São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2007

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+ Cultura

O armário de Hogwarts

Ao anunciar homossexualidade de Dumbledore, autora de "Harry Potter" reafirmou simbolismo do mago como "elogio à diferença"

EDWARD ROTHSTEIN

Em certos círculos, a notícia surgida em 19/10 sobre "Harry Potter" continua a inspirar tanto espanto quanto o hipogrifo, o animal de estimação meio cavalo, meio águia, de Hagrid. E o ruído da discussão na internet foi tão alto quanto o da conversa no salão de Hogwarts antes da cerimônia que define os destinos dos novos alunos.
Ao que parece Dumbledore, o sábio e encarquilhado mago que ganhou fama nos livros da série "Harry Potter", vai se unir a outras figuras de mídia, como Ênio e Beto, de "Vila Sésamo", e Tinky Winky, dos "Teletubbies". Para todos eles, surgiram questões de orientação sexual. E a criadora do personagem, J.K. Rowling, afirmou, em discurso no Carnegie Hall, que Dumbledore é gay.
Dumbledore? O maior mago da era, cuja firme condução de Hogwarts colocou o colégio interno britânico para aprendizes de feitiçaria na linha de frente da guerra contra o mal?
O mesmo homem que orientou Harry desde a infância, preparando o menino para sua última e maior batalha? Mas é possível que Rowling esteja equivocada sobre o personagem que ela mesma criou.
A escritora pode ter inventado Hogwarts e todos os magos que lá vivem, pode ter criado a mais influente série de livros de fantasia desde J.R.R. Tolkien e pode ter tecido seus feitiços ao longo de milhares de páginas e sete romances, mas os livros não parecem oferecer nenhum motivo convincente para sua afirmação a posteriori.
É claro que não seria inconsistente que Dumbledore fosse gay, mas aquilo que os livros relatam decerto não tornaria necessário que ele o fosse. A questão desvia atenções, e é por isso que jamais surge nos livros em si. Rowling pode pensar em Dumbledore como gay, mas não existe motivo para que outras pessoas o façam.
Sim, Dumbledore evidentemente reconhece que, no momento mais sombrio de sua vida, quando ele era adolescente e se sentia "aprisionado e desperdiçado", a aparição de um amigo carismático o "inflamou" e despertou nele sonhos fantásticos de poder e influência. "Dois meninos inteligentes e arrogantes compartilhando uma obsessão", ele relembra, resultaram em "dois meses de insanidade". Mas seu arrependimento durou o resto da vida.
Que insanidade foi essa? Caso tenha sido primordialmente um caso de atração sexual ou identidade sexual, a reação de Dumbledore se torna menos plausível. Ele sentiu que havia profundas traições latentes em seu comportamento e suas idéias durante o período.
Tinha problemas em aceitar seus problemáticos irmãos; via sua posição como mais importante do que era de fato; acreditava que os magos fossem superiores aos "trouxas". Essas atitudes tiveram conseqüências trágicas, que terminaram por alterar suas visões quanto à virtude e ao poder. Ser ou não gay é irrelevante.

Asceta típico
Quanto ao celibato pelo qual ele optaria, parece servir como eco a uma renúncia e uma devoção maiores. Afinal, é exatamente em torno disso que a literatura de fantasia gira. O mestre dos magos não é um ser sexual; ele deixou de lado suas preocupações pessoais e se dedica a uma missão maior. E, caso ceda à tentação do sexo, isso representaria sua queda, como aconteceu, reza a lenda, no caso de Merlin, o primeiro grande feiticeiro de nossa tradição, seduzido por uma das asseclas da Dama do Lago.
Há algo de bizarro quanto à idéia de que Dumbledore seja descrito como gay em sua maturidade, ou, aliás, que seja descrito como apaixonado. Por mais dificuldades e desejos terrenos que o aflijam, continua a ser um mago confinado aos limites do gênero fantástico, superior ao mundo que o cerca. Com certeza parece existir um impulso travesso na declaração de Rowling. Ela situa sua história épica em um colégio britânico, instituição há muito associada ao privilégio e à riqueza hereditários. Mas ao longo de toda a história ela solapa a posição daquele velho mundo.
As pessoas que acreditam na importância dos antepassados e dos poderes hereditários se provam facilmente corruptíveis e moralmente cegas -ferramentas de Voldemort. Os heróis de Rowling são os híbridos, os desajustados, os de sangue misto, todos eles portando cicatrizes de amor e perda: o meio-gigante Hagrid, a "sangue-sujo" Hermione (cujos pais não eram magos), o empobrecido Ron, o órfão Harry. Talvez definir Dumbledore como gay seja uma nova maneira de criar outro rebelde diverso contra a ortodoxia.


A íntegra deste texto saiu no "New York Times". Tradução de Paulo Migliacci.


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