São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS

Em "Caravana Contrária", Mário Chamie exagera nas rimas e trocadilhos

Maneirismo equilibrado



Em "Caravana Contrária", Mário Chamie exagera nas rimas e trocadilhos
VICENTE CECHELERO
especial para a Folha

Dissidente do concretismo, Mário Chamie criou a poesia-práxis, nova vanguarda de fundo popular, longe do ideológico. Mas não funcionou: não cabia na esquerda, nem foi aceita entre João Cabral, concretistas e periféricos. Os primeiros livros prenunciavam -"Lavra Lavra" (1962)- seu projeto mais ambicioso. Chamie queria ficar na história. João Cabral "cerebral" já dera obras basilares como "O Rio" e "Morte e Vida Severina", consolidando matéria e legenda. Sua "nova objetividade" revestia o regional de roupagem "dry" e erudita, casando ética com estética e virando escola.
Em São Paulo, sem grande poeta, a tangente era a vanguarda ou a esquerda. Chamie se impõe como réplica a João Cabral, lembrando paródias de Borges. Escreve "Lavra Lavra" entre 1956-58, na cidade de... Severínia (SP). Busca um rosto numa geografia sem rosto, sem natureza emblemática. A poesia cabralina é "seca" porque o Nordeste é seco, povo estóico, com épica e história, além do cordel que nutriu Cabral, emprestando-lhe, além de cadência, sinceridade. Sem poesia, sem geografia, sem história, Chamie lavra pra cima, como Paulo Freire em sua pedagogia-práxis (diz o poeta à "Poesia Sempre", nš 6).
Ora, o referencial do paulista só existia em sua cabeça. Daí ser a linguagem de "Lavra Lavra" mais artificial que artística, menos poesia que arranjo, sofrendo uma sorte de rejeição nesse transplante, vindo a caducar em sua retórica em breve tempo, com sua parafernália sonora e minimétrica. Nessa linha, outras obras hoje beiram o "trash" ("Now Tomorrow Mau", 1963) ou sucata ("Indústria", 1967). Riscos das vanguardas. O que dizer das artes plásticas?
Em livros mais simples, Chamie é melhor, nos pré e pós-vanguarda. O último ("Caravana Contrária", 1998), melhor que "Natureza da Coisa" (1993), começa na bela edição (sem revisão). Abre com uma defesa-ataque ("Caravana Contrária") contra "Os cães da razão" que "latem convictos". Metralha "fúteis galáxias", "sonsos hipocampos", "poemas em paes,/ josés e paulos" (lá adiante fulmina "A Prosa de Zonira", que "nas dobras e pregas/ do próprio cu se inspira", essa "escritora prostíbula"). Na parte um, Chamie se auto-elogia feito "gênio único e vulcânico/ sou de mim/ meu próprio homônimo", originalidade parodiada já em 1919 pelo espanhol Cansinos-Asséns (mestre de Borges).
Com expostas "fraturas freudianas", o eu lírico se trai em "Teoria Conspiratória" (acaba no "fosso de minhas/ pânicas dúvidas cínicas"), "Persecutória 1" e 2. O sujeito vira "eu-profeta irado", fechando com "Auto-Estima": "Em nome de meu gênio/ ... desprezo a cabeça/ e a sentença/ de meus adversários,/ adversos e vicários". Ao satirizar, o rancor polui a obra, expondo-o mais.
Há referências, imagens, metáforas, cifras, "lapsi linguae" obscuras neste e noutros livros, que interessam menos ao crítico que ao psicanalista (por exemplo: "Essa Mulher" que "como pulga/ .../ enche-me/ de culpa" e vários outros emotivos). Todavia, é o livro mais lúcido de Chamie esta "Caravana Contrária", mesmo cheio de trocadilhos e espalhafatos sonoros, rimas abusivas, verdadeiros travalínguas (ou travapoesia).
Tal exibicionismo é traiçoeiro, pois o faz passar mais por versejador do que por grande poeta. Chamie é maneirista, na definição de Curtius ("prefere o artificial e afetado ao natural"). Versos curtos, em geral de surradas sete sílabas -cortados em dois-, cinco, quatro ou seis. Centralizados mecanicamente na página, mais por aparência, em estruturas repetidas e artificiais.
À parte a pretensa originalidade ou contramão, "Caravana Contrária" é o melhor Chamie, crescendo após a parte dois, equilibrando-se, serenizando. Destacam-se, por exemplo, "Esfinge de Pedra", "O Poder da Perda Circular", "Aurora", "Cemitério Romântico", "Asas Quebradas", o belo "O Sabiá de Montale", "Floresta de Símbolos", "Flor Bela".
Outros textos ricos (parte dez) traduzem o resgate do rosto perdido -o do lavrador não funcionou-, mergulhando o poeta na cultura árabe-latina. Declina algo na parte 11, mas tem coisas como o cabralesco "Queda Interior", "cool" e lapidar. Na parte 12, ao lado do bom "Escola de Alexandria" etc., em "Nomes e Sobrenomes Só São Palavras" ataca "abóboras/ de campos" e "antas grünewalds". Mesmo em Alexandria, o poeta é perseguido pelo satanás concretista. Não obstante, Chamie é bem melhor que José Paulo Paes, Grünewald, Pignatari e outros periféricos. Seu maior adversário "c'est lui même".

A OBRA
Caravana Contrária - Mário Chamie. Geração Editorial (r. Cardoso de Almeida, 2.188, CEP 01251-000, SP, tel. 011/872-0984). 208 págs. R$ 18,00.


Vicente Cechelero é poeta e tradutor, autor de "A Língua das Sombras" (Giordano), entre outros.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.