São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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Oliveira Lima inspirou a empatia pelo objeto, e Franz Boas, a aversão a teorizações
Itinerário da formação

por Enrique Larreta

Na biblioteca de Gilberto Freyre em Apipucos estão pendurados dois retratos. O primeiro representa Manuel Oliveira Lima (1867-1928), o historiador e diplomata pernambucano. O outro, Franz Boas (1858-1943), o antropólogo alemão professor da Universidade Columbia e fundador da antropologia cultural americana. Esses dois autores são referência constante em seus livros e presença destacada em "Casa-Grande & Senzala". Com Oliveira Lima a relação começou cedo. Um dos primeiros opúsculos lidos por Gilberto Freyre por volta de 1913 foi a breve conferência de Oliveira Lima "Vida Diplomática". Dedicou a ele um artigo em sua primeira incursão jornalística juvenil, "O Lábaro", do Collegio Americano Baptista, onde publica aos 17 anos um artigo de um julgamento crítico singularmente seguro: "Oliveira Lima não olha, vê; tem uma sensibilidade de placa photographica (...). Oliveira Lima faz as suas escavações históricas como um tourista sobe as montanhas brancas da Suissa com uma Kodak. Com ella vae surprehendendo typos, aspectos". A força do historiador reside em sua capacidade evocativa. Nessas linhas de Gilberto Freyre sobre Oliveira Lima escritas aos 17 anos já temos contida a intuição central de toda sua obra, que tem como "Leitmotiv" a empatia ("empaty"), uma noção que ele mesmo considerava ter sido o primeiro a empregar em português. Seu primeiro ensaio de crítica cultural (1922) terá como objeto a obra de Oliveira Lima: uma análise de sua "História da Civilização" -cuja leitura lhe consumiu muitas horas em Nova York-, que ele publicou na "Revista do Brasil", dirigida por Monteiro Lobato. Oliveira Lima foi seu mentor por muitos anos, enviando de Washington livros de sociologia urbana, franqueando-lhe sua importante brasiliana e seus vínculos na América e na Europa, a entrada em Columbia, seus contatos diplomáticos em Lisboa e Paris. Relativamente distante do pai uma boa parte de sua vida, a mãe é a figura familiar central para Gilberto; Oliveira Lima foi um substituto da figura paterna de indubitável importância, carregado com toda a aura, para um adolescente imaginativo, de um pernambucano universal.

Figura emblemática
Foi por meio de Oliveira Lima que Gilberto Freyre conheceu Franz Boas e decidiu ir estudar na Columbia. Boas era um intelectual público importante em 21, conhecido por suas posições políticas radicais no debate racial e que gozava de grande prestígio no mundo acadêmico e cultural americano. Discutiu-se muitas vezes a relação de Boas com Gilberto Freyre, a ponto de colocar-se em dúvida sua condição de discípulo de Boas. A sua correspondência e outras fontes de época mostram contudo que Franz Boas foi uma figura emblemática para Gilberto Freyre em sua época de estudante no Texas, antes de ir fazer seu mestrado em Nova York. Gilberto acompanhou dois cursos na Columbia com Franz Boas e leu com atenção em Nova York a sua principal obra, "The Mind of Primitive Man", em 1921. Um de seus grandes amigos da época de estudante, Rudiger Bilden, com quem compartilhou inquietações intelectuais e passatempos boêmios em seu apartamento do Village, foi quem manteve vivos os vínculos com a Columbia e com Boas durante os anos 20. Rudiger Bilden viajou ao Brasil em 1926, onde permaneceu por um ano, para realizar sua pesquisa sobre raça com uma bolsa da Columbia. Gilberto destaca a importância das idéias de Bilden para "Casa-Grande" em várias referências. Por sua parte, Franz Boas, em seu livro "The Anthropology and Modern Life" (1930), escreve que "a percepção de raça entre brancos, negros e índios no Brasil parece ser completamente diferente da forma como nós a percebemos. No litoral há uma abundante população negra. A mestiçagem de índios é também muito marcante. A discriminação entre essas três raças é muito menor do que entre nós, e os obstáculos sociais para a mestiçagem ou para o avanço social não são notáveis".

Influência sobre Boas
Ele atribui essa opinião a um informe de Rudiger Bilden. Nesse sentido, pode-se dizer que, paradoxalmente, Gilberto Freyre teve influência indireta sobre Franz Boas. Tanto nesse parágrafo como no conjunto da discussão de Boas sobre raça, cultura e processos culturais, o ponto de ataque será a antropologia física, biologista e determinista, e a idéia central, a de relativizar as diferenças raciais a partir do ponto de vista da cultura. Por sua vez, o agnosticismo científico de Boas e sua aversão à teorização abstrata, um método destrutivo, para usar um conceito de seu discípulo Edward Sapir, está presente também em Gilberto Freyre e em sua predileção pela descrição e sua aversão às generalizações. Mas, assim como Boas redefiniu o tema da raça a partir da perspectiva de uma visão rica e complexa do papel da cultura -e isto era radical nos anos 20 e 30-, uma operação similar foi a realizada com "Casa-Grande" no começo dos anos 30 em relação à interpretação da cultura nacional -essencialmente, a consideração da miscigenação racial como uma potencial contribuição civilizatória, e não mais como uma deficiência ou uma barreira intransponível, como vinha sendo discutida até aquele momento pela maioria dos pensadores latino-americanos e brasileiros. Ao contrário, Gilberto considerou a cultura mestiça um componente positivo, o indicador de uma superioridade. Nisso, Gilberto se inspirou em parte na mensagem de uma de suas leituras da época, Randolph Bourne, que em seu famoso artigo "Transnational America" destacou a superioridade da América sobre a Europa devido à mistura cultural contraposta aos provincialismos das culturas nacionais européias. Por outro lado, nas percepções de Gilberto do poder da cultura, a influência de ensaístas como Walter Pater, Lafcadio Hearn e o esteticismo do fim-de-século -Nietzsche e Simmel, mas também George Moore e Huysmans- inspiraram um vívido senso de uma dimensão erótica e afetiva da cultura, destacando seus aspectos sensoriais, estéticos e concedendo um grau importante à subjetividade. "Casa-Grande" é uma erótica da cultura brasileira no sentido programático apresentado por Susan Sontag em "Against Interpretation": "Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte". A própria experimentação sexual de Gilberto Freyre, da qual dão amplamente conta seus diários pessoais publicados parcialmente em "Tempo Morto e Outros Tempos", contribuiu sem dúvida para sublinhar sua singular perspectiva -ausente em estudos de interpretação social da época. Não é uma casualidade, sem dúvida, que tenha chamado a atenção de um Roland Barthes, em 1953, por seu modo livre de referir-se às dimensões do prazer e da sensualidade. Por outro lado, o próprio Barthes escreveu no fim da vida (1979) um diário pessoal, "Incidents", com destacadas afinidades com o gosto de Gilberto pela singularidade do detalhe biográfico íntimo.

Prenúncios da "Casa-Grande"
Nos anos 20, "Casa-Grande" aparece prefigurada em textos como a tese de mestrado "Vida Social no Brasil em Meados do Século 19", que é já uma busca do tempo perdido da família brasileira e na qual já adianta opiniões sobre a escravidão e a vida familiar que vão estar presentes naquele livro e em "Sobrados e Mucambos".
Em 1925, no "Livro do Nordeste", em dois artigos -um deles, "Aspectos de um Século de Transição no Nordeste do Brasil", incorporado depois a "Região e Tradição"-, boa parte dos temas de "Casa-Grande" encontram-se já presentes: a escravidão, a mistura de raças, a socialização da mulher e do homem na família patriarcal assim como uma considerável parte das fontes documentais. Nesses ensaios já comparece também o estilo vívido e evocativo de apresentação, o gosto pela transcrição de documentos e a visualidade do idioma.
Mas a representação do sistema escravista é menos incisiva que em "Casa-Grande", e algumas vezes o texto dá a impressão de estar escrito do ponto de vista da escravocracia, como, por exemplo, quando chama as rebeliões de escravos de casos de "insolência coletiva". A visita, em 1926, de Rudiger Bilden e os trabalhos para a instalação no Recife da primeira cátedra de sociologia levaram Gilberto Freyre a uma atualização de suas leituras em ciências sociais, que serão parte da infra-estrutura do livro que vai publicar anos mais tarde. Até 1930 o plano da obra não se encontra definido. Gilberto, desde 1926, pensa em escrever uma história do menino brasileiro, um projeto que concebeu em Nova York em 1921 e continuou elaborando em sua visita a Nurembergue, a "cidade dos brinquedos", em 1922; em Lisboa, pesquisas de arquivo são realizadas ainda com vistas a esse projeto.

Estada em Stanford
Tudo muda em 1930, o exílio, a fugaz passagem por Salvador e pelas costas da África na viagem a Lisboa, o acesso a novas bibliotecas na capital portuguesa e, sobretudo, na Universidade de Stanford. Os cadernos manuscritos com os cursos de Gilberto Freyre realizados em Stanford mostram a importância temática e bibliográfica dessa estada para o plano de "Casa-Grande & Senzala", especialmente as leituras sobre a história da colonização portuguesa. Algumas citações e referências de "Casa-Grande" são transcrições diretas de apontamentos de curso. Mas talvez todo livro requeira um acontecimento que cristalize sua concepção. E, no caso de "Casa Grande", este foi, na minha opinião, a carta enviada por Henry L. Mencken (1860-1956), o famoso crítico cultural americano. É durante sua estada na Califórnia que ele renova o contato com Mencken. Este recebe de Gilberto sua tese de mestrado, a elogia e lhe sugere que a amplie. Todas as febris leituras, pesquisa de arquivos, os múltiplos projetos e os trabalhos parciais tomam forma nesse momento. A história do menino é substituída pelo novo livro "Casa-Grande & Senzala", que tardiamente será batizado com esse nome. Ainda em novembro de 1932, quando já haviam sido concluídos dois capítulos, o livro levava o título de "Vida Sexual e de Família no Brasil Escravocrata" -nome bastante semelhante ao de sua tese de mestrado, o que revela a proximidade de inspiração de ambos os textos. O contexto de época deve ser destacado: 1930 é um momento decisivo na história moderna do Brasil e cria os espaços para pensar de maneira renovada o nacional. As reflexões iniciadas pelos modernistas e pelos intelectuais da década de 20 se aprofundam e renovam extensamente a agenda. A protoglobalização dos anos 30 e a emergência de novas nações periféricas darão o contexto para os grande ensaios de interpretação nacional (Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.). "Casa-Grande & Senzala" será uma expressão da ideologia da cultura nacional? Sim, na medida em que o ponto de encontro dessas produções diversas é o balanço de uma cultura e a reflexão sobre o passado como instalação dos alicerces de um porvir em marcha. Não, na medida em que uma obra como essa possui outras dimensões e é mais que um estudo do caráter nacional no sentido de Ruth Benedict. O estudo possui outro vôo histórico, emprega materiais econômicos e sociais que agregam pistas para novas pesquisas da formação histórica do Brasil -vida cotidiana, alimentação, família, sexualidade-, além de reformular o tema da raça.

Claros-escuros
A combinação de materiais aparentemente diversos que adquirem um novo sentido ao serem postos em combinação de uma maneira nova caracteriza em um grau elevado a operação da imaginação sociológica. "Casa-Grande" é um esforço de representação de todo um conjunto civilizatório, cujos claros-escuros se projetam sobre os séculos seguintes do Brasil. É, em suma, um clássico. Mas o supremo teste de todo clássico é o grau de amolação que nos causa sua leitura. Na quantidade de nossos bocejos e na sensação de que o livro cai de nossas mãos, fica registrada nossa distância em relação ao texto consagrado.
Em certos momentos alguns clássicos fecham-se sobre si mesmos e transformam-se em parte irrevogável do passado: entediam, porque já não nos dizem nada. É legível hoje "Casa-Grande & Senzala"? É uma pergunta que temos a obrigação de nos fazer. Penso de fato que sim. Em parte por sua abordagem original do complexo tema das inter-relações entre raça e cultura, uma questão que ainda está em debate na pós-modernidade. As interpretações de Gilberto Freyre conservam seu interesse independentemente da validade que se atribua a elas. Sua leitura revive espectros do passado que não conseguimos purgar definitivamente. E o faz com uma maestria literária que assegura a "Casa-Grande & Senzala" um lugar entre as grandes obras da imaginação histórica moderna.


Enrique Larreta é antropólogo e diretor do Instituto do Pluralismo Cultural da Universidade Candido Mendes. Com Guillermo Giucci, está escrevendo uma biografia de Gilberto Freyre.


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