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Ponto de Fuga
Meninos, ouvi
O maestro Rozhdestvensky tem reputação de afabilidade
e bom humor;
isso não
o impediu
de anular
um concerto
em Paris, com a
Orquestra Nacional
da França,
por causa
de desatenção
e indisciplina
dos músicos
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Há um romance de John
Updike [1932-2009] sobre a arte americana do
pós-guerra: "Seek My Face"
("Busca o Meu Rosto", Companhia das Letras). Disfarça Jackson Pollock sob o nome de
Zack e traça uma paisagem vívida daqueles anos criadores
nos Estados Unidos.
Fala também sobre a memória (a tradução é pessoal): "Que
são essas coisas, em nosso passado, que nos obstinamos a
querer reencontrar, que tesouro perdido em nossa precipitação em viver o instante, em viver os dias, que, uma vez transcorridos, adquirem a majestade de um testemunho eterno
-eu estava lá..."
"Eu estava lá", o mesmo
"meninos, eu vi", de Gonçalves
Dias: "Se alguém duvidava/ Do
que ele contava,/ Dizia prudente: -"Meninos, eu vi!'".
Numa história de Alejo Carpentier, em passagem impossível de localizar agora, certa jovem ridiculariza a ópera, que,
na época, a moda intelectual
considerava como gênero
"out", brega, ridículo. Enquanto ouve as zombarias, o narrador de Carpentier pensa que alguns dos momentos mais memoráveis de sua vida ocorreram quando ele, sentado numa
poltrona de teatro, entregava-se às emoções da ópera.
Foice
Essas associações à deriva
brotaram por causa dos dois últimos concertos da Osesp, dirigidos por Gennady Rozhdestvensky, maestro lendário de
nome complicado.
Há certos intérpretes que viram lendas em vida, não apenas
por serem prodigiosos, na mesma transcendência de seus
mais altos colegas (assim, no
campo da regência, um Muti,
um Abbado, um Masur, um
Osawa).
É que eles se envolveram de
maneira íntima com a criação
musical e com a história.
Rozhdestvensky tem 79
anos. Viveu longas décadas na
União Soviética; conheceu os
tempos tremendos de Stálin, a
tirania estética de Jdanov, ditador do realismo socialista.
Era
de censuras, de repressões, de
perseguições por qualquer motivo, desde ódios pessoais até
preconceitos generalizados
contra judeus ou contra quem
tinha origem "burguesa",
acompanhadas pelas mais estreitas tiranias ideológicas.
Foi, porém, um período no
qual a música floresceu na
União Soviética como em poucos lugares do mundo.
Rozhdestvensky, amigo próximo de Shostakovich, de Prokofiev, Schnittke, Gubaidulina,
que dedicaram a ele obras de
primeira importância; de Oistrakh, de Gilels, de Richter e
Rostropovitch, com quem se
associou em interpretações
memoráveis, foi um protagonista dessa época paradoxal.
Martelo
Rozhdestvensky segue a partitura, mesmo em obras que regeu dezenas, centenas de vezes.
Belo escrúpulo: a melhor memória não garante o bom maestro nem está isenta de falhas.
Seus gestos são discretos,
mas determinantes. Tem reputação de afabilidade e bom humor. Isso não o impediu de
anular um concerto em Paris,
com a Orquestra Nacional da
França, por causa de desatenção e indisciplina dos músicos.
Linhagem
Rozhdestvensky trouxe consigo a família. Sua mulher, Viktoria Postnikova, robusta como
uma camponesa russa, a trança
caindo nas costas em comprimento impressionante, é incomparável pianista, capaz de
coloridos surpreendentes e sutis mesmo em meio à virtuosidade mais assustadora.
E seu filho, Sasha Rozhdestvensky, jovem violinista, sensível e perfeito.
Os programas foram todos
russos e levaram a Sala São
Paulo para a estratosfera. Mas o
trio tem um repertório internacional muito vasto: Mahler,
Bruckner, Brahms, Busoni, Honegger, Nielsen, entre tantos,
que interpretaram pelo mundo
e gravaram em disco.
jorgecoli@uol.com.br
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