São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2000

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O clássico desconhecido

Juan José Saer

Quando, em novembro de 1950, apareceu a primeira edição do romance "La Vida Breve", do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), até seu próprio editor, consciente da extrema originalidade do livro, julgou necessário tranquilizar seus possíveis compradores na apresentação da orelha: "Não se deve temer que se trate de uma experimentação literária, como se costuma qualificar depreciativamente todo abandono dos moldes notórios. É, pura e simplesmente, um romance com tudo o que lhe cabe: um relato fluido, coerente e ameno, que o leitor há de acompanhar com a mesma intensa curiosidade, da primeira à última página". Aparentemente não conseguiu convencê-los, pois se passariam muitos anos até que a pequena edição se esgotasse e uma nova aparecesse nas livrarias, ainda que não fosse difícil encontrar um exemplar da original, 15 anos depois de sua publicação, nas mesas de saldos. Nessa época, por volta de 1965, quem comprava o livro, assim como a edição de "Los Adioses", da editora Sur, com sua linda capa amarela, eram os poucos que conheciam o nome e a existência do autor que, embora quase ninguém o tivesse lido, ou talvez por isso mesmo, se tornara uma lenda.

Convicção íntima
Sabe-se que os primeiros espectadores dos quadros impressionistas alegavam que, por causa de todas aquelas pinceladas que rodopiavam na tela, do abandono dos contornos e das supostas extravagâncias cromáticas, era impossível distinguir as figuras, o que prova que é inútil tentar convencer da validade de uma obra de arte a quem de antemão decidiu não reconhecê-la. "Convencer é infecundo", afirmou certa vez Walter Benjamin (1892-1940), querendo dizer provavelmente que as trilhas do conhecimento são solitárias e que não é a argumentação insistente da pedagogia, da doutrinação ou da propaganda, e sim a convicção íntima que provém de uma insubstituível experiência estética, vívida e refletida, o que permite apreender a pertinência de uma obra de arte. Essa lenta certeza de pessoas isoladas converge sobre um mesmo objeto, no qual muitos se reconhecem depois de certo tempo, outorgando-lhe, mediante esse reconhecimento, e por nenhuma outra razão (muito menos postulada a priori), um valor cultural, histórico e social. Como ocorre com quase todas as obras literárias que contam no século 20, foi por esse caminho que, 50 anos após sua discreta aparição, "La Vida Breve" se transformou num texto clássico. Mais uma vez, e o caso de Onetti o requer mais do que qualquer outro, talvez devêssemos tentar uma definição desse conceito. É necessário, obviamente, se quisermos obter algum resultado, descartar a insípida pretensão de que são clássicas apenas aquelas obras que aplicam certas regras tão intangíveis quanto hipotéticas com as quais seria possível fabricar artefatos de forma invariável, que, por sua própria imutabilidade e obediência a uma espécie de ideal platônico, seriam automaticamente admitidos no respeitável clube privado das obras clássicas. Nenhuma análise séria da história da arte poderia se contentar com essa caricatura; é um processo totalmente oposto ao que ela propende o que faz um quadro ou um livro, uma obra artística em geral, se transformar em clássico. A bem da verdade, é quando a aparente arbitrariedade dos meios empregados por toda obra realmente original vai impondo aos receptores sua lógica e sua necessidade que essa obra começa a se transformar em clássico e chega a sê-lo por inteiro a partir do momento em que, contra ou a favor, nenhum juízo estético, crítico ou histórico pode ignorar a legitimidade e a permanência de suas contribuições decisivas. Não é apesar de, e sim graças a suas notórias inovações, cuja pertinência se fez evidente com a perspectiva de que dispomos quase 80 anos mais tarde, que o "Ulisses" de James Joyce é um clássico. É também nesse sentido que devemos aplicar o termo ao romance de Onetti. Sua eclosão foi inesperada: por esses anos, o romance em língua espanhola contava com algumas obras de inegável qualidade, como as de Roberto Arlt ou os primeiros livros de Bioy Casares, mas estas eram um item quase inexistente e só se liam romances escritos em francês, em italiano, em alemão, em russo e em inglês. Em relação à América Latina, muitos teóricos literários, fiéis às teorias sociológicas em voga, pretendiam que, por ainda não termos feito a revolução democrático-burguesa, o romance, gênero ligado à ascensão e expansão da burguesia, não podia existir.

Realidade da ficção
Essa teoria, mais do que explicar as carências locais em matéria novelística, na realidade revelava a concepção do romance de seus partidários -realista, figurativo, baseado na rigorosa equivalência entre a realidade que se queria representar e os meios formais que a representavam. Por outro lado, nessa época -digamos entre 1930 e 1960-, o melhor que se estava produzindo no Prata em matéria narrativa (Horacio Quiroga, Borges, Felisberto Hernández, Silvina Ocampo, Bioy Casares, Cortázar e até Arlt em certa medida) era a literatura fantástica. Esse cruzamento contraditório explica em grande parte o silêncio com que se recebeu "La Vida Breve", pois, em sua profunda originalidade, o livro fugia dos dogmas opostos que pretendiam arregimentar a produção narrativa rio-platense.
Por causa de sua inesperada novidade, o romance de Onetti não podia ser interpretado nem julgado de acordo com as teorias literárias da época: ele mesmo fornecia, em sua organização interna e em seu sábio laconismo quanto ao sentido, as próprias chaves teóricas com que se deveria julgá-lo.

O mundo de Onetti, objeto material e mental como todo grande texto de ficção, é uma criação autônoma que resulta de uma estratégia narrativa totalmente inédita

Colocando-se à margem da querela entre realistas e fantásticos, "La Vida Breve" não é nem uma coisa nem outra; em vez de representar a suposta realidade exterior, ele a instrumentaliza, fragmenta e distorce, mas os tópicos fantásticos também lhe são indiferentes por já estarem talvez saturados de sentido. Nem realista nem fantástico, o romance de Onetti levanta com virtuosismo e rigor uma bandeira que, desde Cervantes, talvez desde Calderón de la Barca, deixara de tremular nos campos da narrativa, pelo menos em castelhano: o da realidade da ficção. Esse é o primeiro objetivo de "La Vida Breve", o que poderíamos chamar seu "tema". A arquitetura calculada do livro encaminha a ordem dos fatos para a seguinte demonstração: Juan María Brausen, redator publicitário, recebe a encomenda de escrever um roteiro de cinema com personagens comuns, para não dizer medíocres, que correspondam a certa mediania social, psicológica, moral. De início as motivações de Brausen são estritamente financeiras, mas depois de certo tempo o estreito mundo imaginário que ele começa a organizar mentalmente, cujo primeiro elemento é um médico olhando pela janela de seu consultório para a praça de uma pequena cidade de província, vai aos poucos se desenvolvendo até se transformar na cidade de Santa María, com seus habitantes, sua colônia, sua história.

Criação autônoma
No meio do romance, a encomenda do roteiro fica sem efeito, mas as consequências que desencadeou são não apenas irreversíveis, mas, à medida que o livro avança, o pequeno mundo criado por Brausen vai se instalando na trama do relato, lançando por terra o determinismo que o realismo tradicional estabelece entre o relato e o referente e sugerindo uma espécie de intercambialidade entre esses dois planos e entre muitos outros que vão se desdobrando ao longo do livro. Assim, Brausen, além de criar esse mundo imaginário, a princípio por encomenda, assume uma segunda personalidade -Arce-, levando uma vida dupla com uma prostituta, quando se vê obrigado a fugir de Buenos Aires. Seus passos o levam, por meio de itinerários misteriosamente complicados, até a praça de Santa María, a mesma que o doutor Díaz Grey, no início do roteiro inacabado, contempla pela janela de seu consultório. Narrativamente falando, a intercambialidade desses planos -Buenos Aires, Santa María, Brausen, Arce, Díaz Grey e as outras múltiplas variantes descritivas, identitárias, fáticas que o texto introduz, sugere ou insinua- acaba anulando a possibilidade de julgá-lo do ponto de vista de um determinismo realista, mas o plano imaginário que vai tomando conta da narrativa, ocupando-a, até obrigar o relato e seus personagens a se "mudarem para dentro", como ocorre com a abóbora de Macedonio Fernández, que nunca acaba de crescer, não tem a mínima sombra de afinidade com os tópicos, os procedimentos nem as intenções da literatura fantástica. O mundo de Juan Carlos Onetti, objeto material e mental como todo grande texto de ficção, é uma criação autônoma que resulta de uma estratégia narrativa totalmente inédita. O "Je est un autre" ("Eu é um outro"), de Rimbaud, no caso de Brausen poderia se transformar em "Eu são muitos outros", com a significativa diferença de que no romance de Onetti "Eu" não é o sujeito real Brausen (ou outros personagens que passam por transformações similares) e suas sucessivas encarnações, meras projeções imaginárias, mas apenas um dos possíveis trechos fragmentários dessa espécie de continuidade fluida com que o romance organiza esse complexo material e mental, no interior do qual o que tomamos como real coexiste em pé de igualdade com aquilo que sabemos imaginário. A bem da verdade, e embora o romance seja narrado em sua maior parte em primeira pessoa, o "Eu" de Brausen é uma instância tão imaginária quanto a cidade de Santa María que ele inventou, um "Eu" que desaparece justamente atrás de sua invenção, para nela reaparecer mais tarde como personagem. Aplicando sua própria lógica até as últimas consequências, "La Vida Breve" chega a despersonalizar até seu próprio autor, transferindo-o de sua suposta realidade exterior para o texto, para o mundo da ficção, pois um personagem chamado Onetti, que, além do nome, possui algumas características do autor, mas que mantém sua distância e sua ambiguidade em cada uma de suas aparições, entra em cena no capítulo cinco da segunda parte do livro para tornar ainda mais intrincada a rede de intercâmbios, de identificações e de substituições entre os vários níveis do texto. No capítulo final, embora a ficção tenha deslocado todo o resto, ocupando, por assim dizer, inteiramente o terreno, ainda assim sentimos que os personagens e os acontecimentos que a constituem são um eco deformado das criaturas e dos fatos que integravam os outros planos, que o relato superou ou subsumiu na ficção presente, a qual, sem nenhuma dúvida, é para o leitor a única "realidade": o romance que, se servindo do suporte material do texto, constrói a realidade soberana da ficção.

Apagar hierarquias
Como os de Arlt, os personagens de Onetti induzem ao mal com a clássica provocação rasgada dos moralistas, e, como Faulkner, Onetti cria seu próprio território imaginário; mas, à diferença de ambos, esses elementos constitutivos de sua narrativa são apenas pontos de partida. É algo que poderíamos chamar de tentativa de apagar hierarquias entre signo e referente, o que, neste romance escrito nos anos 40, constitui o essencial de suas intenções, sua contribuição original e talvez não apenas em língua espanhola. A tensão trágica do mundo arltiano se tornou, para os personagens de Onetti, um desespero racional, uma resignação ("admitindo minha solidão como fiz com minha tristeza") e um cansaço, por meio dos quais acabam exprimindo, depois de múltiplas decepções, afetivas, morais, sociais e até metafísicas, "a exaustão de sermos leais". Mas, à diferença dos personagens de Arlt, que, como verdadeiras criaturas existencialistas avant la lettre, se consomem em situações-limite e se autodestroem em atos irremediáveis, os de "La Vida Breve" padecem a desgraça que os assalta e definham entre a nostalgia e a impossibilidade de viver plenamente sua vida, se instalando no imaginário. Quanto ao distrito de Yoknapatawha, o território criado por Faulkner, este apresenta em relação à cidade de Santa María de Onetti uma diferença fundamental, já que o primeiro é o equivalente de um território real, apenas levemente deformado em seu transplante, a representação de um mundo empírico transferido para uma dimensão literária. Ao passo que a Santa María de Onetti coexiste com a dimensão empírica própria do autor e dos personagens, é um dos pontos do triângulo que a pequena cidade de província forma com Buenos Aires e Montevidéu. Essa coexistência em pé de igualdade das duas instâncias é primordial para os objetivos do livro.

Problemática inovadora
Devemos talvez assinalar outros aspectos importantes que diferenciam Onetti de Faulkner, com quem, não sem certa superficialidade, a crítica sempre tendeu a identificá-lo. Em primeiro lugar, a invenção de um território próprio onde implantar suas ficções não é uma exclusividade faulkneriana: é a condição necessária de quase todas as empresas narrativas. Essa condição é predicada apenas por dois ou três casos: ou o território é representado por seu próprio nome (Flaubert, Svevo, Joyce) ou o nome é modificado (Faulkner, Musil, Onetti) ou o nome é elidido, como no caso de Kafka, mas cujos romances evocam sempre uma mesma geografia e uma mesma cultura, ou ainda como no "Dom Quixote", que pratica a imprecisão logo na primeira linha do texto, na qual o célebre, mas sempre ignorado, "lugar de La Mancha" provavelmente reclama a autonomia da ficção, formulando ao mesmo tempo uma inovadora problemática sobre a razão de ser de todo relato, que ainda continua vigente hoje em dia. Vale dizer também que, com seu próprio nome ou com um nome fictício, como a Cacania de Musil, ou sem nenhum nome, o território em que o narrador instala suas ficções só tem um longínquo parentesco com o espaço ou a geografia habitados pelos seres de carne e osso que chafurdamos no empírico. Inventando seu próprio território, Onetti apenas adota uma das variantes em que se resolve essa premissa fundamental (mas não única) de toda narrativa. Mas se quis ver também no estilo onettiano a excessiva influência de Faulkner, o que com o tempo se mostrou igualmente equivocado. É evidente que Onetti leu Faulkner com admiração e que alguma influência da obra faulkneriana é perceptível em sua escrita, como são na de Faulkner as de Joyce, Conrad, Cervantes, Flaubert etc.

Fluxo de sensações
Contudo não é nos manuais de literatura que um escritor aprende a escrever, e sim na obra de outros escritores, e é natural que a marca de seus mestres apareça em seus livros. Mas é mediante um processo de diferenciação quanto a essas influências que uma obra original vai se construindo. Por mais que em "La Vida Breve" encontremos ecos de Faulkner aqui e ali, o que primeiro percebemos no livro, quando atentamos para a idéia preconcebida da exclusiva influência faulkneriana, são as profundas diferenças que, em nível puramente estilístico (sem falar da construção narrativa ou da problemática que elaboram), separam os dois autores. O estilo de Faulkner produz um fluxo ininterrupto de sensações, de emoções confusas e de metáforas e comparações que vão rebentando como lampejos no desenrolar do texto, ao passo que a frase onettiana, seja qual for sua extensão, se organiza com precisão para de certo modo conceitualizar a vida interior, por mais agitada que ela seja, ou simplesmente o viver e o atuar dos personagens. À obstinada dialética com que estes se enfrentam a cada passo, há que somar, como resultado de seu constante trabalho sobre a prosa, a exatidão poética dos fragmentos narrativos, a entonação neutra dos títulos de capítulos, deliberadamente pouco enfáticos, bem como do texto em geral, como se, por orgulho ou por considerá-la inelutável, o autor e os personagens tomassem distância da desgraça para falar dela. E, por último, a lenda de um Juan Carlos Onetti irracional, tremendista e caprichoso desmorona diante da construção rigorosa do romance, com seus deslizamentos sutis do ponto de vista narrativo, com os diferentes planos do relato que se engrenam sem violência, com o tema principal modulado com mestria ao longo da história.

Álgebra da vida
O caráter calculado, metódico, do livro contrasta de imediato com o turbulento fluxo faulkneriano e, se por meio de suas magníficas construções este busca figurar o magma bruto do existir, em "La Vida Breve" sentimos que Onetti nos propõe não a vida mesma, como pretende o realismo determinista, mas antes o que não seria descabido chamar de álgebra da vida.
Há algo de heróico nesse minucioso artesanato, se considerarmos que serve para narrar a impossibilidade de viver, o fracasso, o desengano. Com sua música própria, "La Vida Breve" ilustra também velhos temas cervantinos, calderonianos; mas, pela originalidade de sua organização, pela novidade do mundo que nos propõe e pela implícita teoria do relato que vai se desdobrando com a matéria verbal que se encaminha para sua consumação -realidade, ficção e teoria narrativa inseparavelmente encarnadas na espessura do texto-, a obra-prima de Onetti é intensa, apaixonadamente de seu tempo e do nosso. Há 50 anos ela vem nos oferecendo sua discrição e sua orgulhosa minúcia, seu sarcasmo e sua gravidade, sua derrota e sua rebeldia.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
Onde encomendar:
"La Vida Breve", de Juan Carlos Onetti, pode ser encomendado à livraria Letraviva (tel. 3088-7992).




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