São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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O BRASIL MÍTICO DE MARINETTI

Reprodução
Platéia aguarda conferência de Marinetti em São Paulo, em 1936; na outra pág., registro de bilheteria de conferência de Marinetti em 1926



Série de conferências que o poeta deu na América do Sul foi um sucesso comercial que ajudou a modificar a relação cordial entre artistas e mecenas e a minar a fronteira entre o popular e o erudito


João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha

No dia 13 de maio de 1926, a bordo do transatlântico Giulio Cesare, Filippo Tommaso Marinetti e sua mulher, Benedetta, desembarcaram no Rio de Janeiro para uma turnê de conferências no Brasil, Argentina e Uruguai. A recepção contou com a presença de renomados escritores, que esperavam o casal no porto.
Marinetti descreve a cena em "Velocità Brasiliane", um poema-reportagem escrito segundo o método futurista de palavras-em-liberdade (associação livre de idéias, que dispensa a pontuação e as regras sintáticas tradicionais, a fim de expressar o dinamismo da vida moderna).
Após exaltar a beleza da baía de Guanabara, o italiano foi distraído por outro tipo de espetáculo: "Enquanto os gritos de Viva o Futurismo! Viva Marinetti! vêm do píer, onde o maior carro grua elefantescamente plantado com as patas largas sobre o trilho emoldura sob sua rígida tromba levantada todo o grupo dos futuristas brasileiros. Em meio aos poetas Carvalho, Olanda, Almeida, Moras, Bandeira, Pongetti, Silveira, Grieco, aparece Graça Arãnha".
Apesar dos inúmeros (e previsíveis) erros ortográficos, a lista impressiona, pois reúne a elite da intelectualidade da época: Ronald de Carvalho, Sérgio Buarque de Holanda, Renato Almeida, Prudente de Morais Neto, Manuel Bandeira, Henrique Pongetti, Tasso da Silveira, Agrippino Grieco, Graça Aranha. A posição de destaque atribuída ao autor de "Canaã" reflete a aliança que será estabelecida entre o italiano e o brasileiro. Aliás, o centenário de publicação de "Canaã" se comemora neste ano, e a tradução francesa da obra foi cuidadosamente lida e extensamente anotada por Marinetti, como se verifica em sua biblioteca, hoje sob a custódia da Beinecke Library, na Universidade Yale (EUA).
Em 1936, Marinetti voltaria à América do Sul para uma nova visita, agora como representante do governo italiano. Nesse mesmo ano, Sérgio Buarque lançou "Raízes do Brasil", obra fundamental para o entendimento da cultura brasileira e cujo conceito de "homem cordial" talvez ajude a compreender os bastidores da primeira viagem de Marinetti ao Brasil.
A turnê de Marinetti em 1926 não tem sido pesquisada com o mesmo cuidado com que as viagens de Blaise Cendrars foram estudadas por Aracy Amaral, Alexandre Eulálio e Carlos Augusto Calil. Afinal, a crítica sempre considerou a viagem de Marinetti um malogro, ecoando a visão de Mário de Andrade, difundida em sua correspondência e relatada em sua coluna no "Diário Nacional", de 11 de fevereiro de 1930.
Contamos, portanto, com duas versões. De um lado, o relato triunfante de Marinetti; de outro, a narrativa cética de Mário de Andrade.


A onipresença de Marinetti na imprensa terminou por precipitar oposições no interior do movimento modernista


Além da maior proximidade com a posição do brasileiro, o vínculo do italiano com o fascismo transformou-o numa figura incômoda nos círculos modernistas. Entretanto, em ensaio pioneiro, "A Bibliografia Latino-Americana na Coleção Marinetti", Jorge Schwartz apresentou uma lista completa desses livros na biblioteca marinettiana, incluindo alguns dedicados por autores tão variados como Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Graça Aranha, Renato Almeida, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho. Foi um primeiro passo, complementado pelo indispensável trabalho de Annateresa Fabris sobre o futurismo e sua presença no Brasil. Fabris reconstruiu o "momento futurista" da modernidade brasileira, segundo a expressão cunhada por Renato Poggioli. Tal perspectiva levou a autora a sugerir a existência de um "futurismo paulista", ou seja, do momento de aglutinação das forças modernistas que estrategicamente se apropriaram de princípios futuristas como instrumento de choque. Em "O Futurismo Paulista" (Perspectiva/Edusp), no capítulo "Abaixo Marinetti", Fabris apresentou o primeiro estudo aprofundado de sua viagem. Apesar desses trabalhos pioneiros, a interpretação dominante considera a turnê de Marinetti um fracasso. Tal juízo, ainda que fosse correto, teria exclusivamente como referência os acontecimentos ocorridos em São Paulo, o que constitui um claro problema metodológico. Mesmo num importante livro, como o volume organizado por Ana Maria Belluzzo, "Modernidade - Vanguardas Artísticas na América Latina" (Memorial da América Latina/Unesp), o leitor encontra uma curiosa entrada cronológica: "1926 - Brasil: A Visita e as Palestras de Marinetti em São Paulo". A estada do futurista no Rio de Janeiro é simplesmente ignorada. Não se pode, contudo, deixar de valorizar a extraordinária recepção que Marinetti teve no Rio de Janeiro por parte de escritores e autoridades. Por exemplo, na noite de 22 de maio estiveram presentes no estúdio da rádio Sociedade Manuel Bandeira, Graça Aranha, o vice-presidente da República, Estácio Coimbra, e outros políticos. Ronald de Carvalho apresentou o italiano, sem poupar elogios. Eis a descrição do telegrama enviado para a Itália pelo próprio Marinetti: "Público seleto considerável marinetti pronunciou eficaz interessante discurso para todo brasil depois brilhante discurso inaugural poeta ronald carvalho sobre grande impacto artístico político do futurismo" (1). Além de contar com um público numeroso e receptivo em suas conferências no Rio de Janeiro, Marinetti usufruiu de um privilégio raro: Manuel Bandeira assumiu o papel de cicerone e levou o casal italiano a um passeio no Jardim Botânico, que verdadeiramente encantou o poeta da técnica e da velocidade. Também surpreendemos Bandeira na bucólica fotografia de Marinetti e Benedetta no Corcovado. No entanto a onipresença de Marinetti na imprensa terminou por precipitar oposições no interior do movimento modernista. Por isso mesmo, em São Paulo a hostilidade de grupos antifascistas e a indiferença de alguns modernistas, tipificada na reação de Mário de Andrade, teriam consagrado a versão do fracasso da viagem. Na verdade, o italiano pode ter sido um simples instrumento de uma disputa local. Graça Aranha seria o verdadeiro alvo. Mário de Andrade já o havia atacado na "Carta Aberta", publicada em 12 de janeiro de 1926, em "A Manhã", na qual o considerava um "passadista" disfarçado em trajes modernos. Mário não procurou ser gentil: "Você confundiu a função de orientar com a de tiranete e chefe político de comarca". Graça Aranha, então, tentaria recuperar a liderança do modernismo no papel de anfitrião do criador do futurismo. No discurso inaugural da primeira conferência de Marinetti no Rio de Janeiro, no teatro Lírico, em 15 de maio, Aranha esclareceu: "Marinetti iniciou e organizou a ação libertadora (...). Diante desta grandeza, como é pueril discutir-se se o futurismo de Marinetti já é passadismo". Em seguida, analisou a cena brasileira, sugerindo um padrão idêntico para a avaliação de seu papel na Semana de Arte Moderna. Mário compreendeu a estratégia, aceitando o raciocínio, mas invertendo suas consequências. Graça Aranha bem poderia ser o Marinetti brasileiro. No entanto, dado o princípio de "tal pai, qual filho", se Marinetti não passava de uma imagem retrospectiva de si mesmo, Aranha seria inevitavelmente "passadista". Com esse astucioso raciocínio, Mário reforçava sua liderança ao mesmo tempo em que desautorizava o grupo reunido em torno do autor de "Canaã", grupo disposto a recuperar a hegemonia do movimento modernista.

Um livro-arma
A disputa prosseguiria mediante o aparecimento de um intrigante livro, publicado em 1926: "Futurismo - Manifestos de Marinetti e Seus Companheiros". O promotor da iniciativa foi o empresário Niccolino Viggiani, que organizou a viagem do italiano à América do Sul. A editora responsável foi a Pimenta de Mello & Cia., a mesma que publicou o livro de Ronald de Carvalho, "Toda a América". Aliás, suas dedicatórias a Marinetti são sempre entusiasmadas. "Pequena História da Literatura Brasileira" traz a seguinte inscrição: "A F.T. Marinetti/ com toda a admiração pelo seu heroísmo intelectual". Em "Toda a América", encontra-se esta dedicatória: "A Marinetti/ gerado na alegria e no gênio de uma grande Raça". Talvez Ronald de Carvalho tenha facilitado a aproximação com a editora.
Manuel Bandeira, é verdade, foi mais contido. Ao dedicar "Poesias", saído em 1926, limitou-se ao protocolar "A F.T. Marinetti/ homenagem de Manuel Bandeira". Como vimos, ele foi muito mais expansivo no convívio direto. Ainda assim, decidiu presentear o italiano com sua própria cópia de "Pau-Brasil", de Oswald de Andrade. Na coleção marinettiana, o leitor surpreso encontra a inscrição de Oswald não a Marinetti, mas "Ao Manuel Bandeira da Geração/ o Oswald". De igual modo, Bandeira cedeu "Losango Cáqui", de Mário de Andrade, com a inscrição: "Prá alma querida de Manuel Bandeira/ o Mário".
Nesse contexto, "Manifestos de Marinetti e Seus Companheiros" é um livro importante. O prefácio, "Futurismo", assinado por Graça Aranha, reproduz na íntegra o discurso de apresentação proferido na primeira conferência do italiano no Rio de Janeiro. Na sequência, sempre em francês, 11 manifestos são reunidos. Tratava-se de fornecer aos intelectuais brasileiros a súmula futurista -talvez uma resposta ao aparecimento, no ano anterior, da mais importante declaração de princípios do modernismo brasileiro, "A Escrava que Não É Isaura".
As palavras de Graça Aranha não deixam dúvidas sobre o alvo da operação: "Se [o modernismo] foi somente uma renovação estética para desta resultar alguns poemas, algumas músicas, algumas obras plásticas, foi muito restrito e de fôlego curto este movimento. (...) Se o modernismo brasileiro é uma verdadeira força, que


A vitória final, contudo, coube ao autor de "Macunaíma"; Graça Aranha nunca recuperou a posição de liderança do modernismo


vá para diante. Renove toda a mentalidade brasileira. Estenda a sua ação aos costumes, ao direito, à cooperação das classes, à filosofia, à politica. Um pensamento novo, atividade nova". Salvo engano, Aranha está propondo para o modernismo o modelo de politização do futurismo, que, a partir de 1924, com a publicação de "Futurismo e Fascismo", passou a identificar-se sempre mais com o regime de Mussolini. Curiosamente, trata-se do padrão adotado durante o governo de Getúlio Vargas. E não é tudo, pois o livro-arma reserva outra surpresa. Três personalidades são representadas mediante ilustrações. Na página 33, um belo desenho de Giacomo Balla expressa o dinamismo de Marinetti. Na página 97, num esboço de traços rígidos, encontra-se o perfil de Mussolini. Entretanto entre o agitador futurista e o líder fascista aparece, na página 65, a caricatura de Graça Aranha, decididamente transformado em companheiro do líder futurista.

Marinetti e Mário de Andrade
Entretanto um confronto inesperado aguardava o italiano. No final de 1922, Mário de Andrade enviou-lhe "Paulicéia Desvairada", com uma dedicatória sedutora: "A F.T. Marinetti/ com (sic) viva simpatia e ammirazione". Ágil na prática cordial da reciprocidade, o italiano respondeu no ecumênico manifesto "O Futurismo Mundial", publicado em 1924. Em meio a Blaise Cendrars, Jean Cocteau, Jorge Luis Borges, Vicente Huidobro, entre tantos outros "futuristas", surgem mais dois nomes, "(...) De Andrade, D'Almeida Prado (sic)". Yan de Almeida Prado e Mário de Andrade descobriram-se então discípulos do italiano. A surpresa não parece tê-los agradado. Já Marinetti acreditava ter encontrado uma base sólida para futuros empreendimentos. A calculada indiferença de seus "amigos" deve tê-lo desarmado.
Yan de Almeida Prado descreveu com bom humor as grandes expectativas nutridas pelo italiano: "Um belo dia chegou-me comunicação de outro empresário com aviso que Marinetti ia empreender turnê na América do Sul e contava naturalmente com o meu auxílio". Mário de Andrade também recebeu mensagens de Viggiani, como se depreende do irônico bilhete enviado a Prudente de Moraes Neto: "Chego no Rio a bordo do Zelândia. Vá me esperar no cais para combinar tudo. Não sei pra que Hotel vou. Arranje pois pra estar no cais e me abraçar. Vou buscar o Marinetti. Quá! Quá! Quá! O Viggiani é que paga. Quá! Quá! Quá! Sinão eu não ia. Quá! Quá! Quá! Buscá o Marinetti. Quáquá! Quá! Quá! (Isto é ûa modinha)".
Na última hora, porém, Mário desistiu da viagem. Por que teria as despesas pagas? Sua presença representaria uma excelente propaganda, sobretudo após a "Carta Aberta". A reconciliação dos líderes do modernismo brasileiro, na recepção ao criador do futurismo, garantiria manchetes em importantes jornais. Por isso, jornalistas mais afoitos incluíram um Mário de Andrade virtual em suas reportagens. Antes que a versão se transformasse em fato, Mário reagiu em carta enviada a Luís da Câmara Cascudo: "Os jornais falaram que fui no Rio esperá-lo. É mentira, não fui não. Pretendi ir depois desisti e estou convencido que fiz bem". Mas não pôde evitar o encontro com o adversário.
A carta prossegue: "Depois dele estar já três dias em S. Paulo é que fui visitá-lo. Não podia deixar de ir embora esse fosse meu desejo porque desde a Itália e desde muito que tem sido gentil pra comigo. Fui e a primeira coisa que falei pra ele é que tinha deixado de ir à conferência porque discordava dos meios de propaganda que estava usando. Ficou sem se desapontar e pôs a culpa no empresário. E falou falou dizendo coisas que eu já sabia e me cansando. Me despedi e espero que se tenha desiludido do Mário que ele imaginava futurista. (...) A segunda vez que o vi foi num chá no salão moderno de Dona Olívia Penteado".
No final do tenso encontro, Mário sacou uma arma cuja sutileza tem passado despercebida. Ofereceu ao italiano "A Escrava que Não É Isaura", inscrevendo com malícia macunaímica: "A F.T. Marinetti/ o agitador futurista". Ora, menos do que poeta, Marinetti seria um reclame de si mesmo. E o próprio conteúdo do livro é bastante desfavorável à obra de Marinetti. Mas o italiano era um mestre no jogo de disputas entre grupos de vanguarda. Em aparência, o autêntico presente de grego permaneceu intacto e ainda hoje se encontra com as páginas ostensivamente coladas, sem nenhuma marca de leitura.
No dia 29 de maio, Marinetti foi recebido na casa de Olívia Penteado a fim de conhecer o famoso "salão modernista". Em seu "Diário", descreveu sem entusiasmo algumas das telas da anfitriã. Na verdade, reservou a verve para um acerto de contas particular: "Declamo Bombardamento. Mário de Andrade um tipo rude alto com aspecto de bom negro branco declama suspirosamente e leitosamente um de seus noturnos".
O brasileiro é descrito como um autêntico passadista, cuja decadência explicaria sua hostilidade ao arauto do futuro. Pelo menos, essa é a versão legada por Marinetti à posteridade.
A vitória final, contudo, coube ao autor de "Macunaíma". Graça Aranha nunca recuperou a posição de liderança do modernismo. Marinetti retornou à América do Sul em 1936, mas, dessa vez, a natureza política da viagem foi dominante, logo, as repercussões no mundo literário não tiveram importância. Por fim, por meio de um metódico sistema epistolar e de uma constante colaboração jornalística, Mário de Andrade transformou sua versão dos fatos na memória das gerações futuras. Êxito que, como poucos, o criador do futurismo sabia apreciar.
No terreno da política literária local, Marinetti não tinha como compreender a complexidade do momento e escolheu a aliança que lhe foi oferecida. Ironicamente, o líder futurista privilegiou nomes que o modernismo transformou em passadistas. Já no campo da autopromoção e da inserção do homem de letras num mercado muito mais amplo do que o propiciado pelas redes de contato lastreadas em relações pessoais, pelo contrário, o italiano tinha muito a ensinar aos brasileiros. A fim de contribuir para um renovado entendimento dessa viagem, é necessário recuperar sua natureza comercial.
Leia-se uma passagem do contrato que trouxe o futurista à América do Sul, assinado em 16 de dezembro de 1925: "O poeta F.T. Marinetti compromete-se a empreender uma turnê de conferências (mínimo de oito conferências), incluindo Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires, com início previsto para junho de 1926. O Sr. Viggiani compromete-se a organizar as mencionadas conferências nos melhores teatros daquelas cidades (...), estando implícito que sete dias é o período mínimo de permanência em cada cidade (para assegurar o êxito das conferências mediante entrevistas etc...)" (2).
Esse contrato e os registros da soma total ganha por Marinetti demandam a reavaliação da viagem. Quem foi o empresário que trouxe o futurista à América do Sul? Niccolino Viggiani organizava grandes espetáculos teatrais no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ele não dispunha de sólidos contatos com homens de letras, mas não parece ter investido muito tempo para obtê-los. Pelo contrário, preferiu divulgar as conferências de Marinetti como se fossem uma atração comparável a concertos


O italiano não veio ao Brasil com as despesas pagas por um mecenas, como Blaise Cendrars, que, em 1924, foi convidado por Paulo Prado


de pianistas e a recitais de cantoras líricas. A seção de anúncios do "Jornal do Comércio" é reveladora. Os eventos da "Companhia Niccolino Viggiani" eram anunciados com grande destaque. As conferências de Marinetti foram divulgadas como as demais promoções do empresário, como atrações teatrais. Afinal, em ambos os casos o público deveria pagar ingressos para assistir à performance dos artistas. Marinetti receberia 20% do lucro líquido resultante da bilheteria. As seis conferências realizadas no Brasil renderam para Marinetti seis contos -aproximadamente US$ 25 mil, em valores atuais. A tumultuada conferência de 27 de maio em São Paulo, realizada no teatro Cassino Antártica e na qual Marinetti não conseguiu discursar, sempre foi julgada, por isso mesmo, como a "prova" definitiva do fracasso da viagem, embora tenha sido a mais bem-sucedida do ponto de vista financeiro. De fato, em nenhuma outra apresentação o italiano lucrou tanto. Por isso, na Argentina, em entrevista concedida a "La Prensa" em 8 de junho, Marinetti declarou que tinha ficado "muito satisfeito com [sua] estada no Brasil, cujos resultados ultrapassaram todas as expectativas". No restante da turnê, o êxito foi menor, mas ainda considerável. Marinetti realizou pelo menos 13 conferências na Argentina e uma no Uruguai. A soma total por ele angariada chegou a 1.373 pesos. Considerando que o salário anual de um professor de escola secundária, no mais alto nível de qualificação, correspondia a 3.330 pesos, o futurista amealhou uma quantia nada desprezível.

O futurismo no cotidiano
Além do sucesso econômico, é muito importante destacar a assimilação paródica de técnicas futuristas por parte da imprensa. Esse fenômeno sugere a difusão dos princípios marinettianos numa amplitude sonhada por todos os grupos de vanguarda. Em 23 de maio de 1926, "O Estado de S. Paulo" estampou uma caricatura do italiano com a legenda: "A arte futurista da careca de Marinetti". A "careca" transforma-se num palco, cuja extensão é atravessada pelo nome: "Guaraná espumante". Ao lado, versos interpretam as qualidades do produto numa chave futurista: se o guaraná é uma bebida estimulante, por que não associá-lo ao apóstolo da velocidade? Afinal, em 1916, Marinetti publicou o manifesto "La Nuova Religione-Morale della Velocità".
Na Argentina, chegou-se a ensaiar um "periodismo futurista".
O artigo em questão, publicado em 28 de junho de 1926, em "La Fronda", termina de forma característica: "El público recuerda entonces que el orador no sabe castellaño y se retira del sótano cantando: "Non e vero ch'è morto Marinetti­ pum!"./ Marinetti­ pum!/ Marinetti­ pum!/ È vero, è vero che Filippo non nos capice ­ pum!".
No Uruguai, as notícias sobre a viagem de Marinetti seguiram idêntico padrão. No "Imparcial", em 7 de junho de 1926, acompanhando uma entrevista com o futurista, publicou-se uma deliciosa paródia, "Ripiorragia sin Adjetivos ni Verbos". A primeira e a última estrofes demonstram como o método futurista das palavras-em-liberdade havia penetrado na imaginação popular: "Marinetti! !!!!/ Paso./ Velocidad, velocidad./ Puerto. Niebla./ Remocladores./ Opacidad./ (...)/ ¨Y a Marinetti?/ Paso. Exhaltación./ Desaparición./ Marinetti! Hurrah! Verbo en libertad. Velocidad, velocidad, velocidad./ Qué barbaridad!".
A turnê de Marinetti produziu inovações que talvez ainda não tenham sido devidamente avaliadas. De um lado, a natureza comercial da viagem representava uma clara ameaça ao circuito de conferências sul-americano; circuito esse predominantemente cordial, ou seja, lastreado por contatos pessoais e movido pela dinâmica do favor, analisada com argúcia em "Raízes do Brasil". O italiano não veio ao Brasil com as despesas pagas por um mecenas, como Blaise Cendrars, que, em 1924, foi convidado por Paulo Prado. Além de arcar com os custos da viagem, ele organizou conferências com amigos dispostos a colaborar com o francês. Esse era o sistema dominante no meio intelectual (e não só brasileiro).
A operação desencadeada pela viagem de Marinetti não somente ignorava a importância do mecenato como revelava um aspecto nada inovador das vanguardas. Em seu importante "Institutions of Modernism -Literary Elites & Public Culture" (Instituições do Modernismo -Elites Literárias & Cultura Pública, Yale University Press), Lawrence Rainey demonstrou como as vanguardas foram muito pouco revolucionárias no tocante à própria sobrevivência, recorrendo sem pudor aos mecenas disponíveis. Em breve, o mecenato vanguardista seria assegurado por meio de uma paradoxal instituição: o Museu de Arte Moderna.
De outro lado, a assimilação da estética futurista tanto em paródias jornalísticas quanto em estratégias de propaganda sugere que, em alguma medida, a rejeição da teoria da "grande divisão" já se encontrava esboçada na prática nada ortodoxa de Marinetti. Compreender esse aspecto significa renovar os estudos sobre as vanguardas da década de 1920.
Em "After the Great Divide - Modernism, Mass Culture, Postmodernism" (Depois da Grande Divisão - Modernismo, Cultura de Massa, Pós-Modernismo, publicado pela Indiana University Press), Andreas Huyssen questionou a definição das vanguardas com base na diferença entre arte erudita e cultura de massa -questionamento decisivo para o resgate do talento performático de Marinetti.


Em 1936, o panorama transformou-se radicalmente; Marinetti retornava como importante membro da academia fascista


No caso brasileiro, essa separação também é problemática, pois os modernistas se associaram tanto à "cultura popular" quanto à nascente cultura de massa dos centros urbanos na década de 1920. Em "O Mistério do Samba" (Jorge Zahar Editor), Hermano Vianna resgatou o inusitado encontro, também ocorrido em 1926, entre Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto, Pixinguinha, Donga e Villa-Lobos. Um exemplo perfeito de rejeição à teoria da "grande divisão"! Durante muito tempo, o futurismo permaneceu um corpo estranho no horizonte das vanguardas. Afinal, Marinetti introduziu no domínio da produção artística técnicas de comunicação de massa e estratégias da economia de mercado, reunindo, sem nenhum pudor, arte erudita e cultura de massa. No que se refere à viagem de Marinetti, portanto, a abordagem de Huyssen permite duvidar de juízos críticos consagrados que consideram fracassada a turnê. Como vimos, a assimilação jornalística de princípios futuristas revela uma relação muito mais complexa e fecunda. Por exemplo, em 1921, durante uma turnê teatral, Ettore Petrolini escreveu a Marinetti: "Saiba que aqui no Brasil tu és popularíssimo. A imprensa se ocupa de ti com frequência e com simpatia" (3). Por sua vez, em "Fascist Modernism - Aesthetics, Politics and the Avant-Garde" (Modernismo Fascista - Estética, Política e a Vanguarda, Stanford University Press), Andrew Hewitt evidenciou o princípio dominante nos estudos sobre as vanguardas: o binômio vanguarda política/vanguarda estética como "naturalmente" defensor de posições esquerdistas. A consequência imediata desse pressuposto é o mal-estar causado pelo futurismo ou por poetas e escritores como Ezra Pound, Gottfried Benn, Ernst Jünger, entre outros. Não surpreende, portanto, que, no clássico "Teoria da Vanguarda", Peter Bürger ignore o futurismo, pois como pensá-lo sem necessariamente refletir sobre o fascismo? Em seu livro, o futurismo é relegado a uma única referência: a nota de rodapé número quatro do segundo capítulo. Trata-se, devo dizê-lo com clareza, de uma operação antes ideológica do que intelectual. A reticência da crítica brasileira em relação à viagem de Marinetti reflete atitudes como a de Peter Bürger. Porém, a fim de renovar os estudos sobre as vanguardas, precisamos olhar para a frente. Em primeiro lugar, as vanguardas políticas identificadas com posições de esquerda desenvolveram práticas tão autoritárias quanto qualquer grupo fascista. Em segundo lugar, a exclusão do futurismo implica um sério empobrecimento da análise crítica, já que os manifestos inaugurais do movimento propiciam um material capaz de estimular tanto o debate teórico quanto a prática artística. Por fim, a vocação performática de Marinetti contém uma possível arqueologia da contemporaneidade. Futurismo e fascismo: a coincidência dos termos é incômoda; mais perturbadora, contudo, é a dificuldade de refletir sobre ela.

No fio da navalha
O livro "Futurismo - Manifestos de Marinetti e Seus Companheiros" expressa perfeitamente a ambiguidade que marcou a primeira viagem de Marinetti à América do Sul. O leitor encontra, nas três últimas páginas (113-115), uma análise do então recente lançamento de Marinetti, "Futurismo e Fascismo". Este se define como "um movimento político", já aquele se considera "pelo contrário um movimento artístico e ideológico que se torna político nas horas mais graves da nação". Entretanto o livro se encerra com uma longa declaração do Duce, precedida da explicação: "Durante sua visita às fábricas de Roma, Mussolini pronunciou esse discurso futurista (...)". Ora, nesse caso, por que o esforço em estabelecer distinções entre futurismo e fascismo?
Em 1926, ainda era possível ocupar as duas posições alternativamente e derivar proveito da dualidade. Daí, assim que chegou a Buenos Aires, depois dos fortes protestos antifascistas em São Paulo, Marinetti declarou que sua viagem tinha como único objetivo divulgar o futurismo. Tratava-se de uma iniciativa artística, e não política.
Porém, ao embarcar de volta para a Europa, levou consigo uma carta do embaixador italiano no Brasil, Giulio Cesare Montagna, na qual solicitava-se à alfândega em Gênova que facilitasse os trâmites legais, pois o "Poeta F.T. Marinetti (...) levara a cabo uma missão de propaganda nacional na América do Sul". De igual sorte, o embaixador em Montevidéu enviou para Roma um relatório elogioso sobre as atividades do futurista no tocante à promoção do regime italiano.
Em 1936, o panorama transformou-se radicalmente. Marinetti retornava como importante membro da academia fascista, num tempo de homens partidos e de posições rígidas. O líder futurista representava oficialmente o governo de Mussolini. E continuou atraindo um público respeitável. Como se vê na fotografia da conferência em São Paulo, o teatro está virtualmente lotado. E a imprensa concedeu generoso espaço para divulgar suas aparições. Mas algo se perdeu. O acadêmico Marinetti devia ser tratado por "sua excelência". Sintomaticamente, a imprensa abandonou o "periodismo futurista", assumindo um tom sóbrio no relato da nova viagem à América do Sul. Sem dúvida, algo havia se perdido na adesão incondicional ao fascismo. As palavras-em-liberdade.
O que o Brasil representou para o futurista? No dia 20 de maio de 1926, o "Jornal do Comércio" registrava as impressões favoráveis do colunista que se assinava C.A. sobre a turnê de Marinetti. Talvez motivadas por uma esperança: "É verdade que o Sr. Marinetti prometeu louvar a nossa natureza com literatura futurista. Mas isso são coisas futuras. (...) Temos, porém, ai de nós, o terror do estrangeiro que sombrio nos olha lá de cima, com severidade de crítico. Que dirá o malvado a respeito de nossos céus e de nossos mares? Que dirá da nossa gente?".
Como vimos, Marinetti cumpriu a promessa com "Velocità Brasiliane", poema-reportagem sobre a natureza tropical e os contatos que manteve com a intelectualidade brasileira. Aliás, na primeira conferência


De um lado, a exuberante natureza, de outro, o progresso tecnológico; por fim, a fusão dos opostos


realizada no Rio de Janeiro, uma versão inicial do poema foi lida. Ao aliado Graça Aranha, o futurista reservou a revelação: "Caro Arãnha (sic), Rio de Janeiro é um fruto tropical que tem um suco delicioso: a velocidade dos seus automóveis".

A cobra e a arma
De um lado, a exuberante natureza; de outro, o progresso tecnológico. Por fim, a fusão dos opostos, obedecendo ao impulso técnico-primitivo das vanguardas. Eis o Brasil de Marinetti: uma oportunidade de exercitar os músculos de uma sensibilidade italiana nascida no Egito, como na fotografia em que segura uma cobra como se portasse uma arma. Não há porém certeza sobre o local da reveladora cena. No seu verso, lê-se a inscrição "photo (?) à San Paol - Brasil". É possível: o Instituto Butantã encantou o futurista assim como o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, conforme se depreende dos seus "Diários". Provavelmente não: nesses casos, a geografia se dilui ante o estereótipo.
Na verdade, o Brasil de Marinetti se assemelha ao Brasil das recentes exposições que viajam pelo mundo: uma natureza avassaladora disfarçada por eventuais cidades planejadas. A alquimia oswaldiana ainda não se cumpriu. Como transformar pau-brasil em poesia de exportação? (4)

Notas
1. Telegrama enviado em 23 de maio de 1926. "Filippo Tommaso Marinetti Papers". General Collection, Beinecke Rare Book and Manuscript Library, série 3ª, caixa 7, pasta 76;

2. "Filippo Tommaso Marinetti Papers". General Collection, Beinecke Rare Book and Manuscript Library, série 10ª, arquivos especiais, caixa 53, pasta 1978. Além do contrato, essa pasta contém a documentação referente ao número de ingressos vendidos e à remuneração de Marinetti;
3. Idem, série 3ª, caixa 15, pasta 876. Carta enviada em 3 de dezembro de 1921, grifo do autor;
4. A pesquisa em que se baseia este texto foi concluída graças à bolsa John D. and Rose H. Jackson, concedida pela Beinecke Library da Universidade Yale (Estados Unidos). Agradeço a Vincent Giroud pelo auxílio na pesquisa, a K. David Jackson e Josefina Ludmer pela oportunidade de debatê-la. A Jeffrey Schnapp, agradeço a valiosa orientação inicial, na Universidade Stanford (Estados Unidos). Este artigo foi escrito sob os auspícios de uma "Overseas Visiting Scholarship", concedida pelo St John's College da Universidade de Cambridge (Reino Unido).

João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e organizador de "As Máscaras da Mímesis" (Record) e "Interseções" (Imago).

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