São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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+ sociedade

Processo de modernização põe fim ao ciclo histórico do personagem criado por Monteiro Lobato, exemplo acabado de "homem cordial", que foi substituído pelo joão-ninguém do desenho da TV norte-americana

De Jeca Tatu a Homer Simpson

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Era uma vez um episódio da série "Os Simpsons" que causou comoção nacional. A família dos "típicos" americanos apatetados veio parar no Rio de Janeiro, andou entre macacos, miseráveis e traseiros avantajados. Foi quase um incidente de segurança nacional, mobilizando diplomatas, deputados e críticos culturais.
Afinal, depois de oito anos de FHC, privatizações, aberturas à realidade contemporânea, gente chique em Brasília, poliglotas em casa de trogloditas, como é que pode Homer Simpson nos achincalhar?
Mas nós já tínhamos a TV Globo para defender a "cultura brasileira". Mais recentemente a empresa fez até seminário em uma universidade católica paulista, com atores em mesas-redondas, sacando da manga Ariano Suassuna -que é quem sempre se saca quando se precisa de comédias de nacionalismo explícito. O circo estava armado. Guel Arraes, "Hoje É Dia de Maria", os lançamentos da Globofilmes, tudo veio para encher de cor local o esquema do lulismo neotucano: paz e amor, verde-e-amarelo, céu azul de brigadeiro para o prometido "espetáculo do crescimento". Há um dedinho de Homer nisso tudo.
As más-línguas dizem que esse súbito amor telúrico tem mesmo a ver com empréstimos do BNDES (que William Bonner, segundo o artigo do professor Laurindo Leal Filho para a revista "Carta Capital", cita como exemplo de coisas que o brasileiro-Homer não é capaz de entender, sobretudo, penso eu, porque ninguém quer lhe explicar), mas o fato é que eles não estão sozinhos nessa maré. Defensores das originalidades nacionais andaram chiando com a moda do Halloween (há bons episódios da turma de Homer sacaneando o Halloween), opondo a essa importação indevida a figura de nosso tão típico Saci.

Brasileiro a ser superado
O Saci é uma entidade sacramentada pelo gênio nacional-desenvolvimentista de Monteiro Lobato: o negro sem-terra, decepado de uma perna, sofrido, mas muito irônico e atrevido (eu gosto bastante do Saci).
O mesmo Lobato sacramentou o tipo ideal do brasileiro a ser superado na figura do Jeca Tatu, que é o que éramos até recentemente (pelo menos segundo gafe famosa de FHC). Salvo engano, a figuração socioistórica do Jeca era o "homem cordial" de Sérgio Buarque, que seria suprimido pelo processo de modernização. Enfim, o futuro chegou. De jecas nos tornamos homers simpsons.
Enquanto a Globo exercita a sua sociologia histórica baseada em tipos ideais, a ordem econômica segue mais xiita que o FMI, a "globalização" na forma do financismo tucano segue incólume e o PIB segue ladeira a baixo.
Mas os globalizados brasileiros da Globo, depois que o "cinema da retomada" exorcizou a "herança maldita" do cinema novo, pelo menos podiam "ver seu rosto" na seqüência lógica do bordão da era tucana: de gente que faz à gente que não desiste. E agora, quando voltava o Saci, vem o Bonner e diz que a gente que fez é no fundo a cara do Homer?
De minha parte, não vejo muito mal nisso (eu gosto bastante do Homer também). Os Simpsons descendem do melhor que a televisão norte-americana criou como crítica radical de sua auto-imagem heróica.

Agente 86
Um de seus predecessores mais notáveis é o Agente 86, morto recentemente. Morreu na hora certa, já que a sátira do herói americano da CIA hoje é uma raridade, quase uma subversão. Só existe em um outro desenho, "American Dad" (a falta de sutileza do trocadilho sonoro é obra dos autores da série), que aliás passa no mesmo canal de TV a cabo que os Homers brasileiros não podem pagar para ver.
Digam o que quiserem, mas, quando comparou o brasileiro médio (tucano ou lulista) com Homer, Bonner finalmente nos deu o aval que tanto esperávamos: entramos no Primeiro Mundo! Mas nosso lugar não é nem na Miami da era Collor nem na Washington do Consenso de Malan-Palocci. Somos sim parte dos campos da primavera, a Springfield dos monstrengos, bocós, sádicos e cínicos que vivem à sombra da catástrofe.

Cacos de sonhos
No momento em que Bonner nos fazia a revelação de nosso rosto e de nosso destino global para consumo próprio, seu jornal liberou três notícias em seqüência: um longo necrológio de (o ex-deputado) José Dirceu, uma breve notícia da CPI da Terra (na qual a direita latifundiária armou para fazer da constitucional invasão de terras improdutivas um ato de terrorismo como nem o presidente do país de Homer jamais imaginou) e o retrato mais bruto da barbárie, o incêndio de pessoas em ônibus no Rio que o bom Homer achincalhou tão docemente.
Ou seja: o fim melancólico de uma esquerda de aparelho que desmontou a esquerda petista antes de morrer pela boca; as cenas explícitas de luta de classes, na qual o MST, que ainda apóia Lula, e os pobres mais pobres recebem a sua "guerra preventiva"; e o caos "puro" e simples.
Não sei se Bonner colocaria esses acontecimentos no rol das "notícias complexas". Mas nem seu jornal (nem jornal nenhum), nem os defensores do Saci, nem as ONGs, nem os inteligentes descolados, ninguém junta uma coisa com a outra. Primeiramente porque, em tempos pós-modernos, juntar uma coisa com a outra é "marxista" demais, racional demais.
Segundo porque talvez os pedaços não se juntem mais mesmo e sejam apenas isso: cacos reais de sonhos que se quebraram de tal modo que todas as imposturas, de Homer e de Bonner, são possíveis. Eis aqui o retrato do Brasil a golpes de dialética global: na época em que os cientistas sociais falam em "brasilianização" do mundo, a Globo milita pela homerização do Brasil enquanto a esquerda vira direita, a direita vira extrema direita e os pobres colocam fogo nos pobres. A verdade está nos desenhos da TV paga.


Francisco Alambert é professor de história social da arte e história contemporânea na USP. É autor, com Polyana Canhête, de "Bienais de São Paulo - Da Era do Museu à Era dos Curadores" (ed. Boitempo).


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