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PONTO DE FUGA
Ectoplasmas
"Más peleas y más tesoros", diz o garoto com vocação
para desenhista de quadrinhos. "A Espinha do Diabo",
filme de Guillermo del Toro, segue essa receita, que ele
próprio enuncia: multiplicar ação e situações. Lembra
Buñuel, um Buñuel que refizesse "A Noite do Caçador"
(1955), de Charles Laughton. Reúne obsessões dos dois
filmes, infiltradas em outras.
A infância é ameaçada pelo pecado e pela maldade
humana; o erotismo faz-se culposo, perverso e incontido; mas isso se filtra por um olhar desarmado, que possui a força e os poderes da inocência. É um olhar parecido com o das crianças do filme, querendo mais brigas e
tesouros. O bando de pequenos órfãos é capaz de transformar uma lição de pré-história num modelo de sobrevivência: decidem matar o vilão com lanças precárias, como os homens das cavernas matavam mamutes.
Medos vêm de todos os lados: da violência humana às
aparições sobrenaturais. Eles se dão como que por encaixes, mais do que por fluência. Ao contrário, "Os Outros", de Alejandro Almenábar, com Nicole Kidman, é
construído sobre uma trama perfeita, cuja narração não
perde nunca seu norte. Almenábar filma com discrição,
e as imagens correm tranquilas. Submete-se ao roteiro,
sem insistir no pavor ou nos sustos; reduz as cores, que
se esvaem dentro da cerração ou que se uniformizam
sob a luz artificial dos interiores. É admirável. Essa singeleza estudada leva-o a criar uma espécie de banalidade, ou de neutralidade aparente, que propicia o encontro entre natural e sobrenatural, entre vivos e mortos.
Bicho-papão - Ver "Olhos Famintos" é entrar num
pesadelo alheio. Inesperado, driblando clichês, o filme
introduz um demônio gótico num quadro realista. Passa, aos poucos, do pavor insustentável a uma espécie de
parábola simbólica e atormentada. Dá pistas para que
se possa perceber o monstro como encarnação do desejo homossexual, imperioso, incontrolável, invencível,
habitado por dolorosa crueldade. Trata-se do primeiro
filme de Victor Salva, depois que saiu da prisão. Ele havia sido condenado por delito sexual.
? - O que permitia às chanchadas da Atlântida serem
tão divertidas e tão vivas? O que faz de "Xangô em Baker
Street" um filme tão insípido? Uma razão possível: as
primeiras não temiam a própria penúria e a enriqueciam com a tradição tarimbada, talentosa e humana, do
teatro de rebolado, de onde provinham. O segundo,
com luxos, estátuas, porcelanas, frufrus e barabadós,
com bela fotografia e bons atores, deriva de uma certa
televisão, imensa produtora de nadas plastificados e
pasteurizados.
Quimeras - Hercule Florence é conhecido, sobretudo,
como precursor da fotografia no Brasil. O personagem,
porém, mostra-se mais rico por seus interesses diversos
e pelas aventuras em que se meteu. O francês William
Luret lançou, neste ano, em Paris, uma biografia romanceada: "Les Trois Vies d'Hercule Florence" (ed. J.C.
Lattès), redigida com seriedade e respeito. É possível
detectar alguns pequenos lapsos e senões, mas eles não
comprometem a visão biográfica de conjunto, feita a
partir de pesquisa séria.
O livro retraça a vida de Florence, das suas origens familiares e seu nascimento na Côte d'Azur até sua morte
em Campinas. Participou da expedição Langsdorff como desenhista, deixando uma iconografia essencial sobre o Brasil da época. Foi inventor, cheio de intuições,
que tentava realizar com os meios precários de que dispunha. Além da fotografia, interessou-se pela aerostática, pela zoofonia, por novos tipos de impressão e de papéis. Chegou mesmo a conceber, ao lado das cinco ordens clássicas de arquitetura, uma sexta, brasileira, inspirada nas palmeiras nativas. O biógrafo sabe situá-lo
de modo convincente no meio brasileiro da época. Ele
serviu-se bastante dos manuscritos deixados por Florence, que formam um conjunto, até hoje inédito, de
1.300 páginas.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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