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Anticalvinismo brasileiro
DESFRUTE MUNDANO DA RIQUEZA PREGADO PELA "TEOLOGIA DA PROSPERIDADE" SINTETIZA
O IDEÁRIO
DE TODO
O PAÍS DESDE
OS ANOS 90
DIANA LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1994, o controle inflacionário e as promessas que a nova
moeda fez, a vários setores de uma população brasileira ainda um tanto
receosa, suscitaram variadas
notícias. Quinze anos mais tarde, o fenômeno do consumo
volta a merecer a atenção da
mídia. Endossando o vocabulário classificatório dos institutos de pesquisa de mercado,
nos últimos tempos os jornais
têm trazido a informação de
que emerge no Brasil uma "nova classe média". Como ler esse
fenômeno?
Um olhar mais abrangente
para a vida social brasileira
permite verificar que, a partir
da década de 1990, não é apenas a estratificação econômica
que muda no Brasil.
Dados dos Censos Demográficos produzidos pelo IBGE até
2000 mostram que a paisagem
religiosa do país também está
em transformação: em 1970,
havia 91,1% de católicos e 5,8%
de evangélicos. A partir de
1980, essa proporção se alterou
de forma significativa: nesse
ano, havia 89,2% de católicos e
6,6% de evangélicos; em 1991,
83,3% de católicos e 9,0% de
evangélicos; em 2000, 73,8% e
15,4%, respectivamente.
No mesmo momento em que
se estabelece a chamada "classe C", uma parcela significativa
da população converte-se às religiões evangélicas. A coincidência dessas duas dinâmicas
sugere o rendimento analítico
da clássica premissa weberiana
segundo a qual há uma relação
entre ética religiosa e ethos
econômico. Vejamos por quê.
Dentro do variado horizonte
evangélico-pentecostal, a Igreja Universal do Reino de Deus,
professora da teologia da prosperidade, destaca-se em função
de sua rápida expansão. A igreja foi fundada no Rio de Janeiro em 1977. Em 1990, reunia
269 mil pessoas; em 2000, o
número havia crescido para 2,1
milhões. Estima-se que hoje a
Igreja Universal tenha cerca de
8 milhões de fiéis no país.
Essa denominação pentecostal foi, e eventualmente ainda
é, alvo de duras críticas por
parte da mídia e da população
em geral. Os megaeventos de
cura contra o Diabo, organizados no espaço público, bem como seus projetos políticos, impressionam diferentes instâncias da sociedade desde o fim
dos anos 1980.
Grosso modo, essa igreja é
continuamente acusada de utilizar uma linguagem proveniente do mercado e de servir-se da força persuasiva da televisão para manipular uma massa
de fiéis não raro aludidos como
ingênuos e ignorantes, e vistos
como vítimas de uma mensagem teológica vazia.
O que dizem os fiéis?
Contudo, embora a Igreja
Universal tenha motivado muitas análises, pouca ênfase tem
sido devotada à compreensão
de seus fiéis. Para numerosos
pesquisadores, normalmente
atentos aos templos situados
nas grandes avenidas das cidades brasileiras, essas pessoas
buscariam ali uma resposta
imediata para suas aflições cotidianas e seus anseios de ascensão social.
Mas como explicam sua experiência de fé aqueles que frequentam os templos menores,
próximos a seu cotidiano nas
franjas da vida urbana? Por que
grande parte dos pobres deste
país tem procurado especificamente na teologia da prosperidade, sobretudo desde os anos
1990, soluções para os males
que os atingem?
Inspirada no "Faith Movement" norte-americano, essa
teologia iniciou sua penetração
em muitas igrejas brasileiras
no fim dos anos 1970. No sistema cosmológico da Igreja Universal, assim como na Igreja
Renascer, na Nova Vida e em
outras, a plenitude é um valor
central. O desfrute mundano
da fortuna é coisa sagrada.
Essa teologia prega que, por
meio da força performativa das
palavras, o fiel pode neutralizar
o Demônio, responsável pelos
males que se impõem à vida, e
ter acesso a tudo de bom que a
existência terrena pode oferecer: saúde perfeita, harmonia
conjugal e riqueza material.
A relação entre o cristão e
Deus é contratual: para receber
a graça do Senhor, o cristão deve viver de acordo com a fé, ir
regularmente à igreja, entregar
com assiduidade o dízimo previsto na Bíblia, fazer as ofertas e
"tomar uma atitude".
A teologia da prosperidade
revê a antinomia entre cristianismo e desfrute mundano da
fortuna. Sua mensagem moral
liberta os fiéis das exigências
ascéticas determinadas pelo
calvinismo e pelas denominações pentecostais tradicionais.
Seus crentes estão destinados a viver em harmonia familiar e a serem saudáveis e vitoriosos em todos os empreendimentos terrenos se demonstrarem confiança incondicional
em Deus. O fiel dessa teologia
entende que Deus deseja uma
vida de plenitude a quem trabalha com afinco e vive de acordo
com os preceitos da fé. O bom
cristão pode -e deve- determinar seu acesso a tudo de bom
que a vida oferece.
Assim, por um lado há uma
continuidade entre o protestantismo histórico e a teologia
da prosperidade no que se refere ao rigor diante da obediência
religiosa e do trabalho. Por outro, enquanto a ética calvinista
da predestinação impunha aos
crentes uma atitude ascética, a
teologia da prosperidade sacraliza o usufruto imediato das
possibilidades aquisitivas conquistadas pelo fiel.
Por que, precisamente na década de 1990, parcelas crescentes das camadas populares urbanas deixaram de buscar na
religião apenas orientação sobre como sofrer ou como lidar
com a impotência em face da
agonia familiar?
Por que os pobres brasileiros
não mais se sentem satisfeitos e
recompensados pela ideia de
que Deus todo amoroso lhes
atribuiu uma tarefa, como diria
Weber, ou, por que, contrariando Pascal, sua aposta na existência de Deus não pode mais
prescindir de provas factuais?
Tenho argumentado contra a
visão de que, para os pobres,
largamente expostos ao desemprego ou ao subemprego, a
atratividade da teologia da
prosperidade de um modo geral, e da Igreja Universal, em
particular, reside na promessa
de prosperidade promovida
por meio de uma vigorosa estratégia proselitista.
Essa hipótese não explica por
que essa teologia professada
desde a fundação da igreja em
1977 se torna atraente, a ponto
de ampliar seu número de fiéis
em 25% a cada ano, justo na década de 1990.
Recuso a associação imediata
entre pobreza e participação
religiosa por dois motivos: 1) é
mais do que sabido que, embora maciça, a adesão religiosa
não é a única via nas camadas
populares; 2) nos casos de conversão, as possibilidades presentes no mundo contemporâneo são diversas entre si. Basta
vencer a superfície para se verificar que essa diversidade é interna inclusive ao pentecostalismo, muitas vezes tratado como algo uniforme.
Ressonâncias
Penso que o crescimento da
teologia da prosperidade acontece nesse momento porque é
quando os símbolos articulados
em sua mensagem pastoral -e
mesmo a própria mensagem-
encontram ressonância no sistema simbólico que atravessa a
experiência social brasileira de
maneira mais ampla.
No contexto social em que
essas igrejas vicejam, a pobreza
sempre foi uma fonte de dificuldades. Não obstante, até a
década de 1990, os baixos números sobre sua penetração indicam que o conceito de compensação neste mundo (central
na teologia da prosperidade)
não havia alcançado a mesma
legitimidade religiosa e, portanto, o mesmo apelo entre os
pobres, que vem a ter então.
Desde os anos 1990, quando a
política econômica e social brasileira acata os postulados do
capitalismo pós-social, princípios e termos tomados de empréstimo do campo semântico
do empreendedorismo neoliberal ganham exposição insistente na mídia audiovisual e
impressa, fornecendo sentido a
grande parcela das relações no
Brasil.
Na segunda metade da década, os meios de comunicação,
de maneira hegemônica, passaram a tratar o sucesso econômico e, consequentemente, o
acesso ao mundo do consumo
como resultado do empenho
empreendedor individual.
A Igreja Universal prega que
a salvação acontecerá no mundo para todo aquele que aceitar
a palavra sagrada e se empenhar no trabalho. Mais do que
em outras denominações pentecostais, essa igreja imprime
um tom pedagógico a seus cultos à prosperidade. Durante as
reuniões, os fiéis pedem a vitória, cantam por ela, pagam o dízimo por ela e aprendem sobre
como alcançá-la com o clero,
que lê e comenta casos simples
de sucesso em marketing quase
toda semana.
A pesquisa antropológica não
é capaz de verificar se a fatia da
população que tem sido considerada a nova classe média é a
mesma que está presente nas
igrejas professoras da teologia
da prosperidade.
Mas a etnografia tem demonstrado que os fiéis dessas
igrejas falam com entusiasmo
sobre o alcance de uma vida
melhor a partir da conversão e
que essa vida melhor envolve,
entre outros fatores, um acesso
alargado a bens de consumo.
DIANA LIMA é professora do departamento de
sociologia do Iuperj (Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro).
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