São Paulo, domingo, 12 de abril de 1998

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A revolução silenciosa


Os "menos favorecidos" não só consomem, mas também produzem o entretenimento televisivo


TEIXEIRA COELHO
especial para a Folha

Todo produto traz em si as marcas do sistema de produção que o gerou. Esta proposição marxista parece reencontrar validação na reportagem realizada pelo Mais!, apontando para uma estreita relação entre o aumento de vendas de aparelhos receptores de TV e de reprodução de som para as classes C, D e E e o declínio qualitativo nos programas de televisão e no consumo musical.
Dito de modo eufêmico, os dados colhidos estabeleceriam uma relação entre o maior consumo dessa aparelhagem eletrônica, traduzido em ampliação da base consumidora da pirâmide social, e o crescimento de uma programação "popular" nesses meios. E, no caso, o que a observação marxista afirma é que, de um sistema de produção industrial (e cultural) dominado pela idéia do lucro econômico a todo custo e que se rege pela chamada lei do mercado, não se poderia esperar outra coisa. A teoria da informação propõe o mesmo numa de suas leis básicas -lei que o tempo todo procuramos contrariar sem nem sempre conseguir fazê-lo: quanto maior a audiência, menor a taxa de informação da mensagem veiculada, o que quase significa menor qualidade dessa mensagem. Um sistema de pensamento dito material, conteudístico (o marxista), e outro, visto como formalista (a teoria da informação), concordam nesse ponto.
Esse elo causal, portanto, é forte. Mas outras questões podem ser levantadas na tentativa de completar o quadro. Por exemplo, a queda de qualidade (ou o aumento de "popularização", e entendamos por isso o mundo cão de Ratinho, a dança da garrafa, os programas em que meninas de 7 a 10 anos aparecem com roupas e trejeitos de mulheres sensuais, a exploração publicitária da sexualidade etc.) é tendência crescente? É universal ou localizada? Outros fatores a reforçam ou contestam? Até que ponto fatores econômicos como os apontados na reportagem são determinantes?
O Japão apresenta-se a si mesmo como o país da classe média, isto é, as classes ditas D e E são, ali, estreitíssimas. E os dados dizem que 45% da população passou por uma universidade. Ali, a venda da parafernália eletrônica de comunicação está estabilizada (ou mais do que no Brasil do real) -mas o quadro de debilidade qualitativa da programação não é muito diferente do constatado por aqui.
O cineasta japonês Nagisa Oshima, mais conhecido depois do escândalo de "O Império dos Sentidos", durante 25 anos foi apresentador de programas na TV. Ele tem uma teoria sobre o assunto (1). Distingue três etapas na história da decadência da TV japonesa. A primeira, no início dos anos 70, ele ilustra com sua experiência de comentador de acontecimentos políticos e sociais sérios. Poucos anos depois, o interesse da TV transportou-se para assuntos "mais pessoais" e lhe foi dado para apresentar um programa intitulado "Escola de Mulheres", no qual discutia, com as telespectadoras, problemas íntimos do sexo feminino. Num terceiro momento, passou a aparecer em programas de puro entretenimento, nos quais contracenava com cômicos, como um certo Beat Takeshi (assim mesmo, em inglês), que depois tornou-se também cineasta de renome e que agora conhecemos pelo nome de Takeshi Kitano, autor do "Fogos de Artifício", exibido na última Mostra de Cinema de São Paulo. Kitano herdou de Oshima o gosto pelo cinema e a função de apresentador na TV: hoje, abril de 98, pode ser visto na TV japonesa apresentando programas de dúbio valor cultural, nos quais aparece com uma cara bem diferente daquela de durão com que estrela seus filmes: a cara de bobo alegre, a mesma que parece o destino de todos, de todos nós, que aparecem na TV.
No caso de Oshima pode-se pensar ou numa esquizofrenia cultural pessoal -bons filmes intelectuais de um lado, puro entretenimento televisivo de outro- ou em mais um caso da mistura, bem japonesa, dos códigos erudito e popular. Quanto a Kitano, a esquizofrenia será menor se nos ocorrer pensar que seus filmes "intelectuais" não passam de clichês popularescos edulcorados. De todo modo, quando não é o de Kitano, é um outro programa igualmente popularesco -embora o popularesco (ou "de baixa qualidade") de um país não tenha exato similar em outro: não conheço nenhum Ratinho japonês, nem nenhuma dança da garrafa nessa televisão que apenas recentemente se atreveu a apresentar como atrativo, em comerciais, imagens de mulheres um pouco mais sensuais, mas nada comparado com a vil cena em que uma jovem deixa cair a parte de cima do biquíni num comercial brasileiro de cerveja.
Na França, onde os jovens são colocados às portas da universidade com uma bagagem humanística em princípio invejável, o quadro não é muito diferente. Uma grande unanimidade nacional por lá são as séries francesas equivalentes às novelas brasileiras; depois, vêm os programas de auditório, como Studio Gabriel (outra vez, não dá para compará-los com os faustões e sílvios santos daqui: o patamar é outro), e só bem atrás surgem os programas educativos da Cinq ou do canal europeu Arte.
Estes dois casos parecem mostrar que o grau de instrução e de cultura e a capacidade econômica não parecem influir decisivamente para elevar ou abaixar o nível da programação da TV (embora, insisto, não exista nas TVs japonesa e francesa, nem de longe, o índice de violência e boçalidade, sexual ou outra, que inunda os receptores brasileiros).
O que esses quadros parecem comprovar é a tese -já velha- segundo a qual esta é a era do lazer e seus profetas são a TV, o rádio e seus assemelhados. Como disse o presidente de uma televisão japonesa, num acesso de originalidade, a televisão não foi feita para refletir o contexto sociopolítico de um país (menos ainda para fazer com que se reflita sobre ele, pode-se acrescentar): ela é puro divertimento.
Adotando-se essas lentes, é oportuno rever uma observação coletada pela reportagem do Mais! e, ao mesmo tempo, uma expressão que durante algum tempo apareceu nos estudos sobre a indústria cultural. A observação: com maior poder aquisitivo, as classes menos favorecidas têm mais acesso à cultura. E a expressão: essa é uma cultura não de massa, mas para a massa. A correção, no primeiro caso é: as classes menos favorecidas estão tendo mais acesso ao entretenimento, não à cultura; não é mais relevante a posição antropológica clássica, segundo a qual tudo é cultura; quando tudo é cultura, nada é cultura; o relativismo cultural já se esgotou: entretenimento é uma coisa, cultura (aquilo que nos move para longe da indistinção e da indiferença) é outra bem diferente.
A correção, no segundo caso: nos anos 70 dizíamos que a TV propagava uma cultura para a massa e que essa cultura não era de modo algum uma cultura da massa; com isso queríamos dizer que a "massa" era manipulada de cima e que, se ela tivesse os meios para tanto, produziria uma cultura que seria bem melhor. Era o politicamente correto da época. O que não queríamos ver é que o grande acesso das classes menos favorecidas (para não questionar o eufemismo) não é tanto ao consumo dessa "cultura", mas à produção dessa "cultura". Isso era evidente quando a TV começou no Brasil, era visível nos anos 70 e continua perceptível agora: com as exceções habituais, as pessoas que produzem, escrevem, selecionam, apresentam e comentam programas na TV (em particular nas emissoras de menor expressão econômica, mas não só nelas) tiveram e ainda têm sua origem nessas mesmas "classes menos favorecidas" econômica ou culturalmente (o que significa, sem juízo de valor, que não passaram por uma universidade ou não puderem exercitar um gosto variado).
Essas pessoas, como todas, tendem a tomar suas próprias preferências pelas preferências gerais e não podem evitar de entregar-se gozosamente a elas quando percebem uma convergência de predileções. Essa "cultura" quase sempre foi, em suma, uma cultura "da massa" mesmo, não "para a" massa, e essas emissoras e essas pessoas sempre foram autênticos "intelectuais orgânicos" das "classes menos favorecidas". No início da TV Tupi foi possível assistir a uma encenação paulista de "Os Rinocerontes", de Ionesco, em horário nobre. Mas, com a expansão do mercado, os responsáveis por essa audácia logo se retiraram para outros redutos (inclusive para a publicidade, a partir de onde passaram a oferecer sua contribuição valiosa para a liquidificação geral dos gostos). Essa foi, na verdade, a grande revolução silenciosa: a ascensão das classes menos favorecidas ao controle da produção, se não cultural, pelo menos do entretenimento. O que ocorre hoje, pelo menos no Brasil, é de certo modo uma consequência daquela tomada indolor do poder simbólico.
É uma tendência sem retorno? Os programas popularescos invadirão também a TV a cabo (já invadiram: a TV a cabo é o "mais do mesmo")? Pode ser. Medidas que assegurem um mínimo de pluralidade, porém, podem ser tomadas. No Brasil, os governos que se sucedem desde o surgimento da TV optaram por nada pedir e nada esperar da TV: deram-lhe tudo, deram-lhe o país. O atual credo neoliberal insiste nisso: o Estado não vai produzir nem controlar a cultura. É uma afirmação sem sentido: por toda parte o Estado, como membro vivo da sociedade, produz e controla a cultura. E o faz mesmo por sua ausência. A liberal França (em todos os sentidos da palavra, inclusive o filosófico) controla a TV e o mesmo fazem os EUA, o Irã e o Japão. Os resultados podem não ser notáveis e certamente não são imediatos. Mas é o que cabe ao Estado fazer. Controle não é censura: é diálogo em que a parte que detém o direito sobre as ondas eletrônicas, e que é a parte pública, diz à parte privada o que espera que se faça e não se faça com esses meios. O Estado neoliberal controla ferreamente a educação: por que se recusa a dialogar no campo da cultura, no mínimo tão importante quanto o da educação?
De novo: é inevitável? Creio existirem indícios de que, assim como a média da população deste país é melhor do que a média dos políticos que a representam, a média da população deste país é melhor do que a média daqueles que lhes oferecem isso que anda disponível nas TVs, rádios e CDs. A passividade não é a regra. As pessoas estão cansadas da falsa entente coletiva da TV, procuram as microsociedades exemplificadas nas praticas religiosas e na... Internet. O mercado vai invadir a Internet com seu lixo, isso é certo. E então se descobrirá uma outra coisa. O jogo não está perdido. O jogo, de fato, é esse.

Nota:
1. "Le Monde Diplomatique", março de 1996, pág. 20.


Teixeira Coelho é escritor e ensaísta, autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance" e "Dicionário Crítico de Política Cultural" e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.



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