São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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LIVROS
A dicção do ego



Em "Lábia", o poeta baiano Waly Salomão alia as tradições oral e erudita
CARLOS ADRIANO
especial para a Folha

Ninguém segurou e ele teve um troço. Mas, já recuperado, Waly Salomão -o magnata da super-8, o gigolô de bibelôs, o caixeiro do armarinho de miudezas, o algaravista da câmara de ecos- lança sua "Lábia", novo livro de poesia.
Como de hábito, Waly organiza sua experiência em palavra vivida. No final "Post-Mortem" anuncia "Queima de arquivo!!!", "Liquidação de estoque!!!" e faz sua profissão de fé: "Para cada poema, variações de ars poetica"; "Gozaria exuberância órfica das coisas".
Seus livros "Me Segura Que Eu Vou Dar um Troço" e "Gigolô de Bibelôs" adubam "Lábia", abolindo categorias como poesia e prosa, fala e texto, coloquial e erudito. O poeta busca "o ponto de liga alquímica: amálgama de oral (reino da mente veloz em presença, do imediato, das súbitas vozes intervenientes, do "estalo de Vieira', das línguas de fogo em reprise do Pentecostes ao vivo?) e de escrito (reino do adiamento, do recalque, do mediato, da letra morta in vitro?)".
"Lábia" tem uma dicção confessional, de inflexão-babilaque. "Babilaques" são poemas experimentais que Waly criou em largas pranchas, combinando "cut-outs" e manuscrituras. Bricolagem brutalista e semiótica, para "penetrar até o âmago de cada código e desprogramar bulas e/posologias prévias". São dessa estirpe mais explícita o recurso de capítulos-vinhetas e o poema "ready-made" "Ideograma Brazil" ("Samba/Sugar loaf/Jungle/Piranha").
A lábia de Waly se conjuga na primeira pessoa, intransferível singular ("Ao escrever/o ego some, esfuma,/ E o nume Ninguém Nenhures é quem assume a autoria"). Mas podemos ver nele um Kurt Schwitters que desbundou nas dunas do barato (Dadá em Jequié?), sob os nossos eflúvios barroco-contraculturais.
É essa contaminação irreverente entre os planos de imanência e de vivência que tempera o tabuleiro do poeta, "açougueiro sem câimbra,/ tarefeiro tosco,/ cozinheiro de gororoba" ("pego a posta do vivido,/ talho, retalho, esfolo o fato nu e cru,/ pimento, condimento,/ povôo de especiarias,/ fervento, asso ou frito,/ até que tudo figure fábula").
Apressada e equivocadamente associado à "Poesia Marginal" dos anos 70 (como sua obra posterior provou), Waly se distingue dos cacoetes daquela geração pelo rigor pessoal com que regula seus espasmos (na luz das lições de Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Hélio Oiticica e outros).
Seu programa poético elege o zero-nadir e inaugura na página o "Convite ao Espanto". Sob a égide poundiana ("O que amas de verdade permanece..."), o poeta faz de "Post-Mortem" um manifesto: "Não cortejar a morte/ Não perambular pelos cemitérios/ nem brindar o luar patético/ com caveiras repletas de vinho tinto seco/ como um Byron-Castro Alves gótico e obsoleto", pois "quase morrer é assim:/ uma cada vez mais crescente ojeriza com a "vidinha literária'".
A inquietude arte/existência vem à la Fernando Pessoa. Do "Porto Celular" de "Sargaços", ergue a divisa: "Criar é não se adequar à vida como ela é". À proa, avista: "Nascer não é antes, não é ficar a ver navios,/ Nascer é depois, é nada após se afundar e se afogar". Atracado em Mallarmé ("solitude, récif..."), ecoa Arnaut Daniel ("mormente,/ remar contra a maré numa canoa furada/ Somente/ para martelar um padrão estóico-tresloucado/ De desaceitar o naufrágio").
Em sua política libertária do imaginário, figuras de linguagem caem na vida: "O beco sem saída não constitui mais/ mera figura de retórica" e "queimado o filme e desmoronada a encosta/ e esgotada a pilha da prosopopéia" ("Arenga da Agonia") ou "Restar sem oásis/ Nem palinódias/ Restar no irrespirável/ Adepto enfurnado do culto do nome cru" ("Língua Franca et Jocundíssima").
A situação do momento exige e ele bisa a condição deslocada do poeta: "Já não me habita mais nenhuma utopia./ animal em extinção,/ quero praticar poesia/ -a menos culpada de todas as ocupações./ (...) quero porque quero o êxtase,/ uma réplica reversora da república de Platão/ agora expulsando para sempre a não-poesia/da metamorfose do mundo" ("Clandestino").
Waly segue ileso às intempéries relativistas do milênio, mas mantém-se permeável à urgência de seu tempo. Com "Orgulho de Esfolado", o poeta se assume "encardido enigma". Após périplo de episteme lúdica ("na esfera da produção de si mesmo", re-percussões da Pedra Q Ronca?), o livro cala sua cantada em clave irônica, ascese crítica: "Lábia/ de parca/(pouca, porca)/ saliva".

A OBRA
Lábia - Waly Salomão. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 021/507-2000). 96 págs. R$ 18,00.


Carlos Adriano é diretor e pesquisador de cinema, autor dos filmes "Remanescências", "A Luz das Palavras" e "A Voz e o Vazio", entre outros. Organizou com Bernardo Vorobow o livro "Julio Bressane - CinePoética" .



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