|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ autores
O clássico desconhecido
Juan José Saer
Quando, em novembro de 1950,
apareceu a primeira edição do
romance "La Vida Breve", do
uruguaio Juan Carlos Onetti
(1909-1994), até seu próprio editor, consciente da extrema originalidade do livro,
julgou necessário tranquilizar seus possíveis compradores na apresentação da
orelha: "Não se deve temer que se trate
de uma experimentação literária, como
se costuma qualificar depreciativamente
todo abandono dos moldes notórios. É,
pura e simplesmente, um romance com
tudo o que lhe cabe: um relato fluido,
coerente e ameno, que o leitor há de
acompanhar com a mesma intensa curiosidade, da primeira à última página".
Aparentemente não conseguiu convencê-los, pois se passariam muitos anos
até que a pequena edição se esgotasse e
uma nova aparecesse nas livrarias, ainda
que não fosse difícil encontrar um exemplar da original, 15 anos depois de sua
publicação, nas mesas de saldos. Nessa
época, por volta de 1965, quem comprava o livro, assim como a edição de "Los
Adioses", da editora Sur, com sua linda
capa amarela, eram os poucos que conheciam o nome e a existência do autor
que, embora quase ninguém o tivesse lido, ou talvez por isso mesmo, se tornara
uma lenda.
Convicção íntima
Sabe-se que os
primeiros espectadores dos quadros impressionistas alegavam que, por causa de
todas aquelas pinceladas que rodopiavam na tela, do abandono dos contornos
e das supostas extravagâncias cromáticas, era impossível distinguir as figuras, o
que prova que é inútil tentar convencer
da validade de uma obra de arte a quem
de antemão decidiu não reconhecê-la.
"Convencer é infecundo", afirmou certa vez Walter Benjamin (1892-1940),
querendo dizer provavelmente que as
trilhas do conhecimento são solitárias e
que não é a argumentação insistente da
pedagogia, da doutrinação ou da propaganda, e sim a convicção íntima que provém de uma insubstituível experiência
estética, vívida e refletida, o que permite
apreender a pertinência de uma obra de
arte.
Essa lenta certeza de pessoas isoladas
converge sobre um mesmo objeto, no
qual muitos se reconhecem depois de
certo tempo, outorgando-lhe, mediante
esse reconhecimento, e por nenhuma
outra razão (muito menos postulada a
priori), um valor cultural, histórico e social. Como ocorre com quase todas as
obras literárias que contam no século 20,
foi por esse caminho que, 50 anos após
sua discreta aparição, "La Vida Breve" se
transformou num texto clássico.
Mais uma vez, e o caso de Onetti o requer mais do que qualquer outro, talvez
devêssemos tentar uma definição desse
conceito. É necessário, obviamente, se
quisermos obter algum resultado, descartar a insípida pretensão de que são
clássicas apenas aquelas obras que aplicam certas regras tão intangíveis quanto
hipotéticas com as quais seria possível
fabricar artefatos de forma invariável,
que, por sua própria imutabilidade e
obediência a uma espécie de ideal platônico, seriam automaticamente admitidos no respeitável clube privado das
obras clássicas.
Nenhuma análise séria da história da
arte poderia se contentar com essa caricatura; é um processo totalmente oposto
ao que ela propende o que faz um quadro ou um livro, uma obra artística em
geral, se transformar em clássico.
A bem da verdade, é quando a aparente arbitrariedade dos meios empregados
por toda obra realmente original vai impondo aos receptores sua lógica e sua necessidade que essa obra começa a se
transformar em clássico e chega a sê-lo
por inteiro a partir do momento em que,
contra ou a favor, nenhum juízo estético,
crítico ou histórico pode ignorar a legitimidade e a permanência de suas contribuições decisivas. Não é apesar de, e sim
graças a suas notórias inovações, cuja
pertinência se fez evidente com a perspectiva de que dispomos quase 80 anos
mais tarde, que o "Ulisses" de James Joyce é um clássico. É também nesse sentido
que devemos aplicar o termo ao romance de Onetti.
Sua eclosão foi inesperada: por esses
anos, o romance em língua espanhola
contava com algumas obras de inegável
qualidade, como as de Roberto Arlt ou os
primeiros livros de Bioy Casares, mas estas eram um item quase inexistente e só
se liam romances escritos em francês, em
italiano, em alemão, em russo e em inglês. Em relação à América Latina, muitos teóricos literários, fiéis às teorias sociológicas em voga, pretendiam que, por
ainda não termos feito a revolução democrático-burguesa, o romance, gênero
ligado à ascensão e expansão da burguesia, não podia existir.
Realidade da ficção
Essa teoria,
mais do que explicar as carências locais
em matéria novelística, na realidade revelava a concepção do romance de seus
partidários -realista, figurativo, baseado na rigorosa equivalência entre a realidade que se queria representar e os
meios formais que a representavam. Por
outro lado, nessa época -digamos entre
1930 e 1960-, o melhor que se estava
produzindo no Prata em matéria narrativa (Horacio Quiroga, Borges, Felisberto Hernández, Silvina Ocampo, Bioy Casares, Cortázar e até Arlt em certa medida) era a literatura fantástica. Esse cruzamento contraditório explica em grande
parte o silêncio com que se recebeu "La
Vida Breve", pois, em sua profunda originalidade, o livro fugia dos dogmas
opostos que pretendiam arregimentar a
produção narrativa rio-platense.
Por causa de sua inesperada novidade,
o romance de Onetti não podia ser interpretado nem julgado de acordo com as
teorias literárias da época: ele mesmo
fornecia, em sua organização interna e
em seu sábio laconismo quanto ao sentido, as próprias chaves teóricas com que
se deveria julgá-lo.
O mundo de Onetti, objeto material e mental como todo grande texto
de ficção, é uma criação autônoma
que resulta
de uma estratégia
narrativa
totalmente inédita
Colocando-se à margem da querela entre realistas e fantásticos, "La Vida Breve" não é nem uma coisa nem outra; em
vez de representar a suposta realidade
exterior, ele a instrumentaliza, fragmenta e distorce, mas os tópicos fantásticos
também lhe são indiferentes por já estarem talvez saturados de sentido.
Nem realista nem fantástico, o romance de Onetti levanta com virtuosismo e
rigor uma bandeira que, desde Cervantes, talvez desde Calderón de la Barca,
deixara de tremular nos campos da narrativa, pelo menos em castelhano: o da
realidade da ficção.
Esse é o primeiro objetivo de "La Vida
Breve", o que poderíamos chamar seu
"tema". A arquitetura calculada do livro
encaminha a ordem dos fatos para a seguinte demonstração: Juan María Brausen, redator publicitário, recebe a encomenda de escrever um roteiro de cinema
com personagens comuns, para não dizer medíocres, que correspondam a certa mediania social, psicológica, moral.
De início as motivações de Brausen são
estritamente financeiras, mas depois de
certo tempo o estreito mundo imaginário que ele começa a organizar mentalmente, cujo primeiro elemento é um médico olhando pela janela de seu consultório para a praça de uma pequena cidade
de província, vai aos poucos se desenvolvendo até se transformar na cidade de
Santa María, com seus habitantes, sua
colônia, sua história.
Criação autônoma
No meio do romance, a encomenda do roteiro fica sem
efeito, mas as consequências que desencadeou são não apenas irreversíveis,
mas, à medida que o livro avança, o pequeno mundo criado por Brausen vai se
instalando na trama do relato, lançando
por terra o determinismo que o realismo
tradicional estabelece entre o relato e o
referente e sugerindo uma espécie de intercambialidade entre esses dois planos e
entre muitos outros que vão se desdobrando ao longo do livro. Assim, Brausen, além de criar esse mundo imaginário, a princípio por encomenda, assume
uma segunda personalidade -Arce-,
levando uma vida dupla com uma prostituta, quando se vê obrigado a fugir de
Buenos Aires.
Seus passos o levam, por meio de itinerários misteriosamente complicados, até
a praça de Santa María, a mesma que o
doutor Díaz Grey, no início do roteiro
inacabado, contempla pela janela de seu
consultório. Narrativamente falando, a
intercambialidade desses planos -Buenos Aires, Santa María, Brausen, Arce,
Díaz Grey e as outras múltiplas variantes
descritivas, identitárias, fáticas que o texto introduz, sugere ou insinua- acaba
anulando a possibilidade de julgá-lo do
ponto de vista de um determinismo realista, mas o plano imaginário que vai tomando conta da narrativa, ocupando-a,
até obrigar o relato e seus personagens a
se "mudarem para dentro", como ocorre
com a abóbora de Macedonio Fernández, que nunca acaba de crescer, não tem
a mínima sombra de afinidade com os
tópicos, os procedimentos nem as intenções da literatura fantástica.
O mundo de Juan Carlos Onetti, objeto
material e mental como todo grande texto de ficção, é uma criação autônoma
que resulta de uma estratégia narrativa
totalmente inédita.
O "Je est un autre" ("Eu é um outro"),
de Rimbaud, no caso de Brausen poderia
se transformar em "Eu são muitos outros", com a significativa diferença de
que no romance de Onetti "Eu" não é o
sujeito real Brausen (ou outros personagens que passam por transformações similares) e suas sucessivas encarnações,
meras projeções imaginárias, mas apenas um dos possíveis trechos fragmentários dessa espécie de continuidade fluida
com que o romance organiza esse complexo material e mental, no interior do
qual o que tomamos como real coexiste
em pé de igualdade com aquilo que sabemos imaginário.
A bem da verdade, e embora o romance seja narrado em sua maior parte em
primeira pessoa, o "Eu" de Brausen é
uma instância tão imaginária quanto a
cidade de Santa María que ele inventou,
um "Eu" que desaparece justamente
atrás de sua invenção, para nela reaparecer mais tarde como personagem. Aplicando sua própria lógica até as últimas
consequências, "La Vida Breve" chega a
despersonalizar até seu próprio autor,
transferindo-o de sua suposta realidade
exterior para o texto, para o mundo da
ficção, pois um personagem chamado
Onetti, que, além do nome, possui algumas características do autor, mas que
mantém sua distância e sua ambiguidade em cada uma de suas aparições, entra
em cena no capítulo cinco da segunda
parte do livro para tornar ainda mais intrincada a rede de intercâmbios, de identificações e de substituições entre os vários níveis do texto.
No capítulo final, embora a ficção tenha deslocado todo o resto, ocupando,
por assim dizer, inteiramente o terreno,
ainda assim sentimos que os personagens e os acontecimentos que a constituem são um eco deformado das criaturas e dos fatos que integravam os outros
planos, que o relato superou ou subsumiu na ficção presente, a qual, sem nenhuma dúvida, é para o leitor a única
"realidade": o romance que, se servindo
do suporte material do texto, constrói a
realidade soberana da ficção.
Apagar hierarquias
Como os de
Arlt, os personagens de Onetti induzem
ao mal com a clássica provocação rasgada dos moralistas, e, como Faulkner,
Onetti cria seu próprio território imaginário; mas, à diferença de ambos, esses
elementos constitutivos de sua narrativa
são apenas pontos de partida. É algo que
poderíamos chamar de tentativa de apagar hierarquias entre signo e referente, o
que, neste romance escrito nos anos 40,
constitui o essencial de suas intenções,
sua contribuição original e talvez não
apenas em língua espanhola.
A tensão trágica do mundo arltiano se
tornou, para os personagens de Onetti,
um desespero racional, uma resignação
("admitindo minha solidão como fiz
com minha tristeza") e um cansaço, por
meio dos quais acabam exprimindo, depois de múltiplas decepções, afetivas,
morais, sociais e até metafísicas, "a
exaustão de sermos leais".
Mas, à diferença dos personagens de
Arlt, que, como verdadeiras criaturas
existencialistas avant la lettre, se consomem em situações-limite e se autodestroem em atos irremediáveis, os de "La
Vida Breve" padecem a desgraça que os
assalta e definham entre a nostalgia e a
impossibilidade de viver plenamente sua
vida, se instalando no imaginário.
Quanto ao distrito de Yoknapatawha,
o território criado por Faulkner, este
apresenta em relação à cidade de Santa
María de Onetti uma diferença fundamental, já que o primeiro é o equivalente
de um território real, apenas levemente
deformado em seu transplante, a representação de um mundo empírico transferido para uma dimensão literária. Ao
passo que a Santa María de Onetti coexiste com a dimensão empírica própria do
autor e dos personagens, é um dos pontos do triângulo que a pequena cidade de
província forma com Buenos Aires e
Montevidéu. Essa coexistência em pé de
igualdade das duas instâncias é primordial para os objetivos do livro.
Problemática inovadora
Devemos talvez assinalar outros aspectos importantes que diferenciam Onetti de
Faulkner, com quem, não sem certa superficialidade, a crítica sempre tendeu a
identificá-lo. Em primeiro lugar, a invenção de um território próprio onde implantar suas ficções não é uma exclusividade faulkneriana: é a condição necessária de quase todas as empresas narrativas. Essa condição é predicada apenas
por dois ou três casos: ou o território é
representado por seu próprio nome
(Flaubert, Svevo, Joyce) ou o nome é modificado (Faulkner, Musil, Onetti) ou o
nome é elidido, como no caso de Kafka,
mas cujos romances evocam sempre
uma mesma geografia e uma mesma cultura, ou ainda como no "Dom Quixote",
que pratica a imprecisão logo na primeira linha do texto, na qual o célebre, mas
sempre ignorado, "lugar de La Mancha"
provavelmente reclama a autonomia da
ficção, formulando ao mesmo tempo
uma inovadora problemática sobre a razão de ser de todo relato, que ainda
continua vigente hoje em dia.
Vale dizer também que, com seu próprio nome ou com um nome fictício, como a Cacania de Musil, ou sem nenhum
nome, o território em que o narrador
instala suas ficções só tem um longínquo
parentesco com o espaço ou a geografia
habitados pelos seres de carne e osso que
chafurdamos no empírico. Inventando
seu próprio território, Onetti apenas
adota uma das variantes em que se resolve essa premissa fundamental (mas não
única) de toda narrativa.
Mas se quis ver também no estilo onettiano a excessiva influência de Faulkner,
o que com o tempo se mostrou igualmente equivocado. É evidente que Onetti leu Faulkner com admiração e que alguma influência da obra faulkneriana é
perceptível em sua escrita, como são na
de Faulkner as de Joyce, Conrad, Cervantes, Flaubert etc.
Fluxo de sensações
Contudo não é
nos manuais de literatura que um escritor aprende a escrever, e sim na obra de
outros escritores, e é natural que a marca
de seus mestres apareça em seus livros.
Mas é mediante um processo de diferenciação quanto a essas influências que
uma obra original vai se construindo.
Por mais que em "La Vida Breve" encontremos ecos de Faulkner aqui e ali, o
que primeiro percebemos no livro,
quando atentamos para a idéia preconcebida da exclusiva influência faulkneriana, são as profundas diferenças que,
em nível puramente estilístico (sem falar
da construção narrativa ou da problemática que elaboram), separam os dois autores. O estilo de Faulkner produz um
fluxo ininterrupto de sensações, de emoções confusas e de metáforas e comparações que vão rebentando como lampejos
no desenrolar do texto, ao passo que a
frase onettiana, seja qual for sua extensão, se organiza com precisão para de
certo modo conceitualizar a vida interior, por mais agitada que ela seja, ou
simplesmente o viver e o atuar dos personagens.
À obstinada dialética com que estes se
enfrentam a cada passo, há que somar,
como resultado de seu constante trabalho sobre a prosa, a exatidão poética dos
fragmentos narrativos, a entonação neutra dos títulos de capítulos, deliberadamente pouco enfáticos, bem como do
texto em geral, como se, por orgulho ou
por considerá-la inelutável, o autor e os
personagens tomassem distância da desgraça para falar dela. E, por último, a lenda de um Juan Carlos Onetti irracional,
tremendista e caprichoso desmorona
diante da construção rigorosa do romance, com seus deslizamentos sutis do
ponto de vista narrativo, com os diferentes planos do relato que se engrenam
sem violência, com o tema principal modulado com mestria ao longo da história.
Álgebra da vida
O caráter calculado, metódico, do livro contrasta de imediato com o turbulento fluxo faulkneriano e, se por meio de suas magníficas
construções este busca figurar o magma
bruto do existir, em "La Vida Breve" sentimos que Onetti nos propõe não a vida
mesma, como pretende o realismo determinista, mas antes o que não seria
descabido chamar de álgebra da vida.
Há algo de heróico nesse minucioso artesanato, se considerarmos que serve para narrar a impossibilidade de viver, o
fracasso, o desengano. Com sua música
própria, "La Vida Breve" ilustra também
velhos temas cervantinos, calderonianos; mas, pela originalidade de sua organização, pela novidade do mundo que
nos propõe e pela implícita teoria do relato que vai se desdobrando com a matéria verbal que se encaminha para sua
consumação -realidade, ficção e teoria
narrativa inseparavelmente encarnadas
na espessura do texto-, a obra-prima
de Onetti é intensa, apaixonadamente de
seu tempo e do nosso. Há 50 anos ela
vem nos oferecendo sua discrição e sua
orgulhosa minúcia, seu sarcasmo e sua
gravidade, sua derrota e sua rebeldia.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém
Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
Onde encomendar:
"La Vida Breve", de Juan Carlos Onetti, pode ser
encomendado à livraria Letraviva (tel. 3088-7992).
Texto Anterior: Abram Próximo Texto: + dramaturgia: Um abalo nos palcos Índice
|