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A verdade das mentiras
AUTOR DE "A MEMÓRIA DE PABLO ESCOBAR", QUE TRAZ FOTOS E DEPOIMENTOS INÉDITOS, JAMES MOLLISON DIZ QUE, AINDA HOJE, NEM A JUSTIÇA DA COLÔMBIA CONSEGUE SEPARAR O QUE É REALIDADE E O QUE É LENDA EM TORNO DA VIDA DO TRAFICANTE, MORTO EM 1993
EDUARDO GRAÇA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
DE NOVA YORK
Fotógrafo britânico
nascido no Quênia, James Mollison, 34, ficou conhecido do
grande público pelo
lançamento, há três anos, de
"James and Other Apes" [James e Outros Símios], uma reunião de retratos comoventes de
chimpanzés, gorilas e orangotangos que rendeu uma exposição no Museu de História Natural de Londres, além de um
festejado livro de mesmo nome
[ed. Chris Boot, 120 págs., US$
19,95, R$ 35].
Catorze anos depois da morte de Pablo Escobar, ele agora
se debruça sobre a trajetória do
capo do Cartel de Medellín em
"The Memory of Pablo Escobar" [A Memória de Pablo Escobar, ed. Chris Boot, 368
págs., US$ 60, R$ 104], que
apresenta pela primeira vez fotografias da intimidade do traficante colombiano.
Graças a uma coincidência,
Mollison, que havia viajado à
Colômbia para realizar um ensaio fotográfico sobre a narcoarquitetura (as mansões de
gosto duvidoso financiadas pelo dinheiro do tráfico de drogas), descobriu no edifício Monaco, principal casa de Escobar, bombardeada pelo Cartel
de Cali e hoje sede da Procuradoria-Geral de Medellín, uma
bolsa repleta de imagens, uma
compilação dos arquivos da polícia que não batiam com a imagem de extravagância que se tinha de Escobar.
"Havia algo de patético e esquálido. Claro, as imagens de
armas, brinquedos eróticos, esconderijos e telefones casavam
bem com aquela figura presente no imaginário popular, o clichê do clichê do Scarface de Al
Pacino. Mas havia também os
chinelos de Mickey Mouse, as
fotos de família, a de toda a
gangue jogando futebol ou bebendo e dançando na discoteca
da prisão por ele construída
-tudo parecia tão comum",
conta Mollison, em entrevista
dada por e-mail de sua casa em
Veneza, na Itália.
Às imagens sucederam as indagações: como aquele homem
conseguira o direito de construir sua própria prisão? Onde
estavam aquelas mansões luxuosas de que havia ouvido
tanto falar? Quem, de fato, era
Pablo Escobar? Sentado no antigo quarto de dormir do barão
da coca, Mollison conta que teve a certeza de que havia uma
discrepância entre o mito do
gângster, o "mais perigoso criminoso que o mundo jamais
viu", e a realidade.
Escobar lhe pareceu mais
complexo e menos glamouroso
do que imaginara anteriormente. Para tentar "juntar os
pedacinhos de sua história sugerida por aquelas fotografias",
Mollison entrevistou, ao lado
do jornalista Rainbow Nelson,
britânico radicado na Colômbia, mais de cem pessoas em
dois anos.
Colecionou imagens e depoimentos que tornam "A Memória de Pablo Escobar" um estudo contundente sobre a violência urbana, a debilidade do Estado e as contradições da sociedade civil latino-americana.
FOLHA - Escobar chegou a encabeçar a lista de procurados do FBI [polícia federal dos EUA], viveu recluso
durante anos e ainda assim seu livro
contém uma série riquíssima de
imagens. Quão difícil foi convencer
pessoas próximas a ele -família,
amigos, amantes- a ajudá-lo na tarefa de documentar a trajetória do
traficante?
JAMES MOLLISON - Logo no início
do projeto tomei a decisão de
que queria abraçar todos os lados da história: amigos, família,
a polícia, comparsas, as vítimas.
Mas foi extremante complicado encontrar pessoas que pudessem nos contar sua história,
até porque boa parte dos que
conviveram com ele havia sido
assassinada pela polícia ou por
seus inimigos.
De um modo geral, todos os
que combateram Escobar ficaram mais do que animados em
dividir suas histórias comigo.
Já amigos e família tiveram de
ser convencidos de que este seria um livro que abordaria outros ângulos além do clichê do
"mais rico e violento gângster
de todos os tempos", como
acontecera antes.
Foi importantíssimo falar diretamente com os envolvidos,
dado o grau de desinformação
que existe na Colômbia sobre
Escobar, incluindo a Justiça.
Você simplesmente não pode
confiar no que lê nos documentos do sistema judiciário ou nos
jornais. Decidir o que é de fato
verdadeiro é quase impossível.
Mesmo agora, com o processo de pacificação do país, é arriscado acreditar nas informações que são divulgadas porque
há muita gente interessada em
que a verdade nunca seja de fato revelada. Um dos entrevistados me disse que a verdade ainda é um produto muito perigoso na Colômbia.
FOLHA - Algumas das imagens
mostram os anos em que Escobar se
envolveu com a política...
MOLLISON - Esse é o único momento de sua vida, entre 1981 e
82, em que há abundância de
imagens.
Escobar era um mestre em
apagar as pistas de sua passagem por qualquer lugar e, de
maneira metódica, procurou
destruir todos os registros de
sua vida.
Mas, honestamente, o livro é
uma prova de que é impossível
fazer uma contabilidade visual
da vida de Pablo Escobar de
forma compreensiva.
Por isso, considero o que reunimos uma coleção fascinante
de fragmentos de sua vida.
FOLHA - É verdade que Escobar planejou se candidatar à Presidência da
Colômbia?
MOLLISON - Quem nos contou
sobre a candidatura foi Jamie,
primo de Escobar. Ele adorava
poder, e acho que o plano de se
tornar presidente da República
era mais uma fantasia -um
exercício sobre o que o poder o
traria de vantagens pessoais-
do que um objetivo concreto.
FOLHA - Quais são as principais revelações sobre ele apresentadas no
livro?
MOLLISON - Diria que o livro
preenche certas lacunas de sua
trajetória. Um exemplo foi nosso encontro com o rapaz que dirigiu a motocicleta no assassinato do então Ministro da Justiça, Lara Bonilla, executado
em 1984, deflagrando um dos
mais violentos capítulos da história colombiana.
Ele esmiuçou o planejamento do atentado, inclusive revelando detalhes mundanos, como a preparação da moto, que
teria de ter um botão para que a
luz do farol desligasse com apenas um clique.
Outra revelação, feita por Popeye (Jairo Velásquez, chefe de
segurança de Escobar e um dos
poucos sobreviventes do Cartel
de Medellín), esclareceu finalmente como se deu a destruição da sede da polícia secreta
colombiana, o DAS (Departamento Administrativo de Segurança), em 1989, causando a
morte de 89 pessoas.
Ela foi executada de forma
ousada, com um ônibus contendo oito toneladas de explosivos, o volante atado e um tijolo colocado no acelerador, sendo jogado contra o prédio.
FOLHA - Durante sua pesquisa,
chegou a perceber a importância do
Brasil para os cartéis colombianos,
não apenas como mais um mercado
consumidor mas também como rota de saída da droga para o hemisfério Norte?
MOLLISON - O livro é mais centrado nos primeiros anos do
tráfico de cocaína, incluindo o
período em que a droga passava
por Norman's Key, a ilha das
Bahamas que Carlos Lehder (o
visionário do cartel que adorava John Lennon) comprou para ser a parada estratégica do
tráfico, ao lado de Miami.
Também é importante mencionar que, embora rotulado
como um grande "barão da droga", Escobar foi de fato um
gângster exclusivamente interessado em se tornar o homem
mais poderoso de Medellín.
E Medellín estava no centro
da explosão da cocaína na virada dos anos 1980. Mas ele não
era um estrategista em busca
de novas rotas, e sim alguém interessado em oferecer proteção, capital e segurança para
aqueles que faziam o tráfico.
FOLHA - Em 7 de agosto, foi preso
em São Paulo o megatraficante colombiano Juan Carlos Abadía. Ele
não é um personagem do livro, mas
comprova o fôlego do tráfico na Colômbia ainda hoje. Algo mudou de
fato desde a morte de Escobar?
MOLLISON - Diria que a morte
de Escobar não foi sentida no
tráfico de cocaína, pois o preço
da droga caiu ainda mais desde
então. Um dos entrevistados
disse que nada mudou de fato, a
não ser que anteriormente os
corpos apareciam nas ruas e,
hoje, são enterrados.
Creio que a indústria mudou
no sentido de que Escobar fazia
parte da primeira geração de
traficantes, na virada dos anos
70 para os 80, aquela que acreditava ter descoberto "o petróleo branco", que seria legalizado mais dia, menos dia.
Ele mantinha um zoológico,
a maior atração turística da região, e colecionava carros antigos. Hoje os barões da droga colombianos dirigem Renault
Twingos para não chamar a
atenção. Escobar achava que
ele era como a família Kennedy, que fizera fortuna durante os anos da Lei Seca, nos EUA.
FOLHA - O sr. acredita que a tragédia do narcotráfico na América Latina pode ter fim?
MOLLISON - A criminalização da
cocaína está no núcleo do problema. Em uma de minhas
temporadas na Colômbia, durante o trabalho de pesquisa,
gastei US$ 10 mil com despesas
de aluguel de apartamento,
motorista, tradutor e alimentação. Com aquele dinheiro, compraria dez quilos de cocaína em
Medellín. Se eu os carregasse
comigo de volta à Itália e vendesse no mercado europeu, receberia 1 milhão.
Com tal margem de lucro,
sempre haverá gente disposta a
entrar no tráfico.
O mesmo digo para a violência: nos primeiros anos de domínio de Escobar, o cartel obtinha US$ 26 milhões por vôo! E
até hoje é usado para financiar
os paramilitares e as Farc. Assim, é quase impossível acabar
com a produção. A única possibilidade seria reduzir a demanda, e não há qualquer sinal de
que isso esteja ocorrendo.
Os consumidores de cocaína
no Ocidente não estão muito
preocupados com o fato de que
o consumo está ligado à violência na América Latina. Muitos
do consumidores são profissionais liberais que não acreditam
estarem prejudicando suas vidas ao cheirar cocaína.
FOLHA - O que nos leva à questão
da legalização...
MOLLISON - Acontece que essa
não é uma opção realista. Você
jamais conseguirá convencer a
maioria conservadora nos EUA
ou a classe média britânica de
que a legalização da cocaína seria um preço ideológico justo a
pagar pelos milhares de mortos
na América do Sul.
Veja bem, nenhuma das terríveis ações praticadas por Escobar pode ser justificada pelo
fato de que acreditava que a cocaína seria liberada a qualquer
momento; mas, se isso tivesse
ocorrido, o curso de eventos seria certamente outro.
FOLHA - Virginia Vallejo, repórter
que se tornou amante de Escobar e
foi entrevistada para o seu livro, lançou neste ano "Amando a Pablo,
Odiando a Escobar", em que revela
os laços de amizade entre o traficante e o atual presidente da Colômbia,
Álvaro Uribe -que negou ter tido
relação com os líderes do Cartel de
Medellín. O sr. se deparou com algo
semelhante em sua investigação?
MOLLISON - Não encontrei nada específico. Uribe foi, por
pouco tempo, prefeito de Medellín e logo em seguida governador de Antioquia, cuja
capital é Medellín. Ora, é quase certo que algum contato
ocorreu. Aparentemente Escobar esteve no enterro do
pai de Uribe.
FOLHA - Qual a principal diferença entre a Colômbia de Escobar e a
de Uribe?
MOLLISON - Houve um momento -da metade dos anos
80 à metade dos 90- em que
Escobar estava de fato em
guerra aberta contra o Estado, e toda a população colombiana foi afetada de modo
brutal. Não tenho dúvidas de
que para o público em geral e
para os turistas o cenário é
melhor hoje. Mas o problema
das drogas não mudou muito,
e a violência continua.
FOLHA - Em sua pesquisa, o sr.
ouviu de pessoas próximas a Escobar que ele era assertivo quando
falava da origem do boom do narcotráfico na Colômbia e culpava
os Peace Corps, uma agência federal do governo norte-americano,
pela popularização da droga...
MOLLISON - Não se tratou de
uma decisão deliberada, mas
a lógica era a de que quanto
mais voluntários chegavam à
Colômbia e "descobriam" a
cocaína, a nova droga, mais o
tráfico ganhava poder, pois
consideravam-na excitante e
a levavam para os EUA, criando de fato a demanda.
FOLHA - O sr. diria que personagens como Escobar e Fernandinho
Beira-Mar, no Brasil, são frutos
das falhas das sociedades democráticas estabelecidas na América
Latina durante a década de 80?
MOLLISON - Diria que Estados
debilitados, enfraquecidos,
oferecem mais facilidades para o trabalho de criminosos.
FOLHA - Livro editado, o sr. conseguiu responder a sua pergunta
central? Quem foi, afinal, Pablo Escobar?
MOLLISON - Não. Não posso
responder de fato a essa pergunta. Ele foi um homem diferente para cada pessoa que
passou por sua vida.
Para sua família, era um homem repleto de amor, idolatrado como um deus vivo, a
ser obedecido o tempo todo.
Seus parceiros no Cartel de
Medellín o temiam. As famílias de suas vítimas o odiavam
intensamente. Ele queria ser
o rei de Medellín. E o que
mais me assombrou foi sua
capacidade de se indignar
com qualquer ataque a seus
amigos e a sua família ao mesmo tempo em que cultivava
um descaso ímpar pela vida
das outras pessoas.
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