São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2001

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PONTO DE FUGA

Ectoplasmas

"Más peleas y más tesoros", diz o garoto com vocação para desenhista de quadrinhos. "A Espinha do Diabo", filme de Guillermo del Toro, segue essa receita, que ele próprio enuncia: multiplicar ação e situações. Lembra Buñuel, um Buñuel que refizesse "A Noite do Caçador" (1955), de Charles Laughton. Reúne obsessões dos dois filmes, infiltradas em outras.
A infância é ameaçada pelo pecado e pela maldade humana; o erotismo faz-se culposo, perverso e incontido; mas isso se filtra por um olhar desarmado, que possui a força e os poderes da inocência. É um olhar parecido com o das crianças do filme, querendo mais brigas e tesouros. O bando de pequenos órfãos é capaz de transformar uma lição de pré-história num modelo de sobrevivência: decidem matar o vilão com lanças precárias, como os homens das cavernas matavam mamutes.
Medos vêm de todos os lados: da violência humana às aparições sobrenaturais. Eles se dão como que por encaixes, mais do que por fluência. Ao contrário, "Os Outros", de Alejandro Almenábar, com Nicole Kidman, é construído sobre uma trama perfeita, cuja narração não perde nunca seu norte. Almenábar filma com discrição, e as imagens correm tranquilas. Submete-se ao roteiro, sem insistir no pavor ou nos sustos; reduz as cores, que se esvaem dentro da cerração ou que se uniformizam sob a luz artificial dos interiores. É admirável. Essa singeleza estudada leva-o a criar uma espécie de banalidade, ou de neutralidade aparente, que propicia o encontro entre natural e sobrenatural, entre vivos e mortos.
Bicho-papão - Ver "Olhos Famintos" é entrar num pesadelo alheio. Inesperado, driblando clichês, o filme introduz um demônio gótico num quadro realista. Passa, aos poucos, do pavor insustentável a uma espécie de parábola simbólica e atormentada. Dá pistas para que se possa perceber o monstro como encarnação do desejo homossexual, imperioso, incontrolável, invencível, habitado por dolorosa crueldade. Trata-se do primeiro filme de Victor Salva, depois que saiu da prisão. Ele havia sido condenado por delito sexual.
? - O que permitia às chanchadas da Atlântida serem tão divertidas e tão vivas? O que faz de "Xangô em Baker Street" um filme tão insípido? Uma razão possível: as primeiras não temiam a própria penúria e a enriqueciam com a tradição tarimbada, talentosa e humana, do teatro de rebolado, de onde provinham. O segundo, com luxos, estátuas, porcelanas, frufrus e barabadós, com bela fotografia e bons atores, deriva de uma certa televisão, imensa produtora de nadas plastificados e pasteurizados.
Quimeras - Hercule Florence é conhecido, sobretudo, como precursor da fotografia no Brasil. O personagem, porém, mostra-se mais rico por seus interesses diversos e pelas aventuras em que se meteu. O francês William Luret lançou, neste ano, em Paris, uma biografia romanceada: "Les Trois Vies d'Hercule Florence" (ed. J.C. Lattès), redigida com seriedade e respeito. É possível detectar alguns pequenos lapsos e senões, mas eles não comprometem a visão biográfica de conjunto, feita a partir de pesquisa séria.
O livro retraça a vida de Florence, das suas origens familiares e seu nascimento na Côte d'Azur até sua morte em Campinas. Participou da expedição Langsdorff como desenhista, deixando uma iconografia essencial sobre o Brasil da época. Foi inventor, cheio de intuições, que tentava realizar com os meios precários de que dispunha. Além da fotografia, interessou-se pela aerostática, pela zoofonia, por novos tipos de impressão e de papéis. Chegou mesmo a conceber, ao lado das cinco ordens clássicas de arquitetura, uma sexta, brasileira, inspirada nas palmeiras nativas. O biógrafo sabe situá-lo de modo convincente no meio brasileiro da época. Ele serviu-se bastante dos manuscritos deixados por Florence, que formam um conjunto, até hoje inédito, de 1.300 páginas.


Jorge Coli é historiador da arte.

E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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