São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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NEOLIBERALISMO EM CHOQUE

O pós-Consenso de Washington

Associated Press - 11.ago.95
Manifestação de trabalhadores argentinos contra o desemprego, ocorrida em Córdoba, em 1995


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

O Consenso de Washington já não é um consenso, mesmo para organizações, como o Banco Mundial, que participaram de sua formulação. Fruto de um seminário que reuniu, em Washington, em 1990, economistas do governo norte-americano e de instituições internacionais, como o Fundo Monetário, o Consenso de Washington passou a ser sinônimo de medidas econômicas neoliberais voltadas para a reforma e a estabilização de economias "emergentes" -notadamente as latino-americanas.
Privatização, controle da inflação, Estado mínimo e liberalização do comércio são algumas de suas receitas, que passaram a ser adotadas por governos do continente -e também de outras regiões- para promover o desenvolvimento de seus mercados.
Para Joseph Stiglitz, vice-presidente sênior e economista-chefe do Banco Mundial, chegou a hora de se falar no "Pós-Consenso de Washington". Em conferência realizada em Helsinque, em janeiro deste ano ("Mais instrumentos e objetivos mais amplos: rumo ao Pós-Consenso de Washington"), Stiglitz levantou uma série de críticas às políticas do Consenso, procurando demonstrar, em retrospectiva, que elas não conseguiram dar respostas a uma série de questões vitais para o desenvolvimento.
O economista do Banco Mundial fala da emergência de um novo consenso, que incluiria necessariamente aspectos relativos ao desenvolvimento humano, à educação, à tecnologia e ao meio-ambiente. "Um dos princípios que faz parte dessas idéias emergentes é que, seja qual for o novo Consenso, não poderá ser baseado em Washington", disse.
O Mais! selecionou três passagens da extensa conferência de Stiglitz, nas quais ele aborda questões relativas à crise asiática, ao controle da inflação, ao papel do Estado e à privatização.


O vice-presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, critica as decisões do Consenso de Washington, conjunto de medidas que divulgou a receita neoliberal nos anos 90; Stiglitz propõe um novo consenso, que contemple emprego, saúde, educação e meio ambiente


JOSEPH STIGLITZ


Gostaria de colocar nesta palestra o tema do nascimento do chamado pós-Consenso de Washington.
Meus comentários levarão em conta dois aspectos. O primeiro é que hoje compreendemos melhor o que deve ser feito para que os mercados funcionem. O Consenso de Washington estabeleceu que para obter bons resultados seria preciso haver comércio liberalizado, estabilidade macroeconômica e sistemas capazes de fixar preços reais. Bastaria que o governo cuidasse dessas questões -essencialmente, bastaria que ele "saísse do meio", deixando de intervir- para que logo os mercados privados passassem a gerar crescimento e alocações eficientes.
Certamente essas questões são importantes para o funcionamento dos mercados. Afinal, é muito difícil os investidores tomarem boas decisões se a inflação está a 100% ao ano. Contudo, as políticas propostas pelo Consenso de Washington são bastante incompletas e, algumas vezes, equivocadas. Coisas importantes foram deixadas de lado: por exemplo, para que os mercados funcionem não basta inflação baixa, é preciso que haja regulação financeira confiável, políticas pró-competição, políticas para facilitar a transferência de tecnologia e transparência nas informações.
Ao mesmo tempo que temos avançado na compreensão dos instrumentos necessários para promover o bom funcionamento dos mercados, também temos ampliado as metas do desenvolvimento: o conceito já inclui outros objetivos, como desenvolvimento sustentável, igualitário e democrático. Hoje, um aspecto importante do desenvolvimento é a procura de estratégias complementares para caminhar simultaneamente no sentido desses objetivos. Na busca dessas políticas, porém, não devemos ignorar dilemas ou escolhas conflitivas, que são inevitáveis. Esse será o segundo tema a ser tratado nesses comentários.


Algumas lições da crise na Ásia do Leste
Antes de entrar nos meus dois temas, gostaria de mencionar um assunto que é uma preocupação de muitos: o significado da crise da Ásia para nosso pensamento sobre o desenvolvimento.
Uma das motivações para que se avançasse além do Consenso de Washington foi precisamente o bem-sucedido, até miraculoso, segundo alguns, desenvolvimento da Ásia do Leste. Afinal, nessa região os países não haviam seguido muito bem os preceitos do Consenso de Washington, mas, apesar disso, de alguma maneira conseguiram o desenvolvimento mais bem-sucedido na sua história.
Na verdade, muitas das políticas adotadas -como controle da inflação e disciplina fiscal- cabiam perfeitamente no Consenso de Washington. Mas não era o caso da política para o setor financeiro. Foi percebendo isso que preparamos e editamos o informe do Banco Mundial intitulado "East Asian Miracle" (O Milagre do Leste Asiático, 1993). O milagre da Ásia do Leste foi também um estímulo para que repensássemos o papel do Estado no desenvolvimento econômico.
Depois da recente crise financeira, as economias da Ásia não são mais citadas como exemplos de sucesso e já são condenadas por suas políticas equivocadas, tidas como responsáveis pela confusão atual. Alguns ideólogos vêm aproveitando os acontecimentos em curso para sugerir que a raiz do problema é o sistema de intervenção ativa do Estado. Falam dos empréstimos canalizados pelo governo e das estreitas relações que ele mantém com os grandes "chaebol" na Coréia.
Esses ideólogos esquecem, entretanto, os êxitos das últimas três décadas, que não foram poucos. Apesar de um ou outro erro, houve, certamente, contribuição do governo para esse sucesso. Foram conquistas reais, não um castelo de areia: a expectativa de vida aumentou, a educação foi expandida e a pobreza reduzida, acompanhando os grandes aumentos do PIB per capita. A confusão financeira temporária não pode, nem deve, diminuir a importância desses avanços.
Mesmo nos casos de empreendimentos diretamente conduzidos pelos governos, vitórias foram conquistadas. Foram construídas siderúrgicas muito eficientes, apesar de os ideólogos da privatização considerarem essas vitórias, no melhor dos casos, acidentais, e, no pior dos casos, impossíveis. Concordo que o Estado deva tratar apenas daquilo que é de seu domínio, deixando a produção de mercadorias para o setor privado. Diria, porém, que o coração do problema em curso não é o fato de que o governo tenha intervindo demais, mas sim, de menos.
Na Tailândia, o principal problema não foi o governo ter orientado os investimentos para o setor imobiliário. O problema foi que os reguladores do governo não conseguiram parar esse movimento no momento certo. Do mesmo modo, na Coréia houve créditos concedidos a empresas já com muitos financiamentos, além de problemas na legislação societária, incluindo uma prática generalizada de subsídios cruzados.
O problema não foi o governo ter canalizado mal o crédito -na verdade, os problemas que enfrentam tantos bancos norte-americanos, europeus e japoneses fazem pensar que eles também canalizaram mal os créditos. O verdadeiro problema foi a insuficiente ação do governo, que subestimou a importância da regulação financeira e da legislação societária.
A crise na Ásia não desmerece o milagre que houve na região. As versões mais dogmáticas do Consenso de Washington não oferecem uma estrutura adequada para entender nem os sucessos das economias da Ásia, nem seus problemas atuais. As respostas à crise asiática fundamentadas nessa visão do mundo provavelmente serão, no melhor dos casos, muito defeituosas e, no pior, contraproducentes.

Fazendo com que o mercados funcionem melhor
O Consenso de Washington foi catalisado pela experiência dos países latino-americanos nos anos 80. Àquela altura, as economias da região não estavam funcionando. O PIB se encontrava em contração há três anos consecutivos no início da década. A incapacidade funcional dos mercados foi claramente relacionada a políticas públicas ineficientes. Registraram-se altos déficits fiscais -muitos deles no leque de 5 a 10% do PIB- e os gastos governamentais, que causavam os déficits, não estavam sendo usados para fins produtivos, mas sim desviados para subsidiar o enorme e ineficiente setor estatal.
Com importações fortemente restritas e pouca ênfase nas exportações, as empresas não recebiam estímulos suficientes para aumentar a sua eficiência ou manter padrões internacionais de qualidade. Num primeiro momento, os déficits foram financiados por meio de créditos -incluindo grandes empréstimos internacionais. As elevações na taxa real de juros nos EUA fizeram frear o processo de endividamento e aumentaram o peso dos pagamentos de juros, obrigando muitos países a recorrer à senhoriagem para financiar o déficit causado pelo alto nível de gastos públicos e a base tributária em processo de retração. O resultado foi inflação muito alta e extremamente variável.
Nesse ambiente, a moeda tornou-se um meio de troca muito caro, o comportamento econômico foi desviado para a proteção do valor mais do que para o investimento produtivo e a variação nos preços relativos causada pela alta inflação minou a transmissão de informações, que é uma das principais funções do sistema de preços.
Em meio a esses graves problemas, formou-se o chamado Consenso de Washington entre economistas do governo norte-americanos, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (Bird). Creio que este seja um bom momento para reexaminarmos o Consenso. Muitos países, como Argentina e Brasil, fizeram a estabilização com sucesso e agora enfrentam desafios na estruturação das reformas de segunda geração.
Outros países sempre tiveram políticas relativamente boas ou enfrentaram problemas bastante diferentes daqueles da América Latina. Por exemplo, na Ásia do Leste, muitos governos têm mantido excedentes fiscais e inflação baixa, que, antes das desvalorizações, estava caindo. As origens das atuais crises financeiras são outras e as soluções não serão encontradas nos termos do Consenso de Washington.
Eu diria que a ênfase na inflação -a doença macroeconômica central dos países latino-americanos, que foi o pano de fundo do Consenso de Washington- levou à implementação de políticas macroeconômicas que talvez não sejam as melhores para o crescimento econômico a longo prazo. Ela desviou a atenção de outras fontes importantes de instabilidade macroeconômica, notadamente os setores financeiros debilitados.
O foco na liberalização dos mercados, no caso do mercado financeiro, pode ter tido um efeito perverso, que contribuiu para a instabilidade macroeconômica. Em termos mais gerais, a ênfase na abertura do comércio exterior, na desregulamentação e na privatização deixou de lado outros ingredientes importantes para construir uma efetiva economia de mercado, especialmente a competição. A competição pode ser tão importante ou mais do que esses outros ingredientes para o sucesso econômico de longo prazo.
Quero argumentar, ainda, que outros ingredientes essenciais ao crescimento econômico foram deixados de lado ou foram pouco enfatizados pelo Consenso de Washington. Um deles, a educação, já foi amplamente reconhecido no seio da comunidade de estudiosos e técnicos do desenvolvimento. Mas outros, como a evolução tecnológica, ainda não receberam a devida atenção.

O sucesso do Consenso de Washington como doutrina intelectual repousa na sua simplicidade. Embora muitos de seus proponentes pensem de forma sutil e sofisticada, as recomendações de políticas derivadas do Consenso puderam ser ministradas por economistas com a ajuda de pouco mais do que simples estruturas contábeis. Os economistas teriam que acompanhar uns poucos indicadores -a inflação, a expansão da base monetária, as taxas de juros, os déficit fiscais e comerciais- e deles retirar um quadro da economia e uma série de medidas.
De fato, houve casos de economistas aterrisarem num país, verificarem esses dados, formularem recomendações macroeconômicas para reformas e logo pegarem o avião de volta -tudo isso em menos de 15 dias.
Há importantes vantagens na abordagem do Consenso de Washington para a formulação de recomendações de política econômica. Ele enfoca problemas de primeira ordem de importância, oferece um esquema facilmente reprodutível e reconhece claramente seus limites para estabelecer os pré-requisitos do desenvolvimento. Contudo, por esses mesmos motivos, o Consenso de Washington não oferece as respostas mais importantes para todas as questões do desenvolvimento. Se nos iludirmos achando que ele possa fazê-lo, as consequências podem ser políticas equivocadas.
Por outro lado, as idéias que quero discutir não são tão simples. Não há termômetros que ofereçam uma leitura fácil do estado de saúde de uma economia. Pior ainda, podem surgir "trade-offs", diante dos quais a tarefa do economista é descrever alternativas, explicando as consequências das diferentes políticas econômicas, sem esquecer, entretanto, que nessas decisões o processo político pode vir a ter um peso determinante. Logo, nem sempre bastam os técnicos e especialistas para definir a política econômica!

Controlando a inflação
O elemento mais importante dos pacotes de estabilização promovidos pelo FMI e outros tem sido o controle da inflação. O argumento a favor de medidas agressivas e preventivas contra a inflação se fundamenta em três premissas.
A primeira delas é a de que a inflação é custosa. Daí a motivação para tentar evitá-la ou reduzi-la. A segunda premissa é a de que, uma vez em alta, a inflação tende a se acelerar descontroladamente. Essa crença oferece uma forte motivação para o erro por excesso de cautela, ou seja, demasiada prevenção na luta contra a inflação.
Finalmente, a terceira premissa é a de que um recrudescimento da inflação custa muito caro para ser revertido. Por essa premissa, mesmo que você hoje esteja muito mais preocupado com o desemprego do que com a inflação, você deverá concentrar-se no controle da inflação para evitar que mais adiante surja a necessidade de uma profunda recessão para reduzi-la. Todas as três premissas são hipóteses que podem ser testadas empiricamente.
Em outro lugar apresentei uma discussão mais detalhada dos dados empíricos. Aqui, gostaria de ser breve. A única evidência que ficou demonstrada é que inflação alta custa caro. Bruno e Easterly (1996) descobriram que quando um país passa da taxa de 40% ao ano, fica preso na alta inflação e no baixo crescimento.
Abaixo desse nível, contudo, nada comprova que a inflação custe caro. Barro (1997) e Fischer (1993) também confirmam que a alta inflação, em média, é negativa para o crescimento, mas falham na tentativa de encontrar provas dos custos de uma inflação em níveis mais baixos. Fischer também encontrou os mesmos resultados para a variabilidade da inflação. Recentes pesquisas de Akerlof, Dickens e Perry (1996) sugeriram que baixos níveis de inflação podem até melhorar o desempenho da economia.
Não pode haver dúvida sobre a falta de provas para a hipótese "aceleracionista" (também conhecida como o conto do gênio que saiu da garrafa para nunca mais voltar ou como a história do plano inclinado, onde só se pode ir para baixo, sendo impossível voltar a subir). Não há provas de que a aceleração da taxa de inflação esteja relacionada a aumentos passados da inflação.
Finalmente, quanto à terceira premissa, alguns trabalhos recentes sugerem que a curva Phillips pode ser côncava e que os custos de redução da inflação podem ser menores do que os benefícios auferidos quando a inflação estava subindo.
Do meu ponto de vista, a conclusão dessas pesquisas sobre as consequências da inflação é a de que controlar a inflação alta ou média deve ser uma política prioritária, mas pressionar uma inflação já baixa não vai levar a um funcionamento significativamente melhor dos mercados.
Em 1995 mais da metade dos países em desenvolvimento tiveram inflação abaixo de 15%. Para esses 71 países o controle da inflação não deve ser uma das grandes prioridades. Nos 22 países com taxas de inflação acima de 40%, o controle da inflação é, provavelmente, uma parte importante de programas de estabilização e reformas -a maior parte desses países está na África, Europa do Leste e antiga União Soviética.
Curiosamente, a ênfase do Consenso de Washington sobre a inflação foi menos relevante na década de 80, quando um número ainda menor de países teve taxas muito altas.

Sobre a privatização
O Consenso de Washington enfatizou mais a privatização do que a competição. De certo modo, foi natural o que fizeram. Não somente havia estatais ineficientes, como suas perdas estavam contribuindo para aumentar os déficits fiscais dos governos e, portanto, para a instabilidade macroeconômica. A privatização iria matar dois coelhos com uma cajadada. Iria, ao mesmo tempo, melhorar a eficiência econômica e reduzir os déficits fiscais. A idéia foi que, uma vez estabelecidos os direitos de propriedade, logo o comportamento dos proprietários na busca da maximização de lucros iria eliminar a ineficiência e o desperdício. Também, a venda das estatais geraria entradas de dinheiro nos cofres vazios dos governos.
Nas economias de transição do Leste Europeu a privatização rápida foi uma aposta razoável. É verdade que houve quem tivesse preferido estabelecer antes uma estrutura jurídica eficiente (incluindo contratos, falência, legislação societária e competição). Mas ninguém sabia por quanto tempo existiria a possibilidade de intervir antes que se fechasse a janela de oportunidades aberta com as reformas. Naquela altura parecia ser uma aposta razoável privatizar rapidamente de maneira global e, depois, mais para a frente, resolver os problemas.
Em retrospectiva, os que defenderam a privatização urgente superestimaram os benefícios e subestimaram os custos, principalmente os custos políticos -com o surgimento de barreiras ao aprofundamento das reformas. Hoje, com o benefício de sete anos de experiência, haveria muito menos justificativas para aceitar os riscos daquela aposta.
Mesmo naquela altura, muitos de nós advertimos contra a privatização excessivamente rápida, sem que antes fosse criada estrutura institucional necessária -incluindo mercados competitivos e agências regulatórias. Junto com David Sappington, em "Fundamental Theorem on Privatization" (Teoremas Fundamentais sobre a Privatização"), mostrei que há algumas pré-condições muito específicas para que a privatização possa realizar os objetivos públicos de eficiência e equidade.
Essas pré-condições são muito similares às condições nas quais os mercados competitivos atingem eficiência. Se, por exemplo, há insuficiente competição, o resultado provável de estabelecer um monopólio privado não regulado será consumidores pagando preços ainda mais altos. Há indicações de que os monopólios privados, se isolados da competição, podem sofrer várias formas de ineficiência e podem não ser inovadores.
Na verdade as grandes empresas, tanto públicas quanto privadas, têm muitas características em comum e, em muitos casos, enfrentam os mesmos desafios organizacionais. Os dois modelos incluem a necessidade de delegar as responsabilidades -nenhum dos dois, nem as assembléias legislativas nem os acionistas, exercem o controle direto das atividades cotidianas da empresa.
Nos dois casos, no topo da hierarquia de autoridade há gerentes que geralmente gozam de uma grande dose de autonomia e livre arbítrio. Tal como nas empresas públicas, a busca de renda sem risco acontece nas empresas privadas. Por exemplo, Shleifer e Vishny (1989) e Edlin e Stiglitz (1995) mostraram não somente que há fortes incentivos para a busca de renda sem riscos por parte de gerentes privados, mas também para ações que possam ampliar as oportunidades para essa busca. Na República Tcheca parece que o experimento audaz com a privatização "voucher" ou de bônus já falhou precisamente devido a esses problemas.
Não há uma distinção muito clara entre o caráter das empresas públicas e privadas. Mais ainda, existe um espectro contínuo de organizações entre os dois pólos. Por exemplo, a "corporatization" (estabelecimento de empresas públicas com autonomia gerencial) mantém a propriedade estatal, mas caminha no rumo de restrições orçamentárias e autofinanciamento. Outra alternativa seria a de organizações estatais avaliadas por desempenho.
Alguns dados sugerem que grande parte dos ganhos com a privatização acontece no período que as antecede. Eles surgem do processo de "corporatization", com a introdução de eficientes incentivos individuais e organizacionais.
A grande importância da competição, mais do que a da propriedade, já foi mostrada pela experiência da China e da Rússia. A China conseguiu crescimento sustentado de dois dígitos depois de ampliar a abrangência da competição, sem privatizar as estatais. Certamente se deparam com vários problemas nas suas estatais, que serão enfrentados, espera-se, na próxima etapa das reformas. Por outro lado, a Rússia já privatizou grande parte da economia, mas até hoje não fez muita coisa em favor da competitividade. Como consequência desse e de outros fatores, o país vive um grave colapso econômico.
Para a teoria econômica convencional é muito difícil abordar o tamanho e a extensão no tempo desse colapso. A economia soviética era repleta de ineficiências, com grande parte da produção dedicada às forças militares. Em tese, ao eliminar essas ineficiências haveria um aumento do PIB -e com a redução dos gastos militares deveria haver um crescimento de consumo. Mas nenhuma das duas coisas está acontecendo.
Também é de difícil abordagem para a teoria econômica convencional explicar o tamanho e o sucesso da economia chinesa nas últimas duas décadas. A economia não só evitou uma estratégia de privatização total, mas também desprezou muitos outros elementos da doutrina de liberalização do Consenso de Washington.
Contudo, a China é a melhor história de sucesso das últimas duas décadas. Isso é visível de várias maneiras. Por exemplo, se as 30 províncias da China fossem consideradas como economias nacionais (na verdade, muitas delas têm mais habitantes do que grande parte dos países de baixa renda), elas teriam ocupado os primeiros 20 lugares no ranking das economias que mais cresceram entre 1978 e 1995 (Banco Mundial, 1997).
Outra maneira de constatar o crescimento chinês está nos dados do crescimento agregado dos países de baixa renda, entre 1978 e 1995: dois terços disso correspondem ao aumento do PIB chinês (apesar de o PIB chinês de 1978 ter sido apenas um quarto do PIB agregado dos países de baixa renda, e sua população era somente 40% do total).
Uma das lições mais importantes do contraste entre a China e a Rússia diz respeito à economia política da privatização e da competição. A privatização de monopólios cria enormes ágios. Tem sido difícil administrar a privatização sem gerar corrupção e outros problemas. Os empreendedores são incentivados a arrematar empresas privatizadas antes de investir e criar suas próprias empresas. Por outro lado, a política de fomentar a competição geralmente cria incentivos para a criação de riquezas. Além disso, uma questão muito importante é o procedimento sequencial da privatização e da regulação. Ao privatizar um monopólio é possível que se crie um poderoso interesse fático que mine a possibilidade de regulação ou competição no futuro.
O Consenso de Washington está certo em enfatizar a importância da privatização. O governo precisa dedicar seus escassos recursos aos setores em que o empreendimento privado hoje não investe -e provavelmente não irá investir no futuro. Não faz sentido que o governo administre uma siderúrgica. O governo deve concentrar toda sua atenção nos setores em que tem claras vantagens que o diferenciam de organizações privadas.
Mas também devemos dizer que há questões decisivas a serem tratadas em relação à privatização, que dizem respeito à sua abrangência e às medidas que devem ser tomadas. Mesmo quando a privatização aumenta a eficiência produtiva, pode haver problemas para garantir que se cumpram os objetivos públicos mais gerais, que não são refletidos claramente nos preços de mercado -e a regulação, não necessariamente, será um remédio perfeito.
Devem ser privatizados os presídios, os serviços sociais, a fabricação de bombas atômicas (ou melhor, o urânio enriquecido, que é o ingrediente mais importante das bombas)? Qual deve ser a abrangência da privatização? Pode-se introduzir mais atividade do setor privado dentro das atividades públicas, por exemplo, por meio de terceirização ou mecanismos de incentivos como leilões? Esses métodos são ou não uma alternativa eficiente à privatização total? Essas são as questões que o Consenso de Washington não colocou devido à sua ênfase exclusiva na privatização, como se fosse um mantra.
Além disso, como vimos acima, a sequência das medidas é importante, não somente porque muitos dos benefícios da privatização são realizados unicamente num ambiente de mercados competitivos, mas também porque podem surgir grupos poderosos defendendo seus interesses e que sufocam a competição ou resistem às regulações dos abusos do poder de monopólio.

O governo como complemento dos mercados
Viemos até aqui discutindo os aspectos insuficientes na abordagem do Consenso de Washington em relação aos temas de estabilização macroeconômica, reforma financeira, comércio liberalizado e privatização. O Consenso tem elementos importantes, mas há muitas coisas que faltam quanto à promoção de questões como a reforma do setor financeiro e a política pró-competição. Agora vou entrar em questões vitais que não foram ressaltadas ou nem sequer abordadas pelo Consenso de Washington.
O primeiro pacote dessas questões trata das funções que o governo deve assumir, e o segundo, de como ele pode cumprir suas funções mais eficientemente. Durante grande parte deste século as pessoas esperavam do governo a ampliação de sua abrangência -mais gastos e mais intervenção. Acompanhando estas exigências, houve um aumento na fatia do PIB gasta pelo governo.
As políticas do Consenso de Washington que venho discutindo se fundamentaram na rejeição do papel ativista do Estado e na busca de um Estado mínimo e não-intervencionista. A premissa não-manifesta é que os governos são piores que os mercados. Portanto, quanto menor o Estado, melhor (quer dizer, menos ruim) ele é. Como já deve ter ficado claro, eu não acredito em afirmações generalizadas do tipo "os governos são piores que os mercados". Eu já argumentei que o governo tem um papel importante: o de responder aos fracassos do mercado, que são uma característica geral de qualquer economia com informações imperfeitas e mercados incompletos. A implicação desse ponto de vista é a de que a tarefa de fazer o Estado funcionar mais eficientemente é bem mais complicada do que simplesmente reduzir seu tamanho.
Tipicamente, o Estado mexe em coisas demais sem enfoques adequados e, portanto, é menos eficiente do que poderia ser. O sucesso de qualquer organização depende do enfoque. É fundamental tentar conseguir um enfoque melhor do governo nas questões fundamentais -as políticas econômicas, a educação básica, a saúde, sistema viário, segurança, proteção ambiental. Mas o enfoque nos fundamentos não significa que o governo deva ser minimalista. O Estado tem que cumprir um papel importante na regulação, na política industrial, na segurança social e no bem-estar.
A questão não é se o Estado deve ou não intervir. A questão é saber de que forma deve intervir. O mais importante é que não devemos considerar o Estado e os mercados como substitutos um do outro.
Quero propor que o governo deva se considerar como um complemento aos mercados, atuando para que os mercados cumpram melhor as suas funções, além de corrigir suas eventuais falhas. Nós já discutimos um exemplo importante, no setor financeiro, em que, sem regulação governamental adequada, o setor simplesmente não funciona bem. Os países que têm economias bem-sucedidas também têm governos envolvidos numa ampla gama de atividades.
Em alguns casos pode ser colocado que o governo já mostrou ser um catalisador eficiente -as suas ações ajudam a resolver o problema de insuficiente oferta de inovação social. Mas, uma vez que cumpriu seu papel de catalisador, ele deve se retirar. Assim, nos EUA o governo estabeleceu um sistema nacional de hipotecas, reduzindo os custos de crédito e dando acesso a milhões de norte-americanos. Isso levou o país a ter uma das porcentagens mais altas do mundo de pessoas com casa própria. Mas, feito tudo isso, talvez seja hora de transferir essa atividade ao setor privado.



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