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+ Cultura
O armário de Hogwarts
Ao anunciar homossexualidade de Dumbledore, autora de "Harry Potter" reafirmou simbolismo do mago como "elogio à diferença"
EDWARD ROTHSTEIN
Em certos círculos, a
notícia surgida em
19/10 sobre "Harry
Potter" continua a
inspirar tanto espanto
quanto o hipogrifo, o animal de
estimação meio cavalo, meio
águia, de Hagrid. E o ruído da
discussão na internet foi tão alto quanto o da conversa no salão de Hogwarts antes da cerimônia que define os destinos
dos novos alunos.
Ao que parece Dumbledore,
o sábio e encarquilhado mago
que ganhou fama nos livros da
série "Harry Potter", vai se unir
a outras figuras de mídia, como
Ênio e Beto, de "Vila Sésamo",
e Tinky Winky, dos "Teletubbies". Para todos eles, surgiram
questões de orientação sexual.
E a criadora do personagem,
J.K. Rowling, afirmou, em discurso no Carnegie Hall, que
Dumbledore é gay.
Dumbledore? O maior mago
da era, cuja firme condução de
Hogwarts colocou o colégio interno britânico para aprendizes de feitiçaria na linha de
frente da guerra contra o mal?
O mesmo homem que orientou
Harry desde a infância, preparando o menino para sua última e maior batalha?
Mas é possível que Rowling
esteja equivocada sobre o personagem que ela mesma criou.
A escritora pode ter inventado Hogwarts e todos os magos
que lá vivem, pode ter criado a
mais influente série de livros
de fantasia desde J.R.R. Tolkien e pode ter tecido seus feitiços ao longo de milhares de
páginas e sete romances, mas
os livros não parecem oferecer
nenhum motivo convincente
para sua afirmação a posteriori.
É claro que não seria inconsistente que Dumbledore fosse
gay, mas aquilo que os livros relatam decerto não tornaria necessário que ele o fosse. A questão desvia atenções, e é por isso
que jamais surge nos livros em
si. Rowling pode pensar em
Dumbledore como gay, mas
não existe motivo para que outras pessoas o façam.
Sim, Dumbledore evidentemente reconhece que, no momento mais sombrio de sua vida, quando ele era adolescente
e se sentia "aprisionado e desperdiçado", a aparição de um
amigo carismático o "inflamou" e despertou nele sonhos
fantásticos de poder e influência. "Dois meninos inteligentes
e arrogantes compartilhando
uma obsessão", ele relembra,
resultaram em "dois meses de
insanidade". Mas seu arrependimento durou o resto da vida.
Que insanidade foi essa? Caso tenha sido primordialmente
um caso de atração sexual ou
identidade sexual, a reação de
Dumbledore se torna menos
plausível. Ele sentiu que havia
profundas traições latentes em
seu comportamento e suas
idéias durante o período.
Tinha problemas em aceitar
seus problemáticos irmãos; via
sua posição como mais importante do que era de fato; acreditava que os magos fossem superiores aos "trouxas". Essas
atitudes tiveram conseqüências trágicas, que terminaram
por alterar suas visões quanto à
virtude e ao poder. Ser ou não
gay é irrelevante.
Asceta típico
Quanto ao celibato pelo qual
ele optaria, parece servir como
eco a uma renúncia e uma devoção maiores. Afinal, é exatamente em torno disso que a literatura de fantasia gira. O
mestre dos magos não é um ser
sexual; ele deixou de lado suas
preocupações pessoais e se dedica a uma missão maior.
E, caso ceda à tentação do sexo, isso representaria sua queda, como aconteceu, reza a lenda, no caso de Merlin, o primeiro grande feiticeiro de nossa
tradição, seduzido por uma das
asseclas da Dama do Lago.
Há algo de bizarro quanto à
idéia de que Dumbledore seja
descrito como gay em sua maturidade, ou, aliás, que seja descrito como apaixonado. Por
mais dificuldades e desejos terrenos que o aflijam, continua a
ser um mago confinado aos limites do gênero fantástico, superior ao mundo que o cerca.
Com certeza parece existir
um impulso travesso na declaração de Rowling. Ela situa sua
história épica em um colégio
britânico, instituição há muito
associada ao privilégio e à riqueza hereditários. Mas ao longo de toda a história ela solapa a
posição daquele velho mundo.
As pessoas que acreditam na
importância dos antepassados
e dos poderes hereditários se
provam facilmente corruptíveis e moralmente cegas -ferramentas de Voldemort.
Os heróis de Rowling são os
híbridos, os desajustados, os de
sangue misto, todos eles portando cicatrizes de amor e perda: o meio-gigante Hagrid, a
"sangue-sujo" Hermione (cujos pais não eram magos), o empobrecido Ron, o órfão Harry.
Talvez definir Dumbledore
como gay seja uma nova maneira de criar outro rebelde diverso contra a ortodoxia.
A íntegra deste texto saiu no "New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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