São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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+ brasil 503 d.C.

Esquerdas desprevenidas


Fracasso dos socialistas nas eleições presidenciais francesas evidencia sua dificuldade em lidar com a violência organizada, derivada da aposta na escatologia do progresso da razão


por José Arthur Giannotti

O susto que Jean-Marie le Pen pregou na política francesa expôs de maneira espalhafatosa uma virada para a direita que tem ocorrido em outros países da Europa, colocando em xeque a esperança de que o esgotamento das políticas neoliberais reforçaria movimentos de esquerda. Se teve como resultado eleger o direitista Jacques Chirac com esmagadora maioria de votos e, provavelmente, reforçar os candidatos de esquerda nas próximas eleições parlamentares, não deixa de expor a fragilidade prática e teórica das esquerdas no que respeita à questão da segurança, um dos eixos da discussão política atual e pivô da propaganda direitista. Não lhes cabe retomar a questão pela raiz e repor o desafio noutro plano? Se é para simplesmente chamar a polícia e mandar prender, que esse serviço seja feito pela direita, que nunca duvidou da eficácia da pena de talião: olho por olho, dente por dente.
Mas a unanimidade tecida em torno do discurso policialesco da direita não revela um traço muito peculiar da brutalidade das relações sociais contemporâneas: sua gratuidade e irracionalidade? Por que tanta violência quando se conhecem os meios institucionais e técnicos para combatê-la, no mínimo para reduzi-la a explosões localizáveis? Não é o que transparece na afirmação de que o combate eficaz não ocorre por falta de vontade política? Mas esse diagnóstico simplório transforma a política numa questão de vontade, ocultando as várias formas da violência, tal como se exerce hoje em dia, sendo que a própria atividade política não está imune a ela.
Como vários analistas têm apontado, vivemos numa sociedade de riscos. De um lado, estamos sempre negociando com as normas sociais, avaliando as vantagens e as desvantagens em segui-las, de outro, além de tratar de socializar o risco individual, as instituições encarregadas de vigiar o exercício dessas normas também emprestam sentidos vagos e às vezes contraditórios a elas. Não é à toa que cada um de nós, ao longo da vida, está sempre lidando com a questão de sua própria identidade: pessoal, civil, étnica e assim por diante. A questão do emprego evidencia esse traço. Numa sociedade em que a própria subsistência física do indivíduo depende de um salário, é previsível que cada um se sinta ameaçado pela precariedade dos empregos formais, pela instabilidade dos empregos informais, pelo desemprego efetivo ou possível e assim por diante.
Ora, essa ameaça atinge a sobrevivência física das pessoas e o alcance de seus relacionamentos sociais. Isso não acontecia numa sociedade tradicional, em que as relações de parentesco ou de pertença a um grupo ou classe asseguravam ao menos uma matriz de identidade a ser conquistada. Nas sociedades contemporâneas avançadas, em contrapartida, quando o capital explora as diferenças de produtividade do trabalho coletivo assim como se torna capaz de criá-las, nem mesmo a identidade do trabalhador está assegurada; pois tanto seu parceiro configura ameaça virtual à sua existência como empregado quanto implode a figura do capitalista empreendedor. Até mesmo aquelas relações sociais pré-capitalistas, que eram reinventadas pelos marginalizados do exército de reserva, não passam hoje de expedientes precários.
Ao ressaltar certos efeitos perversos do processo de assalariamento instável que atinge a sociedade como um todo quero mostrar apenas que, se na verdade se dissolveu para pior aquele tipo de violência que Marx havia detectado no seio da sociedade capitalista, outro ainda mais perverso apareceu. A exploração generalizada pela mais-valia se processava sob o manto de uma relação justa, juridicamente definível, de compra e venda da força de trabalho, de sorte que, se ela abria as portas para uma exploração feroz a ser exercida no local de trabalho, também colocava no horizonte um ideal de justiça e equidade. Não há dúvida de que a exploração do trabalho continua mais feroz do que nunca, mas agora desprovida de seu manto jurídico.
Se o capital ainda explora, de um lado, uma diferença de produtividade entre o que o operário produz e aquela média social que calcula seu salário, de outro se aproveita das diferenças de produtividade vigente nas várias regiões do planeta, lidando estrategicamente com elas, quando não as cria em seu proveito, desvendando-se a si mesmo como força além de qualquer legalidade. Tende a colocar a seu serviço os ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais e instala uma concorrência entre as categorias de trabalhadores que ultrapassa os padrões dados pelas médias regionais de produtividade, por conseguinte indo além das leis que observam seu justo funcionamento. Dada essa situação, até mesmo as leis trabalhistas se fragilizam diante do fantasma do desemprego, o que atinge igualmente os empregados que, por causa da idade ou da qualificação defasada, não têm condições de acompanhar o ritmo acelerado das capacitações.
Numa economia da informação, o trabalhador sobrevive enquanto se informa, passando todos a sentir na pele o risco de ficar para trás, convivendo com uma instabilidade que coloca em xeque suas respectivas identidades sociais. Tudo se passa como se todos fossem desempregados potenciais. É natural que, sabotado o ideal de justiça que se punha no horizonte das sociedades capitalistas tradicionais e trazendo para o primeiro plano a questão das identidades pessoais, os indivíduos se equilibrem aferrando-se a identidades culturais como as de gênero, étnicas e a outras tantas razões que lhes permitem compensarem a irrazão das atuais relações sociais de trabalho. O capital e o trabalho tomam a lei antes de tudo como instrumentos "ad hoc" de sua própria sobrevivência.
Como era de esperar, esse estilhaçamento das bases em que assentavam as identificações de classe, ao instalar agora um mero conflito entre ricos e pobres, seja entre grupos seja entre nações, termina promovendo toda sorte de microviolências no nível dos relacionamentos interpessoais. A precariedade das relações aparentemente igualitárias de compra e venda da força de trabalho enseja uma espécie de guerrilha dos assalariados entre si: o outro ameaça a existência de cada um, de sorte que sua identidade, que sempre contou com o espelhamento no outro para se construir, passa agora a trazer em si mesma uma alteridade adversa. Não é a pobreza nela mesma que causa toda sorte de violência, mas uma situação em que cada um se sente ameaçado no que tem e imagina superar essa ameaça possuindo o que não tem. A questão social deixa de residir numa melhor distribuição da propriedade para se resumir no desafio de ter mais a fim de proteger o que já tem. Cada um se comporta como se carregasse em si mesmo um inimigo pronto a ser materializado no outro, pelo simples fato de ser diferente dele. No fundo, nos sentimos como se estivéssemos prestes a ser sequestrados por nós mesmos. Essa dualidade íntima, essa violência que praticamos contra nós mesmos, não se aquietaria na medida em que fazemos do outro a instância de um mal radical? Quanto mais diferente, mais ameaçador ele se torna. E, para que essa diferença se cristalize e se torne observável, não é preciso que venha a se instalar na pele, na raça ou, enfim, em algum traço cultural? Se à primeira vista os conflitos aparecem como se fossem choques entre civilizações, não é porque cada um sente ameaçada sua própria civilidade, corroída por uma barbárie cotidiana? Não é quando o exercício da norma se vê reiteradamente questionado que a normatização dela própria, particularmente o direito, se converte num ideal que deixa na margem as condições de seu cumprimento? Por que imaginar que os conflitos contemporâneos possam ser resolvidos por instâncias jurídicas, quando todos sabemos que os julgamentos se processam por instituições deflagradas, quando os culpados são encarcerados em escolas do crime e assim por diante? Não há dúvida de que as normas cristalizadas em instituições jurídicas têm desempenhado extraordinário papel na luta pelo reconhecimento de direitos. O que seria dos movimentos sociais se não pudessem se socorrer nos tribunais? Se por certo, ao serem reconhecidos, terminam reforçando o próprio Estado, não deixam igualmente de reformá-lo, contribuindo assim para valorizar o Estado de direito. Mas nos últimos tempos a frequência e a amplitude das ações terroristas vêm corroendo a crença na democracia e na eficácia do direito internacional. Depois dos ataques ocorridos em setembro, quando George W. Bush, sem especificar o inimigo nacional, declarou os Estados Unidos em guerra contra o mal, não se inaugura um novo tipo de conflito, que passa por cima de todas as convenções firmadas para limitar a irracionalidade da própria guerra? Isso acontece paradigmaticamente no Oriente Médio, quando leis e tratados valem apenas como instrumentos da violência. As forças armadas israelenses simplesmente não distinguem inimigos e população civil, deixam de socorrer adversários feridos, atiram em ambulâncias, impedem a cobertura da imprensa e assim por diante. A guerra deixa de se processar entre Estados-nação para se converter numa luta entre nações cujos respectivos Estados, ou Estados em formação, passam a ficar sob a ameaça de um inimigo sem rosto, que pode até mesmo habitar o interior de seu próprio território. É de notar ainda como esse tipo de conflito está longe da guerra civil, quando um grupo trata de tomar o poder para reformar o Estado, ou da guerra revolucionária, cujo objetivo final seria a abolição do próprio Estado. O Estado-nação ameaçado abre mão daqueles ordenamentos jurídicos que legitimariam a violência exercida para se transformar ele mesmo num grupo terrorista. Em vez de se legitimar, agindo segundo a lei, passa a agir em nome da moral, como se existisse a moral universal. Cada parte, ao ver-se acuada, identifica-se com o Bem em luta contra o Mal.

Estado apropriado
Não nos importa aqui responsabilizar os promotores do conflito. Tão-só atentemos para a forma que a luta assume a partir do momento em que palestinos, acuados, recorrem ao terror. Não se trata mais de uma forma desesperada de guerrilha, em que grupos, excluídos do jogo político, passam a atacar representantes do poder constituído, sejam personalidades políticas, sejam soldados uniformizados.
Os grupos terroristas atingem indiscriminadamente a população civil, visando minar o apoio que ela empresta ao governo constituído. Fora o ódio pessoal, o objetivo é abalar a base de sustentação civil do governo, mostrar sua fragilidade no cumprimento do dever de propiciar segurança a todos. Note-se ainda como o terror difere do assassinato anarquista, que, deixando-se conduzir pela volúpia do negativo, numa bela expressão de Bakunin, atinge um representante do poder. Tal como o ETA ou as Farc, o terror político da Al-Qaeda ou do Hamas visa o representante de uma cultura, no caso, o judeu como invasor real ou potencial.
Como reage o governo de Israel? Despede-se das formalidades pelas quais poderia exercer a violência legal, para combater como se fosse uma instituição privada qualquer. É como se o Estado fosse apropriado por um governo que, agindo como bandido em nome da restauração do Bem, prometesse restaurar o Estado depois de cumprir a gloriosa tarefa de erradicar o Mal, vale dizer, o outro adverso. Obviamente esse despojar-se do Estado de direito só é possível para instituições ricamente apoiadas, pois o governo liderado por Sharon não teria livre terreno para exercer sua guerra privada se não contasse com o apoio, patente ou sub-reptício, mas sempre maciço, dos EUA.


Não é à toa que nas favelas dominadas pelo tráfico de drogas outro poder passa a distribuir "justiça" e a dirimir conflitos; sabe perfeitamente que não dispensa nem poderá substituir o Estado, mas sabe criar um mini-Estado paralelo


E, ainda, com a indignação meramente verbal dos países europeus e a negligência estudada dos outros Estados árabes. Mas esse confronto entre dois beligerantes privados possui uma característica inédita. Coloca face a face duas organizações que, possuindo o conhecimento de si e do inimigo, tratam de impedir que o outro se organize politicamente. Sempre foi preciso estudar o inimigo para avaliar todos os seus recursos de ataque, mas a guerra no Oriente Médio tenta evitar que os palestinos se constituam como Estado e, desse modo, se dispersem como nação. Se no início as Forças Armadas israelenses tomam a população civil como inimiga, desprovida de qualquer direito, oprimindo-a, por conseguinte, como se fosse um bando de animais assustados, é para, em primeiro lugar, separar nessa massa informe os membros possíveis das organizações terroristas, muitos executados sem nenhum julgamento formal; em segundo lugar, aproveitar-se dessa limpeza moral para caçar funcionários das organizações palestinas como se fossem indivíduos privados, destruindo assim a viabilidade de um governo palestino.

Inviabilizar o poder
Não é por isso que se insiste em considerar Iasser Arafat como se fosse mero terrorista? Mesmo que se crie um Estado da Palestina, as instituições estatais perderam sua capacidade de operar. Obtida a vitória, se os outros Estados árabes não lograrem uma resposta adequada, Sharon estará livre para continuar a política dos assentamentos judeus em territórios palestinos, comendo por dentro uma nação como um câncer espalha suas metástases. As portas lhe estarão abertas para a instalação da Grande Israel e para tratar os palestinos remanescentes como animais acuados, cuja única reação seria fuga ou submissão a um Estado fantoche. A esse refinamento outras organizações terroristas não conseguiram chegar. Se a Al-Qaeda não ataca como um anarquista entusiasmado, mas planeja minuciosamente seu golpe e trata de conhecer todos os movimentos do adversário, não é por isso que foi capaz de distinguir, nas vítimas do desastre das torres gêmeas, os mais e os menos perigosos, os mais ou menos adversários. Nunca poderá inviabilizar a organização política dos EUA, no máximo conseguirá paralisar alguns de seus sistemas; o vírus que transmite não desliga seu computador político. Na melhor das hipóteses terá como consequência, depois da reação violenta dos conservadores, despertar a consciência americana. Mas importa observar nessa altura que a inviabilização política do inimigo só se torna possível quando, de um lado, se detém aquela massa de informações que somente um Estado altamente sofisticado logra acumular, e, de outro, quando conta com a anuência de um império. Não é por isso, todavia, que essa nova guerra se confunde com as antigas guerras imperialistas, quando a potência hegemônica põe e dispõe do poder político do inimigo, sem inviabilizar, contudo, sua governança. Não é na mesma direção que caminha o crime organizado? Igualmente procura conhecer o inimigo nos meandros de sua governança -poucos conhecem a estrutura da polícia e dos presídios brasileiros como o PCC- e muitas vezes precisa se alojar nos aparelhos de Estado para armar a rede de informações de que necessita. E tão logo consegue neutralizar o poderio político do inimigo, trata de substituí-lo por outra estrutura de poder, favorável a ele e que resguarde o terreno conquistado. Não é à toa que nas favelas dominadas pelo tráfico de drogas outro poder passa a distribuir "justiça" e a dirimir conflitos. Sabe perfeitamente que não dispensa nem poderá substituir o Estado, mas sabe criar um mini-Estado paralelo. O que tem tudo isso a ver com a incapacidade das esquerdas de enfrentar o desafio da violência organizada? Lembremos que viram na revolução a parteira da história, sendo que aquela a ser exercida contra o capital, na qualidade de violência suprema, seria capaz de abolir o Estado e instalar no lugar dele o governo da razão. Mas assim se viam incapacitadas de pensar uma razão que, vindo a ser processo, também geraria comportamentos e instituições irracionais. Mas, à medida que apostavam na escatologia do progresso da razão, naturalmente adiavam para o futuro a análise da violência presente. Exemplifica o estudo da questão judaica feito pelo jovem Marx, que, aplicando um esquema neo-hegeliano, adiava a solução que somente poderia ser encontrada depois da abolição do sistema capitalista. Estava longe de seu horizonte a possibilidade de que o capitalismo viesse a ser reformado a tal ponto que, embora continuasse a produzir riqueza na base da exploração do trabalho, pudesse ser controlado por forças sociais politicamente organizadas. Mas a partir desse momento não se instala assim um contínuo jogo entre razão e irrazão? Não se tornam as instituições facas de dois gumes, demandando novas técnicas para poder ser empregadas eficazmente?

Força legal e ilegal
O que fazer, ademais, quando se deixa de acreditar que a violência suprema prepararia o terreno para que as outras violências fossem tratadas apenas como doenças do corpo social? Como enfrentar o desafio de que, mantido o Estado -por certo constantemente reformado-, o exercício da força legal haverá de se confrontar com outras forças que pretendem se exprimir e se organizar politicamente, abrindo um conflito em que cada parte procura impedir a governança do outro?
O tráfico de drogas não se "legitimaria" se não contasse, de um lado, com os interesses dos plantadores de coca, de outro, com as necessidades destrutivas dos usuários e, no meio, com o desespero de tantos inocentes-úteis marginalizados. Se a isso se soma a possibilidade de exercer um poder informatizado, consegue organizar-se "politicamente" como um pré-Estado.
Daí o impasse: o sistema político só consegue combatê-lo se tolerar ações "políticas", vale dizer, complementando-se por uma violência na margem da lei que venha a atingir o inimigo no plano em que se move. Mas, em vez de lamentar esse rebaixamento da política, cujo risco de fascismo é evidente, não seria mais produtivo perceber que traz consigo a virtualidade de sua revitalização, ensejando novos tipos de controle em nível local? Sejamos realistas, a violência contra a governança do outro somente poderá ser combatida por outra contraviolência, que, socorrendo-se das armas da informação, impeça que o inimigo se constitua como organização e passe a representar interesses difusos.
Mas, para evitar que o exercício dessa força ultrapasse demasiadamente os quadros institucionais, é preciso que esses mesmos quadros se tornem maleáveis, não porque sejam regulados por normas ambíguas, mas porque estão subordinados a instituições preparadas para avaliar os excessos cometidos. O desafio não constituiria em conciliar a política com as "políticas", tentando institucionalizar democraticamente os espaços marginais onde possam ser avaliados os excessos que a nova forma de luta propicia?

Nota
Leram e comentaram este texto meus amigos Miriam Dolhnikoff, Luciano Codato e Marcos Nobre, aos quais agradeço os comentários e os reparos.

José Arthur Giannotti é filósofo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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