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+ sociedade
Processo de modernização põe fim ao ciclo histórico do personagem criado por Monteiro Lobato, exemplo
acabado de "homem cordial", que foi substituído pelo joão-ninguém do desenho da TV norte-americana
De Jeca Tatu a Homer Simpson
FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA
Era uma vez um episódio da
série "Os Simpsons" que causou comoção nacional. A família dos "típicos" americanos apatetados veio parar no Rio de
Janeiro, andou entre macacos, miseráveis e traseiros avantajados. Foi
quase um incidente de segurança
nacional, mobilizando diplomatas,
deputados e críticos culturais.
Afinal, depois de oito anos de
FHC, privatizações, aberturas à realidade contemporânea, gente chique
em Brasília, poliglotas em casa de
trogloditas, como é que pode Homer
Simpson nos achincalhar?
Mas nós já tínhamos a TV Globo
para defender a "cultura brasileira".
Mais recentemente a empresa fez até
seminário em uma universidade católica paulista, com atores em mesas-redondas, sacando da manga
Ariano Suassuna -que é quem
sempre se saca quando se precisa de
comédias de nacionalismo explícito.
O circo estava armado. Guel Arraes,
"Hoje É Dia de Maria", os lançamentos da Globofilmes, tudo veio para
encher de cor local o esquema do lulismo neotucano: paz e amor, verde-e-amarelo, céu azul de brigadeiro
para o prometido "espetáculo do
crescimento". Há um dedinho de
Homer nisso tudo.
As más-línguas dizem que esse súbito amor telúrico tem mesmo a ver
com empréstimos do BNDES (que
William Bonner, segundo o artigo
do professor Laurindo Leal Filho para a revista "Carta Capital", cita como exemplo de coisas que o brasileiro-Homer não é capaz de entender,
sobretudo, penso eu, porque ninguém quer lhe explicar), mas o fato é
que eles não estão sozinhos nessa
maré. Defensores das originalidades
nacionais andaram chiando com a
moda do Halloween (há bons episódios da turma de Homer sacaneando o Halloween), opondo a essa importação indevida a figura de nosso
tão típico Saci.
Brasileiro a ser superado
O Saci é uma entidade sacramentada pelo gênio nacional-desenvolvimentista de Monteiro Lobato: o
negro sem-terra, decepado de uma
perna, sofrido, mas muito irônico e
atrevido (eu gosto bastante do Saci).
O mesmo Lobato sacramentou o
tipo ideal do brasileiro a ser superado na figura do Jeca Tatu, que é o
que éramos até recentemente (pelo
menos segundo gafe famosa de
FHC). Salvo engano, a figuração socioistórica do Jeca era o "homem
cordial" de Sérgio Buarque, que seria suprimido pelo processo de modernização. Enfim, o futuro chegou.
De jecas nos tornamos homers
simpsons.
Enquanto a Globo exercita a sua
sociologia histórica baseada em tipos ideais, a ordem econômica segue mais xiita que o FMI, a "globalização" na forma do financismo tucano segue incólume e o PIB segue
ladeira a baixo.
Mas os globalizados brasileiros da
Globo, depois que o "cinema da retomada" exorcizou a "herança maldita" do cinema novo, pelo menos
podiam "ver seu rosto" na seqüência
lógica do bordão da era tucana: de
gente que faz à gente que não desiste.
E agora, quando voltava o Saci, vem
o Bonner e diz que a gente que fez é
no fundo a cara do Homer?
De minha parte, não vejo muito
mal nisso (eu gosto bastante do Homer também). Os Simpsons descendem do melhor que a televisão norte-americana criou como crítica radical de sua auto-imagem heróica.
Agente 86
Um de seus predecessores mais
notáveis é o Agente 86, morto recentemente. Morreu na hora certa, já
que a sátira do herói americano da
CIA hoje é uma raridade, quase uma
subversão. Só existe em um outro
desenho, "American Dad" (a falta de
sutileza do trocadilho sonoro é obra
dos autores da série), que aliás passa
no mesmo canal de TV a cabo que os
Homers brasileiros não podem pagar para ver.
Digam o que quiserem, mas,
quando comparou o brasileiro médio (tucano ou lulista) com Homer,
Bonner finalmente nos deu o aval
que tanto esperávamos: entramos
no Primeiro Mundo! Mas nosso lugar não é nem na Miami da era Collor nem na Washington do Consenso de Malan-Palocci. Somos sim
parte dos campos da primavera, a
Springfield dos monstrengos, bocós,
sádicos e cínicos que vivem à sombra da catástrofe.
Cacos de sonhos
No momento em que Bonner nos
fazia a revelação de nosso rosto e de
nosso destino global para consumo
próprio, seu jornal liberou três notícias em seqüência: um longo necrológio de (o ex-deputado) José Dirceu, uma breve notícia da CPI da
Terra (na qual a direita latifundiária
armou para fazer da constitucional
invasão de terras improdutivas um
ato de terrorismo como nem o presidente do país de Homer jamais imaginou) e o retrato mais bruto da barbárie, o incêndio de pessoas em ônibus no Rio que o bom Homer achincalhou tão docemente.
Ou seja: o fim melancólico de uma
esquerda de aparelho que desmontou a esquerda petista antes de morrer pela boca; as cenas explícitas de
luta de classes, na qual o MST, que
ainda apóia Lula, e os pobres mais
pobres recebem a sua "guerra preventiva"; e o caos "puro" e simples.
Não sei se Bonner colocaria esses
acontecimentos no rol das "notícias
complexas". Mas nem seu jornal
(nem jornal nenhum), nem os defensores do Saci, nem as ONGs, nem
os inteligentes descolados, ninguém
junta uma coisa com a outra. Primeiramente porque, em tempos
pós-modernos, juntar uma coisa
com a outra é "marxista" demais, racional demais.
Segundo porque talvez os pedaços
não se juntem mais mesmo e sejam
apenas isso: cacos reais de sonhos
que se quebraram de tal modo que
todas as imposturas, de Homer e de
Bonner, são possíveis. Eis aqui o retrato do Brasil a golpes de dialética
global: na época em que os cientistas
sociais falam em "brasilianização"
do mundo, a Globo milita pela homerização do Brasil enquanto a esquerda vira direita, a direita vira extrema direita e os pobres colocam
fogo nos pobres. A verdade está nos
desenhos da TV paga.
Francisco Alambert é professor de história
social da arte e história contemporânea na
USP. É autor, com Polyana Canhête, de "Bienais de São Paulo - Da Era do Museu à Era
dos Curadores" (ed. Boitempo).
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