São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2001

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A doença como arma

por Moacyr Scliar

Lemos no Êxodo que, diante da recusa do faraó em liberar os hebreus da servidão, Jeová enviou uma peste que acometeu o gado (é a quinta praga), seguida por "tumores que arrebentavam em úlceras nos homens e nos animais". A noção da enfermidade como castigo divino ou como maldição demoníaca está presente em praticamente todas as culturas e explica o arcaico temor que acompanha as pestilências. A própria Bíblia confere peculiar atenção à lepra ("tzaraat", em hebraico).
Critérios diagnósticos são descritos minuciosamente, e aos sacerdotes é delegada a tarefa de tomar conta dos enfermos -isolando-os, uma prática que será mantida pelo cristianismo. Lepra era sinônimo de conduta pecaminosa, o que tinha certo fundamento: afinal, é uma doença que se transmite por contágio, o que pressupõe contato, possivelmente sexual, entre corpos.
Mas havia outra razão para considerar as pestilências como punição originária da divindade: a causa era desconhecida, misteriosa. Muitas dessas enfermidades eram atribuídas aos miasmas, emanações de regiões insalubres como os pântanos -o termo malária vem daí, de maus ares. Uma nova concepção surgiu no fim do século 15, quando, em razão da liberalização dos costumes que coincidiu com o advento da modernidade e também pelas guerras que então se sucediam, uma epidemia de sífilis varreu a Europa.

Doença de inimigo Já então atribuía-se o contágio à ação de inimigos: para os franceses, sífilis era o mal napolitano, para os italianos, o mal francês. Os poloneses falavam na "doença dos alemães", os russos temiam a "doença dos poloneses". O nome da doença se origina em um poema escrito em 1530 pelo médico e poeta Girolamo Fracastoro, narrando a história de Syphilus, um pastor que se recusa a fazer sacrifícios ao deus Sol e é por isso punido com a enfermidade.
Fracastoro levantou a hipótese de que a transmissão da doença se fizesse por meio de partículas muito pequenas, "seminaria contagium" ou "virus". Mas, curiosamente, essa idéia não foi investigada. À época, o telescópio já era comum, mas o poder das lentes era usado para descobrir planetas ou novas terras, não para ver o que sucedia no corpo humano.
Nem mesmo a invenção do microscópio, no final do século 16, permitiu a identificação dos agentes infecciosos, o que só aconteceria no final do século 19, com a escola pasteuriana.
Um terceiro motivo para que as doenças epidêmicas fossem consideradas punição era o seu enorme potencial de mortalidade. No século 14, a peste bubônica liquidou um quarto da população européia, comprometendo a própria estrutura da sociedade feudal. Como diz Boccaccio no "Decameron": "Em meio à aflição e à miséria, até mesmo as autoridades civis e eclesiásticas perderam o seu poder". Boccaccio falava de Florença, onde, segundo estimativas, dois de cada três habitantes morreram de peste. Nas guerras, as doenças infecciosas podiam ser o fator decisivo para a vitória (ou para a derrota). Quando Cortés invadiu o México, liderava um precário e reduzido bando de soldados, que os astecas poderiam ter liquidado com as mãos nuas, se quisessem. Mas com os espanhóis veio a varíola, doença para a qual os nativos não tinham imunidade. A epidemia que se seguiu foi catastrófica, matando inclusive o imperador e vários membros da família real. A partir daí a conquista do México foi um fato consumado.
Não é de admirar que muito cedo se tenha cogitado da doença infecciosa como arma bélica. O problema era como fazê-lo. Em suas guerras contra os cristãos, os turcos costumavam catapultar os cadáveres de pessoas mortas de peste na direção dos inimigos. Não era um procedimento muito eficiente, porque a doença se transmite não por contato direto, mas pela pulga do rato, o que então se ignorava. Melhor resultado foi obtido com a varíola, doença muito contagiosa e muito letal. De novo, foi um procedimento usado, até recentemente, nas Américas. Roupas de variolosos eram deixadas em trilhas indígenas; os índios vestiam-nas, adoeciam e morriam como moscas.

Punição divina A descoberta da vacina, no final do século 18, abriu caminho para a erradicação da doença, o que, no entanto, só veio a acontecer em 1977, depois de uma maciça campanha de vacinação desencadeada pela Organização Mundial da Saúde. Mesmo assim, a idéia da guerra biológica não morreu, ao contrário. No caso da varíola, é exatamente a inexistência da enfermidade que a torna mais perigosa. Como a vacinação de rotina foi abandonada -tratava-se de um procedimento desnecessário e não isento de riscos-, o número de suscetíveis é imenso. Por outro lado, culturas do vírus existem, e a possibilidade de que tenham caído em mãos pouco responsáveis ou francamente criminosas tem sido levantada com frequência.
Mais do que mísseis ou bombas, as doenças resultam em armas apavorantes. Criam um clima de permanente paranóia. É possível identificar um terrorista, mas não é possível detectar germes de doença.
Nesse contexto, não é de admirar que a velha idéia da punição divina tenha sido ressuscitada. E o foi não apenas por Bin Laden, como também pelo velho fundamentalista Jerry Falwell. Conhecido por suas posições conservadoras, Falwell não hesitou em atribuir os ataques terroristas em Nova York e Washington aos pecados dos norte-americanos. Ainda não se falava em antraz, mas essa nova ameaça certamente será usada para reforçar os seus argumentos. Como diz Susan Sontag, doenças frequentemente são metáforas. Usadas por poetas, metáforas enriquecem a vida. A serviço do terrorismo, ao contrário, servem para transformar a existência em um verdadeiro martírio.


Moacyr Scliar é escritor e médico de saúde pública, autor de, entre outros, "A Paixão Transformada - História da Medicina na Literatura" (Companhia das Letras).


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