São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ polêmicas

Sartre esteve no centro das mais importantes polêmicas que marcaram a vida cultural e política da França no pós-guerra. Essas diatribes se inserem na longa tradição de um país que reserva para seus intelectuais um papel de intervenção pública sem paralelos.
O antecedente mais imediato é Zola, que durante o "affaire Dreyfus" (um caso de perseguição a um oficial judeu do Exército francês), dividiu o país com o panfleto "J'Accuse" (Eu Acuso). Mas essa linhagem de intelectuais "engajados" remonta a Voltaire, no século 18. Tanto é assim que em 1960, quando Sartre apoiou o movimento de independência da Argélia, os conservadores pediram ao general De Gaulle que perseguisse o autor de "O Ser e o Nada", recebendo resposta ao mesmo tempo irônica e reverente: "Não se prende Voltaire".
A grande diferença no caso de Sartre é que suas maiores polêmicas não ocorreram com interlocutores distantes, mas com amigos de longa data: Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty e Raymond Aron.

Albert Camus
A ruptura teve como estopim a publicação de "O Homem Revoltado", livro de 1951 em que um dos alvos de Camus são as legitimações da violência por intelectuais de esquerda que se alinhavam com os comunistas no momento em que informações sobre os expurgos stalinistas vinham a público. Sartre, que em 1952 assumiria seu apoio incondicional ao Partido Comunista Francês, fez publicar no mesmo ano, em "Les Temps Modernes", um artigo no qual Francis Jeanson acusava Camus de negar qualquer papel à história e à economia na gênese das revoluções ("Camus não acredita nas infra-estruturas", escreve Jeanson), desaguando numa "moral de Cruz Vermelha".
Camus endereça uma carta irônica e violenta ao "sr. diretor de "Temps Modernes'": "Estou cansado de ver velhos militantes que nunca recusaram nenhuma das lutas de seu tempo receberem lições de eficácia por parte de censores que nunca colocaram nada além de suas poltronas no sentido da história", escreve ele, aludindo ao fato de que Sartre dormia na Comédie Française no dia da Libertação de Paris, ao fim da Segunda Guerra Mundial.
A carta saiu na revista junto com a resposta de Sartre, que começa com a famosa declaração de ruptura -"Meu caro Camus, nossa amizade não era fácil, mas sentirei falta dela"- e prossegue na defesa de seus engajamentos num momento de ascensão da Guerra Fria que não toleraria neutralidades: "A cortina-de-ferro é apenas um espelho, e cada uma das metades do mundo reflete a outra metade. A cada volta da porca aqui corresponde uma volta do parafuso lá, e afinal, aqui e lá, somos os parafusadores e os parafusados".

Merleau-Ponty
Em termos menos violentos, mas por razões semelhantes, a parceria de Sartre e Merleau-Ponty em "Les Temps Modernes" chegaria ao fim em 1953, numa troca privada de cartas. O motivo, agora, era a divergência quanto ao papel do filósofo diante da história presente: para Sartre, o distanciamento postulado por Merleau-Ponty em relação aos fatos era um refúgio subjetivo, que o desautorizava a julgar qualquer ato político; para Merleau-Ponty, Sartre era um refém dos fatos que, sob a alegada aceitação das ambigüidades de cada situação, tinha a ambição de ter um domínio sobre a marcha da história.

Raymond Aron
Ironicamente, coube ao liberal Raymond Aron -único desses amigos que, desde os tempos em que ambos estudavam juntos na École Normale Supérieure, divergia frontalmente de Sartre- ser aquele com quem ele se reconciliaria ao final da vida, em 1979, quando as ideologias cederam lugar a uma luta comum pelos direitos humanos dos "boat peoples", os refugiados vietnamitas que tentavam escapar do inferno criado pelos radicalismos políticos. (MCP)


Texto Anterior: O filósofo midiático
Próximo Texto: Em busca do homem total
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.