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Ponto de fuga
Cantos orientais
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Côndor" não é o pássaro dos Andes.
Assim, com acento circunflexo como está na partitura original italiana, é o herói oriental da última ópera escrita por Carlos Gomes.
Há muito ainda o que estudar sobre o
compositor campineiro. Por exemplo:
quem é esse obscuro Mario Canti, autor do
libreto tão belo, tão moderno em seu tom
decadentista, cujas descrições de cúpulas
douradas luzindo à luz de tochas místicas,
de sultanas conduzindo quadrigas e vencendo leões, lembra tanto a pintura de Gustave Moreau e prenuncia a "Salomé" de
Wilde? Esse poema inspirado, ao mesmo
tempo extático, angustiado e voluptuoso,
permitiu uma transformação na arte de
Carlos Gomes.
O músico, que por essa época, sonhava
em compor também um "Cântico dos Cânticos", se renovou inteiramente, a partir de
si mesmo. Não aderiu à moda francesa, imperante na Itália de então, que marcou tanto Puccini. Manteve-se também no avesso
do verismo, que irrompia com "Cavalleria
Rusticana".
A música de "Côndor", tramada em requintes "fin-de-siècle", é espantosa; nunca
banal, nunca desigual. Nada das melodias
generosas, bem redondas, fáceis de aguardar e de assobiar, nada de "piccirella" ou de
"forza indomita". Ao invés, um tecido finíssimo refletindo nova luz, cujos matizes suaves prenunciam óperas futuras, simbolistas, envoltas em crepúsculos "d'annunzianos", escritas por Montemezzi ou Zandonai. O espírito deliqüescente que habita
"Pélleas" é, sem dúvida, o mesmo do qual
emanou "Côndor".
Esse clima alcançaria Puccini no fim de
sua carreira, mas tingindo-se de crueldade.
É bastante evidente, por sinal, o quanto
Côndor, como personagem, se parece com
o futuro Calaf, na "Turandot". Bem mais
denso e doloroso, porém, do que o seu gabola avatar pucciniano.
Boa pergunta
Por que cargas d'água Mario Canti, numa
história passada em Samarcanda, deu ao
seu herói o nome de Côndor? Uma pista
poderia ser Marco Polo. Ele descreve a ilha
de Condor (ou Condur ou Poulo Condor),
situada próxima do Vietnã atual. Faz sonhar pela sua riqueza, seus elefantes, suas
porcelanas e um rei que recusa a visita de
estrangeiros, infeliz "porque não quer que
ninguém saiba dos tesouros que ele tem".
Quem sabe o "luxo asiático" de "Côndor", o clima de erotismo, magnificência e
barbárie não venha das miríficas descrições
feitas pelo viajante veneziano?
Brilho
De onde saiu a trama de "Côndor" não se
tem idéia de fato, pelo menos até agora. Isso
não impede que a ópera seja uma obra-prima. O Teatro Municipal de São Paulo retomou recentemente a montagem de Manaus (2002), ampliada de modo a se adaptar à nova cena, bem maior. O resultado foi
de uma suprema beleza. Abandonando
qualquer realismo kitsch, o palco se abriu
para uma alta poesia visual: véus estirados
confinavam os amores, evocavam paisagens abstratas, distantes e insituáveis. Propulsavam os espectadores para o mundo
muçulmano, atormentado e imaginário,
que Carlos Gomes concebeu. A regência de
Luiz Malheiro, o inventor dessa produção
desde Manaus, fez sobressair todas as sutilezas da partitura, habitando-as por formidável intensidade. Um belo elenco, Vanucci, Senda, Tessuto, Gallisa, Siqueirolli, deram voz, alma e vida àqueles seres erráticos, perdidos em suas paixões.
Torto
A leitura de algumas críticas da época
mostram que "Côndor" foi incompreendido. Eis uma passagem da "Gazzetta Musicale di Milano", 1º de março de 1891: "Mas
como podia o compositor extricar-se naqueles solilóquios ou naqueles diálogos privados de qualquer interesse?... Tentou dar-lhes uma vida fictícia, sublinhando cuidadosamente as palavras, colorindo com jatos de luz os períodos: mas palavras ou períodos não podiam comover os ouvintes;
por isso, para vergonha dos esforços do
maestro, resultou um minucioso trabalho
de pequenas, brevíssimas frases, uma inquietação geral de temas e modulações, que
não conseguiram persuadir, porque na
ação se tinha o vazio".
Curioso: essas observações retomam, de
modo muito próximo, o que escreveu a crítica desnorteada quando "Pélleas et Mélisande", de Debussy, estreou.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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