|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O filósofo midiático
Principal estudioso da obra de Sartre, Michel Contat fala de sua defesa do
uso de rádio, jornal e TV pelos intelectuais, lembra seu amor "erótico" pelo
cinema e diz que sua obra é ainda a melhor crítica já feita ao capitalismo
DO ENVIADO ESPECIAL A PARIS
Expoente da crítica genética,
que busca abrir novas linhas
de análise e interpretação a
partir do estudo de manuscritos originais, Michel Contat é hoje o
principal estudioso da obra de Jean-Paul Sartre. Dirige em Paris, no Centro Nacional de Pesquisa Científica,
a equipe que pesquisa os documentos originais de Sartre.
Profundo conhecedor de sua vida,
obra e seu pensamento, Contat lembra, na entrevista a seguir, que Sartre
foi um ardoroso defensor da apropriação das "mass media" pelos intelectuais e teria se servido muito
mais da TV se ela não fosse propriedade do Estado, o qual criticava.
Contat, que foi o responsável, com
Michel Rybalka, pela publicação das
"Oeuvres Romanesques" (Obras
Romanescas, Gallimard, 1982), lembra também que Sartre era apaixonado pelo cinema, ainda mais do
que pelo teatro -no fim da vida,
"mesmo quase cego, ele ainda "via"
filmes na TV".
(MFP)
Folha- Sartre é a figura pública mais
importante do século 20 na França?
Michel Contat - Por volta de 1960,
havia três franceses conhecidos em
todo o mundo: Charles de Gaulle,
Jean-Paul Sartre e... Brigitte Bardot.
A celebridade de Sartre como intelectual data do pós-guerra e ele próprio a explicou como sendo uma
compensação que a França encontrou para o fato de ter se tornado
uma potência secundária: sua cultura torna-se um produto de exportação de grande valor simbólico e seus
escritores, em conseqüência, tornaram-se "bens nacionais".
Foi, de fato, um bem nacional, mas
que nunca deixou de contestar tanto
a França, em suas ilusões de grandeza, quanto a cultura francesa, na medida em que se tornara uma cultura
burguesa, isto é, particular, ao invés
de universal. Sartre quis ser um
"universal singular".
Folha - Qual a sua importância para
o jornalismo moderno, considerando
sua atividade na criação da "Temps
Modernes" e do "Libération"?
Contat - Desde o manifesto da
"Temps Modernes", em 1945, e, em
seguida, em "O Que É Literatura?",
de 1947, Sartre afirma que os escritores devem apropriar-se da "mass
media". Para ele, a reportagem é um
gênero literário inteiramente à parte
e, certamente, não de menor valor.
Nesse aspecto, ele seguia escritores
com Ernest Hemingway e John dos
Passos, além de Arthur Koestler, a
quem admirava, e George Orwell.
Publicou em 1944 uma reportagem
sobre a libertação de Paris, depois foi
aos EUA como jornalista do "Combat", jornal de Camus, e do "Figaro".
Praticou uma espécie de jornalismo literário mas também econômico. Seu "Furacão sobre Cuba", a reportagem sobre a Revolução Cubana, saiu no "France Soir", que, à época, tinha uma tiragem de mais de 1,5
milhão de exemplares, e depois em
livro na América Latina e nos EUA.
Em 1947, ele apresentou um programa de rádio, "La Tribune des
Temps Modernes", por meio do
qual tentava prolongar o trabalho de
reflexão de sua revista. Em condições normais, ele deveria ter ido trabalhar para a TV, mas o monopólio
do Estado sobre esse meio de comunicação de massa o levou a exercer
uma espécie de boicote à televisão.
Folha - Qual é a relação de Sartre
com o cinema?
Contat - Penso que, se as condições
de produção cinematográfica nos
anos 40 tivessem permitido, Sartre
teria feito mais cinema que teatro.
Ele tinha pelo cinema um amor mais
intenso, mais "erótico", que pelo
teatro. Mas foi preciso aguardar até
meados dos anos 50 para que o cinema se abrisse a jornalistas e literatos.
Antes disso, ele estava exclusivamente nas mãos dos produtores e
dos diretores. Mas Sartre foi roteirista para a Pathé, e alguns de seus roteiros foram filmados. Enfim, por
volta de 1960, ele escreveu para John
Houston um roteiro admirável sobre Freud. Sartre amou o cinema
desde sua infância e nunca deixou
de amá-lo. Mesmo quase cego, ele
ainda "via" filmes na TV.
Folha - E qual foi sua importância
para o teatro moderno?
Contat - Ele dominou o teatro parisiense do pós-guerra até o surgimento do "teatro do absurdo" (de
que ele é em parte o pai, com "Entre
Quatro Paredes") e de Brecht, que
exerce uma influência poderosa sobre os criadores do teatro moderno.
É, portanto, um dramaturgo que
tem um papel de passagem entre o
teatro marcado por Ibsen, Strindberg, Pirandello e o teatro de Beckett, depois o de Brecht. Ele via neste
último uma espécie de clássico, mas
não aceitava sua teoria do teatro épico e concebeu contra ela a idéia do
teatro dramático, um teatro em que
haja tanto a identificação quanto o
distanciamento em relação ao herói.
Não se pode dizer que sua concepção tenha exercido influência. Seu
teatro foi rejeitado por Roger Planchon e Patrice Chéreau, que regeneraram o teatro francês moderno.
Uma das razões foi Sartre ter dado
pouca importância à mise-en-scène.
Folha - Pode-se dizer que o debate
sobre os direitos das minorias na
França de hoje e o questionamento do
republicanismo que representa são
problemas já previsto por Sartre, considerando-se seu papel na defesa de
argelinos, árabes e judeus?
Contat - Seu pensamento é fundado na revolta (só se vive a liberdade
por meio da revolta). Portanto, ela
devia necessariamente ir ao encontro das revoltas das minorias. Sartre
apresentou sistematicamente ao
mundo e à sociedade o ponto de vista dos mais desfavorecidos. E, sobre
o conflito entre árabes e judeus, é a
favor e contra todos, sob o risco de
ser rejeitado por ambos -o que, politicamente, causa problemas.
Folha - O que ficou de seu pensamento e de sua literatura?
Contat - Em literatura, acho que "A
Náusea" é uma das obras maiores do
século 20 e "Os Caminhos da Liberdade" são um grande romance desconhecido, superiormente virtuosístico por sua técnica. E os ensaios sobre Baudelaire, Mallarmé e Jean Genet são obras-primas da inteligência.
Em relação à filosofia de Sartre, a
universidade continua a bloqueá-lo,
considerando-o menos importante
que Husserl, Heidegger e mesmo
Merleau-Ponty. É verdade que se
trata de filósofos acadêmicos, enquanto Sartre nunca o fora, ainda
que tenha tido uma formação muito
clássica. Mas o fato de ele ter introduzido a vida cotidiana -e mesmo
os cafés parisienses- na filosofia
continua a chocar os professores,
ainda que seduza os estudantes.
A filosofia de Sartre, que foi muito
popular e chegou a estar na moda,
sem dúvida será redescoberta em toda sua extensão metafísica e social.
A "Crítica da Razão Dialética" pode parecer um pouco bizantina hoje,
quando o contexto da discussão
com o marxismo, assim como o próprio marxismo, desapareceu. Mas
continua sendo a melhor crítica ao
capitalismo e fatalmente ressurgirá.
A filosofia de Sartre dá seu substrato
de liberdade ao materialismo histórico, o qual ainda não deu seu último
suspiro. "Não é minha culpa se a
realidade é marxista", dizia Sartre.
Texto Anterior: Jazz traduz indeterminação do ser em "A Náusea" Próximo Texto: + polêmicas Índice
|