São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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Ponto de fuga

Cantos orientais

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Côndor" não é o pássaro dos Andes. Assim, com acento circunflexo como está na partitura original italiana, é o herói oriental da última ópera escrita por Carlos Gomes.
Há muito ainda o que estudar sobre o compositor campineiro. Por exemplo: quem é esse obscuro Mario Canti, autor do libreto tão belo, tão moderno em seu tom decadentista, cujas descrições de cúpulas douradas luzindo à luz de tochas místicas, de sultanas conduzindo quadrigas e vencendo leões, lembra tanto a pintura de Gustave Moreau e prenuncia a "Salomé" de Wilde? Esse poema inspirado, ao mesmo tempo extático, angustiado e voluptuoso, permitiu uma transformação na arte de Carlos Gomes.
O músico, que por essa época, sonhava em compor também um "Cântico dos Cânticos", se renovou inteiramente, a partir de si mesmo. Não aderiu à moda francesa, imperante na Itália de então, que marcou tanto Puccini. Manteve-se também no avesso do verismo, que irrompia com "Cavalleria Rusticana".
A música de "Côndor", tramada em requintes "fin-de-siècle", é espantosa; nunca banal, nunca desigual. Nada das melodias generosas, bem redondas, fáceis de aguardar e de assobiar, nada de "piccirella" ou de "forza indomita". Ao invés, um tecido finíssimo refletindo nova luz, cujos matizes suaves prenunciam óperas futuras, simbolistas, envoltas em crepúsculos "d'annunzianos", escritas por Montemezzi ou Zandonai. O espírito deliqüescente que habita "Pélleas" é, sem dúvida, o mesmo do qual emanou "Côndor".
Esse clima alcançaria Puccini no fim de sua carreira, mas tingindo-se de crueldade. É bastante evidente, por sinal, o quanto Côndor, como personagem, se parece com o futuro Calaf, na "Turandot". Bem mais denso e doloroso, porém, do que o seu gabola avatar pucciniano.

Boa pergunta
Por que cargas d'água Mario Canti, numa história passada em Samarcanda, deu ao seu herói o nome de Côndor? Uma pista poderia ser Marco Polo. Ele descreve a ilha de Condor (ou Condur ou Poulo Condor), situada próxima do Vietnã atual. Faz sonhar pela sua riqueza, seus elefantes, suas porcelanas e um rei que recusa a visita de estrangeiros, infeliz "porque não quer que ninguém saiba dos tesouros que ele tem".
Quem sabe o "luxo asiático" de "Côndor", o clima de erotismo, magnificência e barbárie não venha das miríficas descrições feitas pelo viajante veneziano?

Brilho
De onde saiu a trama de "Côndor" não se tem idéia de fato, pelo menos até agora. Isso não impede que a ópera seja uma obra-prima. O Teatro Municipal de São Paulo retomou recentemente a montagem de Manaus (2002), ampliada de modo a se adaptar à nova cena, bem maior. O resultado foi de uma suprema beleza. Abandonando qualquer realismo kitsch, o palco se abriu para uma alta poesia visual: véus estirados confinavam os amores, evocavam paisagens abstratas, distantes e insituáveis. Propulsavam os espectadores para o mundo muçulmano, atormentado e imaginário, que Carlos Gomes concebeu. A regência de Luiz Malheiro, o inventor dessa produção desde Manaus, fez sobressair todas as sutilezas da partitura, habitando-as por formidável intensidade. Um belo elenco, Vanucci, Senda, Tessuto, Gallisa, Siqueirolli, deram voz, alma e vida àqueles seres erráticos, perdidos em suas paixões.

Torto
A leitura de algumas críticas da época mostram que "Côndor" foi incompreendido. Eis uma passagem da "Gazzetta Musicale di Milano", 1º de março de 1891: "Mas como podia o compositor extricar-se naqueles solilóquios ou naqueles diálogos privados de qualquer interesse?... Tentou dar-lhes uma vida fictícia, sublinhando cuidadosamente as palavras, colorindo com jatos de luz os períodos: mas palavras ou períodos não podiam comover os ouvintes; por isso, para vergonha dos esforços do maestro, resultou um minucioso trabalho de pequenas, brevíssimas frases, uma inquietação geral de temas e modulações, que não conseguiram persuadir, porque na ação se tinha o vazio".
Curioso: essas observações retomam, de modo muito próximo, o que escreveu a crítica desnorteada quando "Pélleas et Mélisande", de Debussy, estreou.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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