São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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Ponto de fuga

A sinfonia e o salame

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Parecia que, em 1991, ano do bicentenário de nascimento, não era possível celebrar mais do que se fez. Mas agora que as comemorações dos 250 anos de morte se iniciaram, não há mais limites. A Europa está com a febre Mozart. Chocolates Mozart são clássicos. Canetas, lápis, camisetas, canecas, copos são previsíveis. Vinhos e aguardentes também. Mas há ainda aventais, panos de prato, meias, calcinhas femininas... E papel higiênico com a cara do compositor estampada! Alguém, em Salzburgo, diz ter encontrado a fórmula de um salame, especialidade de um açougueiro que era vizinho do pequeno Mozart e foi um de seus primeiros mecenas: o salame Mozart adquiriu forma de violino.
Mozart é um clássico da musicoterapia. Hitchcock sabia disso: ele pôs o James Stewart deprimido de "Um Corpo que Cai" (1958) numa instituição que tratava seus pacientes com discos do suave Wolfgang.
Agora, pesquisadores afirmam que "A Flauta Mágica" torna as crianças inteligentes, e isso ainda no ventre materno. Outros selecionam apenas os agudos de certas obras que teriam o poder de despertar mentes meio adormecidas. Mozart virou guru, virou produto de devoção e de consumo, virou macumba.
Nessa enxurrada de maluquices, um belo projeto deu certo, batendo recordes de venda e obrigando o fabricante, Brilliant Classics, a contratar empregados em jornadas contínuas para satisfazer a demanda. Trata-se de um estojo com toda a obra do compositor por ótimos intérpretes; são 170 CDs. Custa por volta de 100, ou seja, menos de R$ 2 por disco. São 200 horas de música e o privilégio de ter o catálogo sonoro do gênio: uma festa.

Arte
Alguém calculou que um copista, trabalhando oito horas por dia e cinco dias por semana, levaria 30 anos para transcrever toda a obra de Mozart. É o tempo que o próprio autor levou para criá-las, já que começou a compor com seis anos de idade e morreu com 36. Os originais mostram poucas rasuras: sua facilidade foi miraculosa, mesmo numa época em que o "far presto" da escrita musical era comum.
Mas, enquanto seus colegas menores se repetiam, disfarçando chavões mais ou menos habilmente, Mozart se renovava em cada obra, sem trivialidades ou fraquezas.

Corcovado
Os românticos transformaram o "Réquiem" de Mozart numa obra mítica. O compositor, doente, às portas da morte, recebe a visita de um soturno mensageiro que lhe encomenda uma missa de defuntos. Puchkin, se não inventou, confirmou a tese de um Mozart envenenado por esse pobre Salieri, boa pessoa na verdade.
Mas é fato que o "Réquiem" foi uma encomenda; é fato que Mozart morreu antes de concluí-lo. Deixou indicações na partitura e, a partir delas, três de seus discípulos, sobretudo Süssmayr, terminaram a composição. Como nada havia do mestre para o "Libera Me", a última parte, Süssmayr contentou-se em repetir o "Kyrie" inicial. Malgrado os percalços, a obra, muito poderosa, tornou-se logo popular.
Em 1819, Sigismund Neukomm, considerado então um dos grandes compositores de seu tempo, nascido, como Mozart, em Salzburgo, amigo de sua mulher e professor de seu último filho, estava na corte de d. João 6º. O padre José Maurício pede-lhe que revise o "Réquiem" para uma execução no Rio de Janeiro. Neukomm faz mais: escreve um "Libera Me" final a partir de temas presentes na composição.
Esse "manuscrito do Rio de Janeiro", como está sendo conhecido, foi gravado agora por Jean-Claude Malgoire (Télérama). A interpretação é admirável. Ao ouvi-la, tem-se a impressão de que o "Réquiem", enfim, encontrou sua feição definitiva.

1003
O Teatro da Ópera de Roma apresentou "Don Giovanni", de Mozart, em montagem de Franco Zefirelli. É a visão a mais suntuosa, a mais ao pé da letra e a mais rasa também. Zefirelli saturou menos o palco do que em outras montagens suas, às vezes difíceis de suportar por causa de cenas paralelas e "pitorescas" que costuma inserir. Nem terrível nem denso, seu "Don Giovanni" foi, ao menos, bonito. Com intérpretes de alto nível, a profundidade ficou por conta da música. Já é muito.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail - jorgecoli@uol.com.br


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