São Paulo, domingo, 12 de abril de 2009

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Ponto de Fuga

Meninos, ouvi

O maestro Rozhdestvensky tem reputação de afabilidade e bom humor; isso não o impediu de anular um concerto em Paris, com a Orquestra Nacional da França, por causa de desatenção e indisciplina dos músicos

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Há um romance de John Updike [1932-2009] sobre a arte americana do pós-guerra: "Seek My Face" ("Busca o Meu Rosto", Companhia das Letras). Disfarça Jackson Pollock sob o nome de Zack e traça uma paisagem vívida daqueles anos criadores nos Estados Unidos.
Fala também sobre a memória (a tradução é pessoal): "Que são essas coisas, em nosso passado, que nos obstinamos a querer reencontrar, que tesouro perdido em nossa precipitação em viver o instante, em viver os dias, que, uma vez transcorridos, adquirem a majestade de um testemunho eterno -eu estava lá..."
"Eu estava lá", o mesmo "meninos, eu vi", de Gonçalves Dias: "Se alguém duvidava/ Do que ele contava,/ Dizia prudente: -"Meninos, eu vi!'". Numa história de Alejo Carpentier, em passagem impossível de localizar agora, certa jovem ridiculariza a ópera, que, na época, a moda intelectual considerava como gênero "out", brega, ridículo. Enquanto ouve as zombarias, o narrador de Carpentier pensa que alguns dos momentos mais memoráveis de sua vida ocorreram quando ele, sentado numa poltrona de teatro, entregava-se às emoções da ópera.

Foice
Essas associações à deriva brotaram por causa dos dois últimos concertos da Osesp, dirigidos por Gennady Rozhdestvensky, maestro lendário de nome complicado. Há certos intérpretes que viram lendas em vida, não apenas por serem prodigiosos, na mesma transcendência de seus mais altos colegas (assim, no campo da regência, um Muti, um Abbado, um Masur, um Osawa).
É que eles se envolveram de maneira íntima com a criação musical e com a história. Rozhdestvensky tem 79 anos. Viveu longas décadas na União Soviética; conheceu os tempos tremendos de Stálin, a tirania estética de Jdanov, ditador do realismo socialista.
Era de censuras, de repressões, de perseguições por qualquer motivo, desde ódios pessoais até preconceitos generalizados contra judeus ou contra quem tinha origem "burguesa", acompanhadas pelas mais estreitas tiranias ideológicas.
Foi, porém, um período no qual a música floresceu na União Soviética como em poucos lugares do mundo. Rozhdestvensky, amigo próximo de Shostakovich, de Prokofiev, Schnittke, Gubaidulina, que dedicaram a ele obras de primeira importância; de Oistrakh, de Gilels, de Richter e Rostropovitch, com quem se associou em interpretações memoráveis, foi um protagonista dessa época paradoxal.

Martelo
Rozhdestvensky segue a partitura, mesmo em obras que regeu dezenas, centenas de vezes. Belo escrúpulo: a melhor memória não garante o bom maestro nem está isenta de falhas. Seus gestos são discretos, mas determinantes. Tem reputação de afabilidade e bom humor. Isso não o impediu de anular um concerto em Paris, com a Orquestra Nacional da França, por causa de desatenção e indisciplina dos músicos.

Linhagem
Rozhdestvensky trouxe consigo a família. Sua mulher, Viktoria Postnikova, robusta como uma camponesa russa, a trança caindo nas costas em comprimento impressionante, é incomparável pianista, capaz de coloridos surpreendentes e sutis mesmo em meio à virtuosidade mais assustadora. E seu filho, Sasha Rozhdestvensky, jovem violinista, sensível e perfeito. Os programas foram todos russos e levaram a Sala São Paulo para a estratosfera. Mas o trio tem um repertório internacional muito vasto: Mahler, Bruckner, Brahms, Busoni, Honegger, Nielsen, entre tantos, que interpretaram pelo mundo e gravaram em disco.

jorgecoli@uol.com.br


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