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A desconfiança na verdade
PAULO GHIRALDELLI JR.
especial para a Folha
Quando os americanos, após
montarem seu sistema de ensino
universitário, começaram a querer fazer filosofia mais empenhadamente e, com o pragmatismo,
botaram suas cabeças no cenário
internacional, a reação contra eles
não foi pequena.
Entre o começo do século 20 e os
anos 40, figuras imponentes como
o inglês Bertrand Russell e o alemão Max Horkheimer, não deixando por menos, dedicaram páginas violentas contra o pragmatismo. O incômodo maior dizia
respeito à discussão sobre a verdade. Horkheimer rejeitou a doutrina pragmatista da verdade na medida em que entendia que esta sustentava a tese de que as nossas expectativas se realizam e nossas
ações são bem-sucedidas não porque nossas idéias são verdadeiras,
mas, ao contrário, que nossas
idéias são verdadeiras porque nossas expectativas se cumprem e
nossas ações têm sucesso. Durante
muito tempo batalhões de estudantes de filosofia aprenderam
que isso resumia a doutrina pragmatista.
Mas, se vamos aos pioneiros, por
exemplo, a William James, vemos
que a doutrina pragmatista da verdade é outra coisa. Tentando uma
formulação breve, ele afirmou que
"±'o verdadeiro' (...) é somente o
expediente no processo de nosso
pensamento, do mesmo modo que
'o direito' é somente o expediente
no processo de nosso comportamento". Se levarmos a palavra
"expediente" a sério, podemos
ver James como quem está dizendo que "o verdadeiro" é o que utilizamos quando solucionamos
problemas no curso do nosso pensamento, de maneira análoga que
"o direito" é o que utilizamos
quando decidimos por uma ação
em detrimento de outra. Podemos
então ler James não como alguém
que fala da essência da verdade,
mas como alguém que procura
descrever o que acontece quando
utilizamos a expressão "é verdadeiro".
Este tipo de atitude é decorrente
do que Richard Rorty chama de
postura antiesssencialista do pragmatista. O antiessencialista não vê
sentido em falar da natureza ou da
essência da verdade. O que faz com
qualquer coisa, inclusive com "a
verdade", é colocá-la em relação
com uma outra, pois é assim que
ele pode dizer algo interessante sobre as coisas e é isso que é conhecimento para ele. Trata-se de uma
característica do pragmatismo e
do neopragmatismo: o contextualismo ou holismo, não achando
que há "essência", o pragmatista
também não pode achar que há
"aparência", e, então, livra-se
desta e de outras dualidades, herdeiras do pensamento metafísico,
como objetivo-subjetivo, ciência-ideologia, fato-valor etc.
Talvez tenha sido esta postura
independente, que o pragmatismo
levou adiante tentando percorrer
um caminho concomitantemente
distante da metafísica e do positivismo, que tenha irritado muitos
dos mais respeitados filósofos e intelectuais da primeira metade do
século 20. Mas hoje em dia as coisas estão mudando rapidamente.
Filósofos atuais consagrados, como o francês Jacques Derrida e o
alemão Jürgen Habermas, não fazem um juízo negativo do pensamento norte-americano e, reciprocamente, encontram em boa
parte do público universitário dos
Estados Unidos uma grande atenção e uma postura bastante receptiva.
Assim, Putnam e Rorty concordam que a nova Escola de Frankfurt, com Habermas e outros, segue uma inspiração análoga à do
fundador do pragmatismo, C.S.
Peirce. Só que, enquanto ambos
elogiam a postura de Habermas
como defensor das formas ocidentais e modernas de democracia liberal associada a profundas preocupações sociais, discordam entre
si quanto a avaliação que fazem da
sua doutrina da verdade. Peirce via
a verdade como algo a ser alcançado em um "fim ideal da investigação", algo que lembra Habermas,
que a vê como algo dependente de
uma "comunidade idealmente livre". Por esta postura, ambos merecem a aprovação de Putnam. No
entanto, discordando de Peirce, de
Habermas e de Putnam, Rorty forja uma argumentação original.
Entendendo que, no que se refere a crenças, a avaliação da verdade e a avaliação da justificação são
a mesma atividade, Rorty advoga a
idéia de que não nos é permitido
excluir a possibilidade de que possa existir, ou possa a vir existir,
uma audiência melhor, para a qual
uma crença que é justificável para
nós não seria justificável. Ele não
aceita algo como "uma 'audiência
ideal' prévia, cuja justificação seria
suficiente para assegurar a verdade, alguma mais do que uma instância negativa". Pois sempre se
poderia pensar "em uma audiência comparativamente melhor informada, e também em uma mais
imaginativa". Assim, ele diz, havendo limites de justificação, "estes seriam limites da linguagem,
mas a linguagem (tal como a imaginação) não tem limites".
Poder-se-ia ver aqui em Rorty
uma leve simpatia pelo ceticismo
de Stanley Cavell. Diferentemente
tanto dos céticos quanto dos pragmatistas pioneiros, ele não quer
apenas abandonar a noção tradicional de verdade, a verdade como
correspondência adequada entre e
idéia e coisa ou entre linguagem e
mundo, mas quer, mesmo, que
chegue um tempo que descartemos de uma vez por todas a própria discussão sobre o tema. É como se ele estivesse, a todo momento, fazendo eco das palavras de
Nietzsche ironizando Descartes:
"Caro senhor' (...) 'é improvável
que o senhor não esteja errado;
mas por que sempre a verdade?".
Nietzsche denunciou a obsessão
pela verdade. Uma boa parte do
pensamento americano atual gostaria de livrar-se dessa obsessão.
Por quê? Talvez fique mais fácil
entendermos isto lembrando o
episódio histórico americano das
bruxas de Salem (aliás, relatado
em filme exibido no Brasil recentemente). Tal episódio nos mostra
como, aproveitando-se do poder
de determinar o definitivamente
verdadeiro, as autoridades religiosas não só fizeram imperar a mentira como conduziram à morte
muitos inocentes.
Em um país profundamente religioso, e no qual a religião e os setores conservadores ganham prerrogativas assustadoras dado seu poder de falar em nome da Verdade
Absoluta, certos intelectuais
-Dewey com seu experimentalismo, Rorty com seu sonho de superação da discussão da verdade e
Stanley Cavell com o seu ceticismo- parecem estar impelidos ao
cultivo de uma certa desconfiança
da verdade na sua relação com a
liberdade. Talvez fosse melhor que
a liberdade se desvencilhasse da
verdade, de modo a tornar-se uma
liberdade baseada apenas no contínuo diálogo, na disputa política,
no fazer histórico cotidiano, tudo
isso em prol de uma sociedade de
maior camaradagem, solidariedade e tolerância.
Paulo Ghiraldelli Jr. é professor de filosofia
contemporânea e filosofia da educação na
Unesp-Marília. É autor, entre outros, de "O Corpo de Ulisses - Materialismo e Modernidade em
Adorno e Horkheimer" (Escuta).
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