São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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+ teatro

Organizado por Heiner Müller, "O Declínio do Egoísta Johann Fatzer" reúne fragmentos teatrais produzidos por Bertolt Brecht entre 1927 e 1929

A encenação da guerra e do sofrimento

Sílvia Fernandes
especial para a Folha

O Declínio do Egoísta Johann Fatzer", publicado pela Cosac & Naify em tradução primorosa de Christine Röhrig, é a seleção e a organização particular de Heiner Müller para as mais de 400 páginas do que se conhece como "Material Fatzer", um conjunto de fragmentos teatrais produzidos por Bertolt Brecht entre 1927 e 1929, período de predomínio das peças didáticas, a que pertencem, por exemplo, "O Vôo sobre o Oceano" (1929), "Aquele Que Diz Sim, Aquele Que Diz Não" (1929-1930) e "A Peça Didática de Baden-Baden sobre o Acordo" (1929). No Brasil, alguns fragmentos do Fatzer foram editados pela Paz e Terra no "Teatro Completo de Bertolt Brecht", traduzidos por Ingrid Koudela, autora de excelente ensaio sobre o tema em "Brecht na Pós-Modernidade" (ed. Perspectiva) . No prefácio à edição atual, Müller informa que, em sua versão, procurou combinar os fragmentos estabelecendo "relações arbitrárias" entre as muitas variantes do texto, compondo um quebra-cabeça com que Brecht, provavelmente, não teria sonhado. A confissão de arbitrariedade não impede, entretanto, que o transgressivo autor de "Quartett" seja absolutamente fiel a seu predecessor no Berliner Ensemble, à medida que realiza uma intervenção contemporânea num texto cujo inacabamento é, em parte, exigência intrínseca do material. Recusando-se a completar a obra, Brecht indica claramente que Fatzer é apenas um recorte dos processos inconclusos de uma época complexa demais para permitir fechamentos prematuros. Por isso trabalha os fragmentos como "blocos rudes" da história alemã do princípio do século 20, elegendo quatro desertores da Primeira Guerra Mundial como protagonistas de um jogo de experimentos teatrais, com estatuto de modelo. O esboço da fábula, um entre os 50 que organizou, alinhava a vida desses soldados ao pano de fundo da guerra, do desemprego, da fome e do fracasso da revolução socialista de Liebknecht e Rosa Luxemburgo, anunciando um princípio dramatúrgico recorrente em sua obra, de contraposição do indivíduo e do mundo, da temporalidade não-dialética e da dialética da história, que Althusser detecta com precisão em "Mãe Coragem". Como nesse texto, o contexto de Fatzer é o da guerra. Com seus companheiros Büsching, Kaumann e Keuner, o protagonista deserta e se esconde num porão, enquanto tenta conseguir carne no mercado negro, convencendo um soldado a lhe entregar parte do carregamento destinado ao Exército. No entanto -e essa é uma das cenas nucleares da peça- não aparece no lugar e hora combinados para a entrega, deixando os outros sem comida, pois não conhecem o fornecedor. Esse "desvio" de Fatzer faz parte de uma minuciosa sucessão planejada por Brecht/ Müller, como a briga com os açougueiros, que põe em risco a segurança do grupo e contribui para esboçar o anarquismo de Fatzer. No entanto o tratamento que Brecht dá à personagem é, no mínimo, paradoxal. Ao mesmo tempo em que critica o grande desertor, o soldado a-social que não se alinha ao coletivo, mantendo-se até o fim como traidor dos companheiros, o dramaturgo escolhe uma via experimental para o trabalho com seu protagonista, como se ensaiasse as possibilidades de ação de um indivíduo literalmente soterrado pela guerra, que afirma, numa das cenas iniciais: "Procuro um jeito de mostrar a mim mesmo o que se passa comigo". Nesse impulso demonstrativo, Brecht ilumina as ações de Fatzer com inúmeros comentários do coro, na tentativa de esclarecer o anarquista por meio de uma lição socialista, enfatizando as "consequências sociais do comportamento a-social", sem deixar, no entanto, de invocar o impulso emancipatório do egoísta, que lembra, em certas passagens, um revolucionário em potencial. Nesse sentido, Heiner Müller tem razão quando vê no anarquismo de Fatzer uma provocação à prática teórica de Brecht, na medida em que suas reflexões sobre a representação do a-social e seu uso por um Estado revolucionário são decididamente ambivalentes. Ambivalência reforçada pelo contraponto entre esse experimentador anárquico, quase um Baal, e a personagem Keuner, um pensador cuja suposta sabedoria e comprovada disciplina partidária sem dúvida antecipam o funcionário da máquina cultural stalinista, como nota José Galisi. Aproximadas na montagem textual de Heiner Müller, as duas personagens sublinham um dos núcleos mais duros da obra de Brecht, justamente a contraposição de experiências que não puderam amadurecer, pois foram abortadas pela história, especialmente com a ascensão do nazismo.

Um novo posto
Heiner Müller continua essa reflexão inconclusa, não para completar o "Fragmento Fatzer", o que seria negar a história, mas para salientar questões implícitas no material que não puderam vir à luz por falta de amadurecimento histórico e formal. Nesse sentido, o final aberto do texto projeta não apenas uma visão pessimista do futuro, quando os olhos de Fatzer não vêem "vencedores no mundo de vocês, só vencidos", mas também convoca o protagonista para um novo posto, pois "o derrotado não escapa à sabedoria".
Encenado pela primeira vez num espetáculo duplo no Schauspielhaus de Hamburgo, em 1978, dirigido por Karge e Langhoff, "O Declínio do Egoísta Johann Fatzer", um "antitexto de teatro", manteve-se fiel a seu caráter de experimento histórico, colocando o problema candente do terrorismo. Ecoando os temas da desobediência, da anarquia e da deserção no processo da facção Baader Meinhoff, fazia associações com as revoltas de 1919 em Munique, além de prodigalizar referências a Artaud, Bataille e ao poeta Peter Paul Zahl, condenado a 20 anos de reclusão por ter ferido um policial em uma manifestação.
A polêmica inevitável, que incluiu a censura ao programa do espetáculo, talvez comprove a eficácia das intenções brechtianas. Em 1948, diante de uma assembléia de estudantes em Leipzig, Brecht lembrou que ensaiava um teatro para a "produção científica de escândalos", visando à divisão política do público ao invés da acomodação ilusória no consenso de uma estética.


Sílvia Fernandes é professora de história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "Grupos Teatrais Anos 70" (ed. Unicamp) e "Memória e Invenção" (Perspectiva).


O Declínio do Egoísta
Johann Fatzer
256 págs., R$ 40,00 de Bertolt Brecht. Trad. Christine Röhrig. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/ xx/11/ 3218-1444).



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