempos. Os pensamentos dela formulam-se como uma percepção da distância temerosa que as pessoas guardam dos sofrimentos das outras. Certo dia, o dono da casa aparece no lugar, como a mulher antevira numa imagem anterior, e pede-lhe permissão para retirar do cômodo do terceiro andar, aquele mesmo onde aparecera o homenzinho, uma velha cômoda da família que ficara esquecida por lá. Pela manhã, a mulher ouve um barulho em seu próprio quarto. Antes mesmo de entrar, adivinha que o seu marido está lá e que refazem uma noite de sexo intenso, até que amanheça novamente e desçam para tomar o café do último dia. Quando se decide a entrar no quarto, sabe que está finalmente vazio.
Desse relato parcial das partes, interessa-me ressaltar duas linhas de força que equivocam o texto de DeLillo. A primeira é a do deslizamento do pesar pessoal por figuras objetivas recortadas no próprio horizonte cotidiano do sujeito do luto até o ponto em que o corpo, despojado de si mesmo, experimenta uma nudez desamparada e desconexa.
A segunda é a efetuada pelo lento trabalho de produção da obra de arte, que, alimentando-se de gestos expressivos, movidos a afeições radicais, termina por autonomizar-se, tornando-se um outro também para o artista. No primeiro caso, DeLillo encarece a entrega à dor da perda, da vulnerabilidade, entendida como condição da vida moral; no segundo, efetua um elogio da arte entendida como experiência-limite, que é emanação do real, e não da consciência do artista. Ao contrário, enquanto esta se dá ou resiste, não há senão arte medíocre, desconectada da sintonia ou simultaneidade de seus elementos objetivos.
Claro que a articulação entre as duas direções é fundamental: a experiência dolorosa, vivida como extremo, é que possibilita o estado de transe gestual, que não exprime, mas recebe de fora, a forma que sintetiza realidades simultâneas e curvas temporais fechadas. Nesse ponto, cumpre perceber a dívida de DeLillo com a reflexão elaborada por artistas do chamado expressionismo abstrato norte-americano. Com isso em mente, parece justo propor, aqui, que o homenzinho informe funciona no romance à imagem dos seres monstruosos e híbridos referidos, por exemplo, por Mark Rothko, para designar os estados de pulverização da identidade familiar, necessários para o reencontro de experiências de transcendência artística.


Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp) e outros.


A Artista do Corpo
128 págs., R$ 19,50
de Don DeLillo. Trad. Paulo Henriques Britto. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3846-0801).



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