São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997.



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'Sou do contra'


Filósofo ataca a esquerda dos EUA, diz que o estudo da psicanálise é desnecessário e comenta a política de minorias de seu país


da Redação

"A esquerda americana deveria tentar se lembrar de outras coisas que a Guerra do Vietnã", afirma Richard Rorty na entrevista a seguir, em que fala sobre o antiamericanismo dos intelectuais norte-americanos, a política das minorias nos EUA e a psicanálise. A entrevista foi concedida pelo filósofo aos professores Luiz Eduardo Soares e Jurandir Freire Costa, no Rio de Janeiro, no ano passado, e permaneceu inédita até hoje.
Na ocasião, o filósofo participava da conferência internacional sobre "Pluralismo Cultural, Identidade e Globalização", coordenada por Luiz Eduardo Soares e Candido Mendes de Almeida, com o apoio da Unesco. As conferências apresentadas no encontro foram reunidas em um livro com o mesmo título, que está sendo lançado nesta semana em edição não-comercial, em inglês, pela editora do Complexo Universitário Candido Mendes e Unesco.

Jurandir Freire Costa - Num artigo sobre o livro de Marcia Cavell "The Psychoanalytic Mind - From Freud to Philosophy", o sr. afirmou que deveríamos poder chegar a definir o sujeito de maneira bastante econômica como uma rede neural, de um lado, e, de outro, como uma rede linguística. É uma idéia que o sr. já havia defendido em escritos anteriores. Ou seja, se bem entendi, o sr. defende a idéia de que, se nos libertarmos da imagem do "teatro cartesiano", poderíamos dispensar a psicologia e guardar apenas a neurologia e a "folkpsychology" (psicologia popular). Esta ainda é sua atual impressão? Psicologia, psicanálise etc. estão destinadas a perder a importância que têm tido pelo menos desde o século 19?
Rorty -
Diria que Freud ampliou a "folkpsychology" e não que ele criou uma nova ciência. A "folkpsychology" ampliou-se muito no curso dos séculos porque temos mais ilustrações, mais analogias. Podemos dizer isto de outro modo. Entre os intelectuais, não entre o povo, podemos falar de "momentos proustianos", "conversações jamesianas", "momentos de felicidade stendhalianos" etc. Tudo isso faz parte da "folkpsychology". Freud nos deu de um só golpe um enorme tesouro de analogias, de frases, de imagens, e com isso enriqueceu nosso vocabulário de descrição de nós mesmos, como certos romancistas. Eu diria que a "folkpsychology" não é exatamente "folk", mas também não é uma ciência.
Freire Costa - Com a expressão "não é exatamente 'folk'±" o sr. quer dizer que não é popular?
Rorty -
Sim. Entre nós, nos EUA, existem leitores que escrevem cartas aos jornais a propósito de questões pessoais. Existe uma senhora que lhes responde. As respostas são frequentemente muito boas. Quero dizer que, hoje, as respostas que encontramos nestas páginas seriam impossíveis sem Freud. Mas com isso não quero dizer que as respostas são simplesmente dadas "no jargão de Freud". É o pensamento de Freud mesmo que encontramos nelas! Poderíamos chamar isso de "folkpsychology".
Eu creio que isso se aplica mesmo para Lacan. Assisti a uma conferência de Zizek, com muitos exemplos de cinema, de romances policiais etc. Pois bem, mesmo uma pessoa como eu, que não entendo quase nada de Lacan, pude compreender algumas frases como "o objeto sublime do desejo". Ou seja, trata-se de uma ampliação do conhecimento de nós mesmos. Eu não diria que Lacan descobriu uma grande verdade sobre a condição humana. Lacan, simplesmente, deu-nos, em minha opinião, uma outra perspectiva sobre nós, mas ainda uma perspectiva.
Freire Costa - O sr. quer dizer uma outra descrição?
Rorty -
A meu ver, a psicanálise forma um contínuo com a literatura. Não é um assunto para ser estudado; é um assunto sobre o qual se escrevem bons livros que devem ser lidos.
Freire Costa - O que é que o sr. pensa da política da identidade? É uma boa ou uma má idéia?
Rorty -
Em inglês temos a expressão "grupos de interesse". Os trabalhadores, as mulheres, os médicos, os professores etc. podem formar grupos de interesse. Subitamente, criamos a expressão "política de identidade". Eu penso que isso é uma mistificação. Naturalmente nós temos grupos de interesse. Mas identidade? Minha questão é: qual é minha verdadeira identidade? Homem? Professor? Branco? Eu penso que essa é uma questão que não merece ser posta!
Freire Costa - Não faz sentido querer fixar identidades?
Rorty -
Se somos membros de um grupo oprimido, temos uma identidade como membro de um grupo oprimido. Se somos negros, se somos homossexuais e, por isso, quiserem bater-nos, então devemos protestar, devemos dizer: "Não! Não se pode bater em negros ou homossexuais". Mas saber o que é exatamente um homossexual ou, então, o que é exatamente a identidade negra, é uma questão para filósofos e não uma questão política. Eu sou membro da Associação Americana de Professores Universitários. Nós somos um grupo de interesse, quer dizer, temos leis que existem para nós. Mas não existe algo como "uma identidade profissional de professor".
Freire Costa - Quando se pergunta "o que é uma identidade?", o sr. acha que existe a tendência a buscar-se um referente imutável da "identidade"?
Rorty -
Sim. Creio que na questão da política de identidade há sempre uma divisão entre essencialistas e antiessencialistas. Os essencialistas querem dar definições; os antiessencialistas dizem: "Não! O problema é muito complexo para que se possa definir, trata-se de um jogo infinito de diferenças etc.". Eu acho tudo isso tedioso. Existe uma batalha estéril entre aristotélicos e derrideanos (de Jacques Derrida). Eu não sei o que fazer com isso. Para divertir-nos, podemos escrever coisas deste tipo: o que é um professor, o que é uma mulher etc. Mas, falando politicamente, nada disso é sério.
Freire Costa - Mas o sr. não acha que, em discussões deste tipo, tentativas de descrever fatos de uma outra forma têm algum valor? Por exemplo, lembro de um texto de Stephen Jay Gould em que ele diz que a noção de raça é extremamente discutível em biologia ou zoologia. Ou seja, por que continuamos guardando esta noção aplicada aos humanos, quando muitos já a abandonaram no estudo do reino animal? O sr. não acha que vale a pena discutir coisas como esta, dizendo que isso não faz sentido?
Rorty -
Sim, mas acho que é mais importante descrever, por exemplo, as particularidades da vida de um homem negro, de uma mulher pobre etc. É verdade que num nível mais abstrato podemos fazer redescrições. Isso talvez possa ser útil. Mas o que considero verdadeiramente útil é descrever os indivíduos em termos novos, imaginativos, e não de maneira abstrata. Nos últimos anos, temos uma literatura homossexual enorme, o que é bem mais útil do que a "Psychopathia Sexualis" (de Kraft-Ebing) ou mesmo do que as teorias de Freud sobre o assunto.
Luiz Eduardo Soares - A impressão que o sr. tem a respeito de seus colegas, os filósofos profissionais, foi um fator que pesou em sua decisão de abandonar os departamentos de filosofia e se transferir para as ciências humanas?
Rorty -
Essas decisões sempre são um pouco pessoais, as relações pessoais que se tem com os colegas entram em jogo. Eu não estava me dando muito bem com meus colegas, estava lá havia 20 anos. Eles estavam entediados comigo, e eu com eles. Isso também era mau para meus alunos. Nos Estados Unidos, se um estudante escreve uma dissertação sobre Heidegger, é um escândalo. Então os alunos diziam: "Posso escrever sobre Heidegger?". Claro, mas meus colegas não vão gostar. Isso criava situações difíceis. O tipo de estudante que eu gosto é aquele que lê de maneira onívora, que lê de tudo, então é esse o tipo de estudante que eu atraio, mas não é uma recomendação geral.
Soares - Seu texto vem se tornando cada vez mais direto, seco, simples, é claro que não menos complexo, mas mais simples. Dá a impressão de ser uma decisão deliberada, um projeto, como se o sr. precisasse de uma certa estética do escrever para estabelecer um palco ou para dramatizar, para possibilitar também uma maneira de pensar ou talvez de comunicar, e minha impressão é que se torna muito evidente a qualquer um que o lê mais atentamente que isso parece constituir um diálogo íntimo e não dito com a filosofia francesa, na qual a retórica é tão importante.
Rorty -
Isso ocorre porque existe muita imitação dos franceses entre meus colegas dos departamentos de literatura. As pessoas para as quais eu escrevo nos EUA tendem a ter lido Derrida e Lacan e escrevem numa espécie de imitação francesa, e, assim, para irritá-las, escrevo de maneira tão diferente da francesa quanto possível. Você sabe o que é "do contra" -alguém que faz tudo do jeito oposto. Eu sou do contra. Se todo mundo está fazendo de um jeito, sempre vou tentar fazer de algum jeito diferente. Eu simplesmente gosto de efeitos verbais.
Soares - Qual o escritor de sua preferência?
Rorty -
Aqueles sobre os quais escrevi: Proust, Nabokov, Henry James. Mas também tenho livros favoritos que já li e reli muitas vezes. Acho que todo mundo tem livros assim. Não é que sejam grandes livros ou que você aprenda alguma coisa com eles, você os ama, apenas, então os relê muitas vezes.
Soares - Por exemplo?
Rorty -
Há um escritor inglês, Max Beerbohm, que escreveu um livro chamado "Zuleika Dobson". Publicado em 1912, é um romance muito engraçado, um romance de humor. Acho que é um dos livros mais engraçados que já li na vida. Eu o releio a toda hora. Falo a meus alunos sobre o livro, e eles não entendem a graça. O livro não quer dizer nada para eles.
Soares - Tenho ouvido reações indignadas contra suas considerações e relações a respeito do patriotismo. O modo como o sr. expressa sua relação, sua admiração pelos Estados Unidos. Essas reações vêm de intelectuais que também são norte-americanos.
Rorty -
Tínhamos uma esquerda patriótica nos EUA até a Guerra do Vietnã. Ou seja, as pessoas de esquerda nos EUA achavam que os EUA eram um grande país, que poderíamos recuperar os bons velhos tempos de Lincoln e Wilson. Depois veio a Guerra do Vietnã e de repente os intelectuais de esquerda norte-americanos disseram que o país não prestava, que eles tinham sido enganados. A esquerda norte-americana ainda acha que os EUA são um país terrível. Mas é claro que os cidadãos não acham que sejam um país terrível, ainda acham que é um grande país. Então meu argumento é que a esquerda nos EUA deveria tentar se lembrar de alguma coisa além do Vietnã.
Ela deveria parar de dizer que este é o país que oprimiu os negros, que matou os vietnamitas, que este é o país racista, o país sexista. Praticamente todos os países são imperialistas, racistas e sexistas e, comparado a outros países, este é OK. Em meu artigo "Intellectuals in the Fore", em que há várias páginas sobre o antiamericanismo, o que procuro argumentar é que a esquerda adotou essa política da identidade, na qual se considera que devemos abandonar a idéia do Grande Sonho Americano como se fosse ilusão. Quero dizer que é melhor não o abandonarmos, pois é tudo que temos. É o único meio de comunicação existente entre a esquerda e o público.
Soares - Admitiria políticas defensivas, como a ação afirmativa?
Rorty -
Claro.
Soares - É favorável à manutenção da política de ação afirmativa?
Rorty -
Não por ser um reconhecimento de identidade, mas porque, se tivermos ação afirmativa, este país será mais simpático.
Soares - O sr. não acha que o feminismo, enquanto movimento, nasceu fora desse contexto? Ou ele teria vindo dentro dele?
Rorty -
Não, houve o que chamam de feminismo de primeira onda, em 1920, a questão do sufrágio, e ninguém achava que era uma questão de identidade, era uma questão de direitos. Depois o feminismo de segunda onda se dividiu entre pessoas que diziam "direitos" e as pessoas que diziam "identidade", porque haviam lido francês. Os americanos, na minha opinião, falam demais sobre direitos. Mas, entre direitos e identidade, é melhor falar sobre direitos. É melhor dizer simplesmente "é injusto" do que dizer "minha identidade não está sendo reconhecida". Acho que a identidade virou objeto de fetiche. Os intelectuais nos EUA passam 90% de seu tempo falando sobre identidade, isso não tem ligação com uma disciplina política, é uma espécie de preocupação estética.
Soares - Como o sr. avalia o cenário político atual?
Rorty -
Acho que os republicanos são completamente corruptos, no sentido em que simplesmente trabalham em prol dos ricos. São completamente cínicos. Não existe pretensão de fazer nada exceto deixar os ricos ainda mais ricos. Acho que entre os democratas ainda há algumas pessoas que se preocupam com o país. Acho que pessoas como Clinton e Bradley são homens decentes e inteligentes. Não há candidatos republicanos interessantes. Dole é um homem inteligente e completamente destituído de escrúpulos.


Tradução de Clara Allain.







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