|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+Livros
Memória emocional
Professor
em Yale, o teólogo
Miroslav Volf
fala de seu novo livro e diz que
o esquecimento
também
é necessário
para superar
o mal
A memória
de males
sofridos confere energia
e legitimação
ao conflito
|
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos mais influentes nomes da
teologia contemporânea, o croata
Miroslav Volf fala,
na entrevista abaixo, sobre seu
livro "O Fim da Memória".
Com rico repertório filosófico, literário e religioso, o livro é
pontuado por lembranças autobiográficas. O hoje professor
da Universidade Yale (EUA)
evoca os longos interrogatórios
a que foi submetido -sob o comando de um oficial de segurança que ele chama de "Capitão G."- durante o serviço militar obrigatório que prestou
em 1984, na então Iugoslávia
comunista.
E é justamente a partir das
angústias e sequelas da experiência de perseguido político
que Volf investiga os meandros
da "memória da maldade sofrida por alguém que não deseja
nem odiar nem ignorar, mas
sim amar o malfeitor".
FOLHA - Seria realista ou mesmo
"humano" dizer a um pai que ele
deve perdoar e amar os assassinos
de sua filha? O sr. perdoou realmente o capitão G.?
MIROSLAV VOLF - Sim, perdoei o
capitão G., mas o perdão não é
simplesmente algo que se faz
de uma só vez. Ele acontece
quando nos movemos em espiral, por assim dizer, em volta da
memória do fato que nos feriu.
Perdoamos parte do que
aconteceu, mas não o todo; perdoamos, e então retiramos nosso perdão em momentos de ira,
e assim por diante. O perdoar é
sempre um processo, e frequentemente um processo
marcado por reveses inesperados. Não, nunca devemos dizer
a um pai que ele "deve" perdoar
nem pedir para outros para
perdoar (embora seja verdade
que "deveríamos" perdoar).
O perdão é uma dádiva, e, se é
dado, é dado livremente.
FOLHA - Por que existe, em suas
palavras, esta "obsessão" do mundo contemporâneo pelA recordação? O 11 de Setembro é um exemplo nesse sentido?
VOLF - Hoje construímos e interpretamos nossa identidade
em termos narrativos: somos
aquilo que nos aconteceu, o que
fizemos, o que outros fizeram a
nós, como reagimos ao que outros fizeram a nós etc.
Se isso é o que somos, então a
memória é essencial. A memória, nesse caso, é nossa identidade; se você perde sua memória, perde seu eu.
Quanto maior é o impacto
que um ato tem sobre uma pessoa, mais é significativo para
nós nos lembrarmos dele. É por
isso que juramos nunca esquecer acontecimentos como o 11
de Setembro.
Entretanto frequentemente
fazemos mau uso dela.
A memória do 11 de Setembro, especialmente da maneira
como foi manipulada e empregada pela administração George W. Bush, é um caso quase
emblemático de quão danosa
ela pode ser.
Cada conflito -quer aconteça numa sala de jantar ou num
gabinete do governo- é movido pela memória. A memória
de males sofridos confere energia e legitimação ao conflito.
Ao mesmo tempo em que nos
asseguramos de não nos expor
à violência de outros, podemos
fazer da memória dos sofrimentos que nos foram impostos pontes que nos unem aos
outros e fontes de motivação
para consertar o mundo.
FOLHA - O mundo contemporâneo
é marcado por muitas formas de
violência e traumas, além da proliferação de terapias para lidar com
elas. Em sua opinião, sem um contexto religioso de interpretação desses males, essas terapias tendem a
fracassar?
VOLF - Embora algumas terapias sejam contraproducentes,
muitas são úteis -dentro de
seus limites. Mas frequentemente elas não vão suficientemente longe.
Por exemplo, elas frequentemente tratam apenas dos indivíduos, tentando ajudá-los a
enfrentar as feridas que sofreram. Mas precisamos consertar
também os relacionamentos,
mesmo os relacionamentos
que nos feriram. E nós mesmos
não vamos nos curar a contento
se nossos relacionamentos não
forem consertados.
FOLHA - Como essa perspectiva
teológica sobre o esquecer e o perdoar aqueles que cometem o mal influencia o conceito e a prática da lei
e da justiça na sociedade secular?
VOLF - O perdão é o oposto da
retaliação, mas não é oposto do
castigo. Pode-se punir por outras razões que não apenas a de
cobrar o castigo para compensar pelo mal feito. Uma pessoa
pode ser perdoada e ainda assim cumprir pena!
E uma coisa muito importante: o perdão não é o oposto da
justiça. Perdoar significa afirmar o que exige a justiça, porque é afirmar que um malfeito
aconteceu e que é um malfeito.
É claro que perdoar também
significa não nutrir ressentimento pelo malfeitor devido ao
malfeito dele.
FOLHA - De que modo "A Divina
Comédia" de Dante ilustra o conceito cristão de memória?
VOLF - Como muitos grandes
escritores espirituais e teólogos
ao longo da história, Dante tinha consciência de que, por estranho isso possa nos parecer, a
memória do mal representa
uma espécie de triunfo do mal.
Se o mal for eternamente recordado, ele continuará a viver
eternamente.
É por isso que Dante escreve
que na entrada do mundo que
está por vir -na entrada do paraíso- passaremos por dois
rios, o rio do esquecimento dos
malfeitos e o rio da recordação
das boas ações.
FOLHA - Soa estranho ver Freud
mobilizado como defensor de algum "esquecimento" de sofrimentos passados. O sr. poderia explicar
esse ponto?
VOLF - Estou usando uma observação simples, mas importante feita por Freud e também
por muitos outros (mas o que é
significativo é que Freud, cujo
trabalho inteiro girou em torno
de memórias reprimidas, não a
repudiou).
A observação é a seguinte: a
memória se mantém viva pela
energia emocional. Quando essa energia emocional deixa de
existir, a memória vai pouco a
pouco desaparecendo.
Isso é compreensível, porque
sempre fazemos algo com as
memórias (sempre nos lembramos "para quê" -por exemplo,
para que possamos encontrar
nossas chaves, para que saibamos como chegar a um lugar,
para que possamos evitar o perigo etc.), e, quando perdemos a
razão para fazer o que precisamos fazer com as memórias, as
memórias podem perder força
e desaparecer.
Isso está estreitamente vinculado ao que quero demonstrar quando digo que a não-recordação coroa o perdão.
Depois de termos perdoado,
depois de o relacionamento ter
sido consertado, as memórias
dos males que nos foram feitos
perdem combustível emocional, porque não funcionam
mais, e podem desaparecer.
Tradução de Clara Allain.
O FIM DA MEMÓRIA
Autor: Miroslav Volf
Editora: Mundo Cristão (tel. 0/xx/11/
2127-4147)
Quanto: R$ 29,90 (256 págs.)
Texto Anterior: Receita de chocolate do século 17 Próximo Texto: +Lançamentos Índice
|