São Paulo, domingo, 12 de abril de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A cumplicidade do público


Traços mais comerciais da MPB são a decorrência previsível de seu sucesso avassalador
LUIZ TATIT
especial para Folha

O nosso mercado de disco, que sempre foi farto, tornou-se exuberante. E quem tomou o poder foi a música brasileira, contrariando todas as previsões que se fazia há duas décadas e todas as tendências que apontavam para a plena hegemonia da língua inglesa também nesse setor. A aldeia se impôs à globalização de tal forma que o produto regional vem engolindo sistematicamente o internacional e provocando, com isso, uma reviravolta nos projetos das multinacionais sediadas no país.
As estrelas da axé music e os grupos de pagode vendem no Brasil pelo menos dez vezes mais do que os nomes mais lucrativos da música pop internacional, como Bon Jovi, Whitney Houston ou Michael Jackson. O rock brasileiro também vive o seu apogeu no plano dos números com a recente investida dos competentes Titãs.
E agora? O que fazer com essa inversão de expectativa? Será que o sonho começou e não estamos preparados para interpretá-lo? Dizer que as canções que estão no topo das paradas não representam a música brasileira é quase uma insanidade. Certamente não representam toda a gama de variedades que caracteriza o repertório nacional, mas, por ironia, constituem o gênero da atualidade mais calcado nos motivos populares que já vinham, há algum tempo, animando as festas regionais em diversos pontos do país. E o espetáculo eletrizante exibido no auge do "Segura o Tchan" foi a solução brasileira de mercado que esmagou a concorrência norte-americana numa área em que esta foi sempre imbatível: na atuação de palco (Madonna, Prince, Jackson etc.). Diante de tamanho sucesso, a exacerbação e a estereotipagem dos traços considerados mais comerciais são apenas decorrências previsíveis e inevitáveis no mundo dos negócios. Mas isso é outra história.
O objetivo dessas linhas não é constatar um fenômeno irrefutável, mas refletir sobre uma outra tendência atual -menos óbvia- do mercado de disco, que, ao lado dos lançamentos explosivos, investe também na permanência dos artistas. Tudo ocorre como se o mundo financeiro, em interação com o mundo artístico, captasse e ao mesmo tempo influenciasse um ritmo de alternância cultural que serve para manter vivas e atuantes todas as dicções (modos de compor e de cantar) que formam o universo musical da nossa sociedade. Em outras palavras: não se pode cultivar um só gênero por muito tempo, pois a sociedade é complexa e precisa dos gêneros abandonados para se reconhecer integralmente.
O predomínio, durante um bom tempo, da música norte-americana no Brasil, por mais que se atrelasse à tendência do imperialismo cultural até então considerada inexorável, acabou por acirrar, em escala nacional, as manifestações regionais que pareciam adormecidas para sempre. A indústria do disco rapidamente percebeu (e ajudou) esse movimento e equipou-se para extrair dele o máximo proveito. Note-se que seria mais fácil e interessante financeiramente incentivar a consolidação hegemônica do produto estrangeiro. Mas isso significaria a eliminação sumária de dicções que a sociedade não pode perder sob pena de ver ameaçada a própria identidade. Algo assim como uma força de permanência que se manifesta até mesmo na adoção dos estilos e das modas passageiras.
Quando se diz que a bossa nova veio recuperar uma dicção -na música e na letra- mais delicada e refinada que estava se diluindo na retórica excessiva do samba-canção, trata-se de um exemplo do que chamo de força de permanência. É quando urge mudar para fazer permanecer alguns conteúdos ou alguns gestos com os quais a cultura, em sua globalidade, identifica-se. No final dos anos 80, as gravadoras estavam alinhadas com o rock nacional, que, em alguns casos, partia para uma quase neutralização da melodia em nome da pulsação rítmica obstinada, favorecedora da dança e da excitação física de modo geral. A insistência nesse extremo fez explodir uma inesperada revitalização das cantorias sertanejas, que, por sua vez, trocaram os estímulos pulsantes pela emoção dos contornos melódicos, estes ainda mais acentuados que os do samba-canção dos anos 50.
O que veio depois é bem conhecido. De um lado, a axé music, o olodum e a timbalada recuperaram a marcação do ritmo e, de outro, o pagode reequilibrou pulso e melodia no interior da canção. No mundo do pop-rock, os Paralamas e os Titãs (acústico), dentre outros, também apostaram nesse reequilíbrio.
A força de permanência dos valores comunitários é o que regula, quase que naturalmente, a passagem de um estado hegemônico a outro. Sentimos sua presença dinâmica toda vez que um estilo começa a reinar de maneira absoluta. É o que faz reacender imediatamente os traços da dicção esquecida. Acontece que a sociedade é sempre solidária consigo mesma e se quer por inteira ("e não pela metade", como diz a canção). Daí sua cumplicidade inabalável com os artistas que representam em si essa força de permanência. Atuando ou não no gênero da moda, vendendo ou não o tanto que se calcula, artistas como Dorival Caymmi, Gal Costa, Chico Buarque, João Gilberto, Milton Nascimento, Marisa Monte, Caetano Veloso, João Bosco e os demais desse quilate são sempre bem recebidos e apoiados pela indústria fonográfica, já que expressam hoje, com nitidez, o ponto de equilíbrio das dicções do Brasil.
Parece que o mercado descobriu que o valor supremo é essa cumplicidade do público com o artista. É isso que pode fazer durar uma convivência e, do ponto de vista financeiro, é o que permite obter um planejamento de custos e benefícios. Os picos de vendagem desafogam a empresa, trazem euforia, mas não podem durar por sua própria natureza: são descontinuidades no processo cultural (talvez a única contra-prova seja o cantor Roberto Carlos, que se tornou, por isso, um emblema nacional).
Iniciou-se então uma luta pela permanência que vem se intensificando nesta década em várias frentes:
1. Na reabilitação de artistas que já desfrutavam a cumplicidade do público, mas que, por esta ou aquela razão, caminhavam um pouco à margem dos projetos comerciais das gravadoras. Essa empreitada, que já reabilitou há 20 anos Erasmo Carlos, reergueu recentemente Jorge Ben Jor, Tim Maia, Tom Zé, Paulinho da Viola, Elza Soares, Luiz Melodia e, em outro plano, até Rita Lee e os Titãs. Afinal, são dicções indissociáveis do mundo musical brasileiro;
2. Na prática de convites para participação no disco do colega. Nada como a presença de um artista de "permanência" garantida no mundo do disco para dar um empurrãozinho nas vendas, mas, sobretudo, para transferir um pouco da perenidade do seu carisma ao novo trabalho;
3. Nas regravações de antigos sucessos. Nunca houve tanta retomada do repertório fartamente consagrado. Desde os relançamentos de discos antigos em CD até as compilações dos melhores momentos da carreira, passando pelos songbooks e pelas reinterpretações de clássicos do cancioneiro nacional e internacional, tudo isso revela uma preocupação com a preservação das dicções;
4. Na chegada dos novos não tão "novos". Seja pela faixa etária acima dos 30, seja pela experiência acumulada no ramo (alguns já em "segunda" carreira), boa parte dos novos artistas já trazem na bagagem um currículo respeitável, conquistado com anos de estrada. Hoje já há um lugar no mercado (mesmo que sem a plenitude desejada) para dar respaldo à densidade de um Antonio Nóbrega, à singularidade de um Arnaldo Antunes ou de um Itamar Assumpção, todos fazendo exatamente o que querem. Chico César, Ná Ozzetti, Zélia Duncan, José Miguel Wisnik, Lenine, Cássia Eller e tantos outros são artistas que já chegaram prontos e com credibilidade garantida. São dicções que vieram para durar.
Carlinhos Brown, por sua vez, sintetiza o que ocorre no momento com a música brasileira: quanto mais esse músico se preocupa com o seu Candeal, mais se torna universal -e vice-versa.
Já podemos prever que a exacerbação do gênero tipicamente brasileiro -e em português- prenuncia a médio prazo um novo boom da música inglesa e norte-americana, quando não da italiana, da espanhola ou da hispano-americana. Afinal, todas essas compõem a dicção brasileira e sua ausência prolongada, por incrível que pareça, também ameaça a nossa cultura musical.


Luiz Tatit é professor de linguística e semiótica na USP. É autor, entre outros, de "O Cancionista - Composição de Canções no Brasil" (Edusp).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.