São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006 |
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+ autores Abandonos de bebês e assassinatos de duas colegas de trabalho pela disputa de uma vaga evidenciam o drama de uma cultura que passou a instrumentalizar a vida para fins irrisórios Vidas em liqüidação
JURANDIR FREIRE COSTA
Nas últimas semanas, a imprensa noticiou com destaque o caso de mortes de
crianças por abandono
das mães e o assassinato de duas jovens por uma concorrente à vaga de
emprego em uma empresa.
Outra coisa é o homicídio que julgamos desproporcional ao objetivo visado pelo criminoso. Nesse caso, a lacuna que se abre entre a razão e o ato nos faz pensar que a relação entre direito à vida e potencialidade assassina transborda a racionalização possível do que ocorreu. Falamos, então, de monstruosidade da parte de quem mata ou de banalização do valor da vida. Aqui, porém, surge um obstáculo. É relativamente fácil caracterizar a monstruosidade de um crime. Dizemos que um crime é monstruoso se for praticado com requintes de crueldade ou se a vítima for ou estiver indefesa ao sofrer a agressão. Mais difícil, em contrapartida, é definir o que significa banalização do valor da vida. Duas acepções, em geral, monopolizam o sentido da expressão. Banalização do mal A primeira, inspirada no conceito arendtiano de banalidade do mal, faz da banalização sinônimo de uso instrumental da vida. A vida, afirma-se, é um valor absoluto. Utilizá-la como meio para alcançar fins de poder, prestígio ou gozo alheios ao seu possuidor é uma violação fatal ao ideário dos direitos humanos. A segunda filia-se às teses de alguns pensadores dos tempos contemporâneos, e é a que me parece mais adequada à análise dos fenômenos discutidos. Para tais pensadores, banalizar a vida significa não apenas instrumentalizá-la mas desatá-la dos vínculos transcendentes que garantem seu valor e seu sentido. Explicitando, nesta última acepção banalizar é mais do que instrumentalizar, pois há casos nos quais a instrumentalização da vida para fins exteriores à pura sobrevivência é moralmente justificável. Dispor-se a morrer na defesa de princípios éticos, por exemplo, raramente é algo visto como "banalização da vida". Ao contrário, na maioria das vezes, vemos nisso provas de abnegação, coragem, santidade, nobreza etc.; em suma, sinais de virtude e elevação moral. Banalizar a vida, portanto, quer dizer instrumentalizá-la, mas para finalidades irrisórias. Eis, segundo aqueles autores, o drama da cultura atual. Pois, conhecer o valor ou a derrisão da vida é um processo que independe dela. A vida nua, como pontuaram Arendt e Agamben, não é o juiz de seu próprio valor moral. Sua qualificação ética como bem supremo lhe é doada de "fora", por instâncias que lhe são transcendentes. O transcendente não é, de forma compulsória, o religioso, mas o que não coincide com a existência biológica do ser humano. Aglomerado metabólico Ou seja, transcendente é o que ultrapassa a "primeira natureza" do sujeito, a que está contida no equipamento instintivo prévio à expressão lingüística de sua capacidade imaginativa. Reduzida à "primeira natureza" -noção criada por Arnold Gehlen e explorada criativamente por Dany-Robert Dufour-, a vida se torna um mero aglomerado de processos metabólicos em interação com o meio. Ora, na presente crise de transcendência, a vida perdeu seu secular centro de gravidade valorativa, representado pela religião, pela política e pela moral privada familiar. Essas agências foram destronadas pelo impacto imaginário da ciência, da economia e da indústria do espetáculo. Atribuir valor à vida, hoje, requer um esforço permanente do sujeito para se deslocar de uma perspectiva para outra. E, ao deixarmos a órbita da hierarquia vertical Deus-Pátria-Família, na qual a vida desdobrava seu sentido do mais particular para o mais universal, do mais egoísta para o mais altruísta, caímos na vertigem dos sentidos pontuais, prescritos pela contingência "ad hoc" do sujeito e seu momento. A sólida pirâmide do valor da vida se liquefez nos pequenos, provisórios e errantes sentidos determinados pelos padrões científico-econômicos ou pelos interesses da cultura do espetáculo. Desse modo, em dadas circunstâncias, o sujeito pode sentir-se autorizado a julgar que um posto de trabalho vale mais do que a vida do competidor, sem que isso lhe pareça uma aberração moral. O mesmo pode ser dito do abandono de recém-nascidos pelas mães, do assassinato de rivais pela posse e comercialização de drogas, do assassinato de pais que se opõem a namoros de filhos ou de avós que negam dinheiro ao neto para o consumo de cocaína. Moral tradicional Bem entendido, o quadro cultural é mais complexo do que o sumário que apresentei. Manifestações indignadas sempre acompanham episódios do gênero, mostrando que os sujeitos reagem diante dessas vidas em liquidação orientados pela moral tradicional. O que me parece grave, entretanto, é que muitos deles não notam o quanto estão comprometidos com a moral que está na origem do que condenam e repudiam. Um exemplo citado por Dufour ilustra bem esse estado de coisas. Em 1995, 500 tomadores de decisão de alto nível político-econômico reuniram-se para debater a governabilidade de um mundo onde 80% da humanidade não se enquadra no regime de mercado. A solução proposta e aceita foi a de fornecer "um coquetel de entretenimento estupidificante e de alimentação suficiente que permita a manutenção do bom humor na população frustrada do planeta". A frieza e o cinismo da "solução" a la personagens de Orwell ou de Huxley mostra o que é evidente: a desregulamentação dos mercados corre em paralelo com uma desregulação do valor da vida, cujos efeitos nefastos são absolutamente desconsiderados pelos tomadores de decisão. Freud dizia que a condição original da civilização foi a interdição do parricídio, do incesto e do canibalismo. Os mentores das novas visões de mundo deveriam ouvir cuidadosamente a advertência. Imaginar que a surrada fórmula do "pão e circo" substitui o respeito pela dignidade da vida humana não é apenas esquecer que o grande Império Romano se esfarelou assentado sobre essa insensata crença; é agarrar-se a ondas para escapar de um naufrágio que eles próprios estão provocando. Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "O Vestígio e a Aura" (Garamond), entre outros. Texto Anterior: Biblioteca básica - Ana Maria Machado: O Mito de Sísifo Próximo Texto: + cultura: Ver para acreditar Índice |
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